#BALZAC – RICA FONTE DE CRITICA À SOCIEDADE BURGUESA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO/IMAGEM: GOOGLE



No que tange a este grande romancista francês, desenrola-se volta e meia ruidosas controvérsias que, conforme nossa visão, tem interesse superior ao simplesmente acadêmico. Referem-se a que tais disputas? Referem-se a alguns dos mais importantes aspectos da nossa ciência e da nossa literatura. Não obstante existir crítica literária relativamente ampla, dedicada a Balzac, não estamos autorizados a dizer que tenhamos aprendido muito sobre as suas obras. Deve-se isso não só à extrema complexidade do autor e à falta de verdadeiro estudo da matéria, mas também, até certo nível, aos métodos inferiores de in-vestigação que estão em moda entre a maior parte dos historiadores literários que escrevem sobre Balzac.


Para nós, Balzac é significativo não só como patrimônio histórico, mas, sobretudo, como vivo tesouro cultural, como fonte de rica de experiência na arte e nas idéias. Aprendemos dos historiadores literários que Balzac era o representante ideológico de tal e tal classe, da burguesia industrial ou da aristocracia, ou de uma determinada parte de uma classe, mas não explicam por que Balzac foi um grande artista. Historiador literário, in-vestigador sociológico, dizer que Balzac foi um escritor burguês, dando-se por satisfeito, presumindo ter dito a última palavra. A última palavra! Que despautério! Quanto mais quando se diz respeito a este ícone da literatura francesa e universal. Ao apreciar um autor, o “sociólogo”, submergido inteiramente em investigações genéticas, foge ao assunto por intermédio de generalizações as mais descabíveis, até mesmo imbecis. Se con-templarmos de um ponto de vista sociológico comum, todos os grandes escritores parecem iguais.


O estudo da literatura con-verte-se num ofício cacete e improdutivo. Classificam-se os autores de acordo com a classe a que pertencem da maneira mais automática. E a voz monótona do sociólogo explica como um professor de etimologia: “Dostoievski pertencia a... Ibsen pertencia a... Machado de Assis pertencia a... Goethe pertencia a...”. Enquanto a conversação gira sobre um grande escritor, o sociólogo, para evitar situação constrangedora, põe diante de nós o célebre quadro da “burguesia ascendente” como “classe progressista”, etc. Método realmente muito cômodo para “tirar o corpo fora” da necessidade de re-flexão e de in-vestigação histórica concreta. Não é método original, visto que foi empregado primeiro pelos historiadores liberais da literatura que, naturalmente, como burgueses, avaliaram todas as grandes produções artísticas da sua época somente em relação ao “progressismo” do dia. Para poder aplicar teoria os “sociólogos”, passando por alto os fatos, empenham-se em vão a descrever a Balzac, defensor da aristocracia, como um músico do capitalismo industrial.


A incompetência dessa classe de sociologia quando aprecia Balzac não é de modo algum acidental, mas o resultado direto de um modo de ver, incorreto e unilateral, a gênese de uma obra-de-arte.


Faz-se mister estudar a obra do autor de modo que explicará a influência de sua época sobre o desenvolvimento e o progresso, e quão profundamente refletiu em seus escritos. Nossos sociólogos perdem de vista este aspecto e começam do lado oposto. Aos seus olhos a análise classista de uma obra-de-arte depende automaticamente da posição imediata do artista numa sociedade dividida em classes. Fogem por completo do método do artista, do seu modo de reagir ante a realidade. Não se ocupam do fato de que um estudo profundo e uma verídica descrição da realidade por um autor emprestam tremenda significação ao sentido social da sua obra. Os sociólogos perdem assim o conteúdo objetivo e o significado histórico da arte criadora.


Escritores, como Balzac, conservam sua significação muito além dos limites do seu tempo e da sua classe, devido não tanto às suas opiniões como às suas aspirações. É exatamente esta a diferença que os “sociólogos” deixam de ter em conta. Não estão nada interessados no “porquê” e no “como” da chegada de Balzac a certas conclusões políticas. Estão meramente interessados nestas conclusões. Com esse método de in-vestigar Balzac, ou qualquer outro autor, não se pode conseguir grande coisa, aliás nada se consegue que tenha realmente valor inestimável.


