#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTRE - UMA LEITURA DO OUTRO E O OLHAR EM “O SER E O NADA"# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA



POST-SCRIPTUM: Esta DISSERTAÇÃO EM SARTRE foi publicada em livro pela GRÁFICA DIAMANTINA, em 2003.


2.0 - SUJEITO E OBJETO - II PARTE


A