A que época da história da sociedade burguesa a literatura de Balzac reflete? À época em que esta última trocava a luta revolucionária contra o feudalismo pela tarefa prática de realizar os preceitos de 1793. A utopia de liberdade e igualdade converteu-se em realidade no exercício do regime capitalista. O progresso burguês que os revolucionários do século XVIII divisaram como um transição harmoniosa da humanidade para a idade de ouro, revelou todas as suas profundas e insolúveis contradições. Este fator decisivo determinou o caráter das tendências principais da vida espiritual dos três primeiros decênios do século XIX.


Os escritores que sustentavam que a sociedade burguesa era o ideal, uniram-se sob o estandarte do liberalismo. Exteriormente pareciam seguir as pegadas dos discípulos do século das luzes; na prática, porém, estes mesmos liberais se diferençam deles no essencial, não só no que tange às idéias, mas também no juízo prático de suas perspectivas. Para os discípulos da idade da razão a glorificação da civilização burguesa foi uma ilusão, quimera sincera, em muitos aspectos até compreensível, se for con-templada à luz das relações burguesas do século XVIII, ainda prematuras. Mas a época pós-revolucionária destruiu rapidamente o fundo objetivo dessa ilusão. A descrição da sociedade burguesa como uma “harmonia natural de interesses” entrou em conflito objetivo com os fatos. Em conseqüência esta glorificação feita pelos liberais toma um caráter hipócrita e egoísta.


Os românticos são os primeiros no século XIX a descobrir a natureza antagônica da sociedade burguesa. Enquanto os liberais a pintam como um progresso contínuo, os românticos, pelo contrário, negam toda significação possível ao desenvolvimento burguês, encarando-o mais como um regressão histórica e volvendo suas vistas saudosas aos “bons dias passados” de uma sociedade patriarcal. Ao lado do liberalismo e do romantismo desenvolve-se uma nova, uma terceira corrente, profundamente distinta, que supera em muito as outras em significação e representa papel de imensa importância na preparação histórica do marxismo. A esta escola, que se pode chamar “estóica”, tomando o termo de Karl Marx, que o usou uma vez para caracterizar a economia política clássica inglesa, pertencem homens como Hegel, Goethe, Saint-Simon e Fourier. Estes homens formam uma unidade, não porque tenham um programa geral comum, nem por suas conclusões políticas, nas quais amiúde se diferençam, mas em razão de um ponto de partida comum em relação à civilização burguesa. Diferindo dos românticos, os intelectuais da escola “estóica” de pensamento admitem a necessidade histórica desta civilização e consideram-na um passo gigantesco no progresso social. Em contraste, contudo, com a escola liberal, negam-se admitir a teoria de que a ordem reinante seja o estado social ideal, o “melhor de todos os mundos possíveis”. Mostram que os êxitos da civilização capitalista estão inevitavelmente acompanhados de uma decadência em muitos aspectos importantes da vida e da cultura social e pintam verídica e profundamente os traços bárbaros desse “progresso”.


Observando a sociedade burguesa, concluem que no processo histórico o bem e o mal estão inseparavelmente comungados e de que a contradição é a lei básica da história, desenvolvendo assim sua natureza dialética. Tal conclusão teórica levou muitos destes discípulos da escola racionalista á convicção prática de que é essencial resolver essas contradições, isto é, destruir o estado burguês. Se para a grande parte deles, como, por exemplo, Hegel, esta resolução não passa de matéria de especulação abstrata, recomendando reconciliação com o status quo, outros, como Saint-Simon por exemplo, já procuram, ainda que de modo utópico, caminho para eliminar os antagonismos da sociedade mediante mudança prática fundamental.


Balzac não pode ser classificado entre os autores românticos nem entre os liberais. Sua reação agudamente negativa contra a restauração da ordem patriarcal e sua aceitação da necessidade histórica da sociedade burguesa distinguem-no definitivamente do primeiro grupo. Difere da escola de romancistas liberais e apologéticos pela veracidade e coragem no descrever os aspectos decantes do progresso burguês e, também por sua profunda compreensão das suas contradições internas.
O mecanismo nivelador da civilização burguesa, segundo Balzac, priva um homem de sua individualidade, converte-o num autômato, encadeia-o à rotina monótona de um ofício, sufoca todas as suas capacidades e energias.


Quando uma pessoa de talento não pode chegar a converter-se num criminoso, torna-se um ser, até certo ponto, anormal. Quanto mais fortemente o ambiente capitalista oprime os talentos e temperamentos individuais, mais ruinosas e exageradas se manifestam estas energias restringidas, uma vez que a pressão se alivia e o individuo recebe um pouco de liberdade para seguir suas inclinações: frugalidade, amor, sensualidade, ciência, etc. Nesta paixão libertada concentra o indivíduo todas as suas energias, sua vontade e seu fervor; está completamente absorvido por ela.


A sociedade burguesa é o “reino espiritual dos animais”, dos medíocres, da vulgaridade e da uniformização de tudo, desde os costumes correntes até a moral e a psicologia. O mundo do “grande igualador”, o dinheiro , sufoca todo o ímpeto extraordinário, viola todo o talento e toda a habilidade individual.


Nos tempos que correm, dinheiro significa prazer, consideração, amigos, sucesso, aptidões e até inteligência: esse doce metal pode ser objeto constante de amor e respeito dos mortais, qualquer que seja a idade ou condição, de reis a costureirinhas, de grandes proprietários a emigrantes. No entanto, esse mesmo dinheiro, fonte de todos os prazeres, origem de todas as glórias, é também objeto de todas as disputas .


Qual a contribuição de Balzac para o desenvolvimento artístico da humanidade? Consiste exatamente em ter conseguido no campo da prosa artística precisamente o que Hegel conseguiu no campo da filosofia: apresentou um quadro universal e verídico, ainda que, às vezes, de forma torcida e idealista, da natureza contraditória da sociedade burguesa em todas as suas manifestações. Apresentando este quadro, mostrou excelente compreensão da dialética social do ponto de vista de um pensador e especialmente de um artista. Apesar de seu valor ao criticar as faltas, mazelas, da sociedade, o realismo do século dezoito (Fielding e, às vezes, Diderot) havia agudamente diferençado o bem e o mal, a luz e as trevas. Todo o negativo na vida é conseqüência da barbárie da sociedade feudal. Em compensação, os defensores da nova ordem social glorificam a razão e a justiça, tudo o que é bom na natureza humana. Balzac está acima desse método artístico abstrato e unilateral; reconhece como lei social básica a união orgânica entre os lados positivos e negativos da vida e a ausência nela de fases absolutas. Sua convicção fundamental é que “não há nada de absoluto na humanidade” (Modesta Mignon); que a vida está dominada pela “lei das contradições e dos contrastes” (Uma filha de Eva). Em Ilusões perdidas fala do papel predominante da lei das contradições na vida humana.


O título Ilusões perdidas, segundo Wisnick, é uma fórmula de amplo espectro. Em princípio, refere-se simplesmente às desilusões individuais internas ao romance. Lukács, para quem o confronto com o rebaixamento dos valores “autênticos” origina o gênero, viu neste romance balzaquiano o próprio paradigma da destruição, pelo capitalismo, do humanismo revolucionário das primeiras concepções burguesas da sociedade e da cultura, assim como em D. Quixote o mundo dos ideais feudais cavaleirescos fora destruído pela sociedade burguesa em via de formação.


A dedicatória de Ilusões perdidas, a Victor Hugo, é indicadora de como o romance está situado num embate histórico onde se joga implicitamente o futuro da literatura. Mais do que uma dedicatória, Balzac faz ao outro escritor um pedido de aliança contra a potência nova, a imprensa, que passa pela primeira vez a ser assunto de literatura, como os marqueses, financistas, médicos e procuradores o foram em Molière. A inclusão é litigiosa, porque a imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a literatura já é assunto da imprensa.


O conflito entre paixão e equivalência geral é a hora da verdade em O Pai Goriot; encarna, monumentalizada, a contradição de todas as personagens, que lhe dão atenção pois nele se reconhecem. Essa verdade, entretanto, “é como um fruto saboroso, imediatamente devorado”, não é mais que uma sensação. Balzac está formulando a teoria da arte maldita. O citadino, desgastado e apatifado pelo dia-a-dia, experimenta com prazer insólito a violência da verdade que lhe diz respeito.
A fórmula-título do livro, além de conter um retrospecto histórico latente, parece ter também o poder de se realimentar da própria história de maneira multifacetada e paradoxal.


A história moderna pode ser lida, a partir de seu núcleo originário, como uma espiral de desilusões: do mundo feudal e aristocrático evocado nostalgicamente pelos primeiros românticos, do humanismo universalista burguês entregue aos especuladores (é o quadro de 1830) e rompido pela fratura da luta de classes exposta em 1848, desilusões agravadas no século XX pelo panorama das guerras mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo pelo stalinismo e pela ruína do império soviético.


Há uma linhagem da arte que segue o caminho oposto do qual Balzac desponta como um naïf, um “gênio ingênuo”, não só da economia política como da literatura, com sua grandiloqüência apaixonada e muitas vezes descalibrada de observador agudo e visionário romântico, arrastando tudo com a energia do seu vitalismo universal. Na linhagem radical da poesia e da prosa modernas, a arte empreende uma crítica das ilusões da própria linguagem, da representação ficcional (o que lhe custa um preço em negatividade); mas na arte a ilusão não pode deixar de ter assim mesmo um valor afirmativo, e essa afirmação é um diferencial inequívoco, ao mesmo tempo que gerador de uma seqüência infinita de mal-entendidos com a crítica jornalística.


A arte aceita a ilusão como seu bem de raiz, e isso lhe permite desfaze-la, além de suportar a desilusão. O paradigma jornalístico, tal como é percebido por Balzac, denuncia a ilusão que recusa no seu nascimento, e se vê condenado a produzi-la e reproduzi-la ao infinito.


A sociedade burguesa, que exige, pela sua existência, um macroromance das dimensões da Comédia Humana, onde se encerra o seu grande teatro, parece inviabilizar, ao mesmo tempo, ou a médio prazo, a sua mise-em-scène totalizante: a imprensa é o grande sintoma viral desse fato, no romance de Balzac, pululando versões que pulverizam a aspiração à verdade em verossímeis sem lastro. A expansão da indústria editorial cria o campo litigioso em que se confrontam, no mesmo veículo, através da representação literária e da representação jornalística, duas formas de ficção que disputam a mimese da vida moderna. Balzac chamou para si, no corpo da própria obra, tomando-o de certo modo como uma afronta pessoal em grande estilo, ou em grandes proporções, o destino desse drama histórico-literário que ele percebeu talvez melhor do que ninguém.


O cenário cosmopolita, com a trama dos movimentos da ribalta e dos bastidores da vida parisiense, vem para o primeiro plano do romance na segunda parte (“Um grande homem da província em Paris”), depois das primeiras iniciativas intelectuais de Lucien Em Angoulême, onde freqüenta os saraus provincianos de uma certa senhora De Bargeton, mulher casada com quem acaba por fugir para Paris (adotando o sobrenome nobre decaído da mãe, Rubempré, contra o plebeu do pai, Chardon). Ao lado dos arroubos líricos, aventureiros e oportunistas de Lucien em busca do reconhecimento parisiense, temos os esforços pacientes e generosos de sua irmã Ève e de seu cunhado David Séchard para ajudá-lo entre dificuldades de toda ordem. David Séchard tenta, paralelamente, de maneira desinteressada e empresarialmente ingênua, inventar um processo novo de fabricação de papel que torne o produto mais barato para atender às necessidades crescentes da indústria editorial e da imprensa florescente na década de 1820 (quando se passa a narrativa), e na década de 1830, ao final da qual foi escrita.
As vicissitudes do inventor, às voltas com as dificuldades técnicas e com as ciladas dos fabricantes que queriam se apropriar de sua possível descoberta, são o assunto central da terceira parte (quando Lucien, malogrado depois dos sucessos momentâneos em Paris, se vê obrigado a voltar a Angoulême, na penúria). A história de Lucien de Rubempré prosseguirá, no contexto maior da Comédia Humana, em Esplendores e misérias das cortesãs, com complicações novas.


A relação entre Lucien e David Séchad não deixa de remeter à infra e à superestrutura da indústria editorial, cujo nervosismo atravessa o romance, indo, pois, da observação da produção artesanal e industrial do papel à análise das condições de produção do discurso literário e jornalístico, com todas as etapas intermediárias de quebra. Na segunda parte de Ilusões perdidas está o nó das relações entre literatura e jornalismo, anunciado e envolvido pelo contraponto que o livro estabelece entre esses dois diferentes tipos de “poetas”: o jovem narcisista que, pelo triunfo e o fracasso mundanos, perde os seus ideais literários e morais, e o anônimo e implacável trabalhador-inventor que, moralmente avesso ao turbilhão da capital, e do capital, luta pelo melhoramente técnico dos meios impressos. (A província tende a ser, para o lado idealizante do antimodernismo de Balzac, o celeiro dos “bons”: David Séchard não é movido pelo desejo do lucro nem da glória, embora diretamente envolvido, pela natureza do seu trabalho, com os movimentos da industrialização e do capital).


A história moderna pode ser lida, a partir de seu núcleo originário, como uma espiral de desilusões do mundo feudal e aristocrático evocado nostalgicamente pelos primeiros românticos, do humanismo universalista burguês entregue aos especuladores (é o quadro de 1830) e rompido pela fratura da luta de classes exposta em 1848, desilusões agravadas no século XX pelo panorama das guerras mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo pelo stalinismo e pela ruína do império soviético (apontando somente alguns marcos da história política sem mencionar minimamente os naufrágios da história cultural).
Assim, o mesmo Lukács, por exemplo, lido hoje, é atingido por um novo efeito de “ilusões perdidas” quando diz que Balzac, no crepúsculo de uma “época de transição”, faz a ponte entre “o sol do humanismo revolucionário da burguesia” que “já se havia posto” e “o alvor do nascente novo humanismo democrático e proletário” que “ainda não era visível”. No pôr-do-sol atual de todo um ciclo da tentativa socialista, o processo das ilusões perdidas entra em verdadeiro curto-circuito. Pode-se dizer que, se as ilusões burguesas são destruídas pela idéia socialista, as ilusões do socialismo são destruídas ainda pelas ilusões burguesas (que parecem extrair a sua resistência, em grande parte, da própria capacidade de se alimentar da corrosão). Todo esse panorama aceleradamente controvertido e especular nos devolve, de alguma forma, ao romance de Balzac.


Balzac ataca também, do ponto de vista estético, os apologistas do “progresso”, “curvados servilmente ante os rudes inventos da tecnologia industrial moderna” (Os camponeses).


A crítica estética do capitalismo, expondo o antagonismo que existe entre o modo burguês de viver e a arte e a poesia, desempenha importante papel na Comédia humana. A classe média da sociedade burguesa constitui uma massa inerte e insuportavelmente descolorida, de seres indiferentes e insensíveis a todos os valores espirituais.


A arte também perece na sociedade burguesa porque não pode encontrar material que seja digno dela. Um burguês não tem necessidades artísticas.


Balzac pintará realmente na Comédie Humaine a dinâmica das finanças e do capitalismo empresarial, apesar dos seus próprios preconceitos e preferências políticas “reacionárias”? Certamente, a sociedade do seu tempo é retratada na sua obra, mas a forma estética “absorveu” e transformou a dinâmica social e fez dela a história de determinados indivíduos – Lucien de Rubempré, Nucingen, Vautrin. Estes agem e sofrem na sociedade de seu tempo, são, na verdade, representantes dessa sociedade.
Assim diz-nos Herbert Marcuse acerca da qualidade estética da Comédie Humaine:


No entanto, a qualidade estética da Comédie Humaine e a sua verdade reside na individualização do social. Nesta transfiguração, o universal no destino dos indivíduos brilha através da sua condição social específica .
Considerado do ponto de vista da feitura, O primo Pons representa, de modo completo, os processos de arte de Balzac. Neste livro, como em todos os outros, ele estabeleceu o interesse do drama sobre vários temas, e cada um desses temas levanta uma questão de elevado alcance moral, social ou psicológico.


Um dia, finalmente, a empoeirada vidraça se limpa, o interior se restaura, o auvernhês abandona os trajes típicos de veludo, enverga uma sobrecasaca! e aparece-nos como um dragão guardando seu tesouro; cerca-se de obras-primas, torna-se conhecedor perspicaz, decuplica o capital e não se deixa mais apanhar em nenhum logro, conhece todos os segredos do ofício. O monstro está lá, como uma velha no meio de vinte moças que se oferece ao público. A beleza, os milagres da arte são indiferentes a este homem ao mesmo tempo delicado e grosseiro, que calcula bem seus lucros e trata rudemente os ignorantes .


Nenhum romancista já foi mais penetrado do que ele dessa doutrina da importância do assunto, sobre a qual Goethe volta constantemente nas suas conversações com Eckermann. Há em o Primo Pons uma primeira tragédia que exprime o título geral: Os parentes pobres. Em que se transformam as relações de família, nos dados modernos da sociedade, entre as pessoas das famílias que estão na penúria e das que se encontram na opulência? Eis um dos problemas localizados pelo livro. Em que se transforma a amizade entre dois velhos igualmente brutalizados pela vida e que encontram uma fraternidade de eleição todas as doçuras de afeição de que os privou a sorte? Eis um segundo problema. De que maneira os seres instintivos, tal como existem em abundância, entre o povo, podem tornar-se, sob a influência de uma paixão inesperada, tão criminosos de fato como eram honestos em aparência, eis um terceiro desses problemas).


A diferença fundamental entre Balzac e os escritores burgueses da escola liberal consiste não tanto na sua crítica da sociedade como no caráter integral dessa crítica.


Balzac tira todas as fases negativas da sociedade burguesa de seus princípios fundamentais, mostrando que está longe de ser perfeita, que a ordem burguesa por sua estrutura interior está condenada ao caos e a conflitos desastrosos. Para os liberais, a superioridade absoluta da sociedade burguesa sobre a ordem antiga, o fundamento do seu direito de ser chamada “modelo” e “exemplar” era visto sobretudo à luz da liberdade pessoal e da independência de cada cidadão de qualquer coação externa. Para Balzac, contudo, este principio fundamental da sociedade burguesa é um princípio anti-social, fonte de inumeráveis desastres. Estabelecer o interesse próprio como pedra de toque da sociedade é, segundo Balzac, um mandamento dos piores instintos da natureza humana: o egoísmo e a cobiça. “A sociedade não tem outro sustentáculo senão o egoísmo. Todo indivíduo crê em si mesmo...” (O médico rural). “Apodera-se de todos uma esperança e uma ambição de chegar per faz et nefas ao paraíso terrestre da luxúria, da vaidade e dos prazeres, matando a alma e prejudicando o corpo só por uma breve possessão desta terra prometida.” (Eugenie Grandet)). O mundo converte-se num campo de batalha sem misericórdia onde cada um luta contra os demais, onde “o egoísmo mais selvagem e mais hábil vence” (Uma filha de Eva), onde os homens “lutam e se devoram como as aranhas num jarro” para citar Vautrin (Pai Goriot).


A exemplo de Homero ou Ésquilo, Dante ou Shakespeare, Balzac foi o espelho móbil e profundo, onde vieram refletir-se, infrenes e ululantes, todas as fatalidades humanas. Ele não pretendeu reformar os homens senão reproduzi-los, transmitindo-nos, sem retoques infiéis, as suas diferentes máscaras. Não há nos seus tipos uma filosofia preconcebida, um sistema de idéias formado no raciocínio puro de Balzac. Há unicamente exemplares humanos em face das contingências.
Desejoso de produzir efeito impressionante pela evocação da realidade concreta, não teria obtido esse resultado senão por meios abstratos, articulando todas as partes dessa realidade com uma armadura e ligações conceptuais. Disso resultaria uma constante confusão entre a prosa estética e a prova racional, de sorte que o leitor nunca saberia precisamente o sentimento que tem da realidade de uma cena, afinal, não é apenas uma ilusão devida à verdade do comentário abstrato que a enquadra.
Na posição e dedução abstrata dos casos psicológicos, Balzac gasta tesouros de inteligência que lhe asseguram incontestável soberania sobre todos os moralistas presentes, passados e, sem dúvida, futuros. Ninguém conheceu melhor que ele a vida média e os mil aspectos que pode revestir uma idéia social posta em contato com a experiência: vale a pena reler estas admiráveis análises em que Balzac definiu as relações entre os noivos e os esposos: Memórias de duas jovens esposas, Uma dupla família, O contrato de casamento, Uma filha de Eva, etc.


O retrato de Natália Evangelista, por exemplo, é uma obra-prima, e a atitude de Félix de Vandenesse em face de sua mulher representa uma das situações mais profundas, mais delicadamente naturais já concebidas. Mas, do ponto de vista que nos interessa, é essencial observar que o acento, nessas narrativas, está na análise abstrata, concebida e executada à margem da ação e antes dela; e que a ação representa aí apenas um papel complementar.


(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)


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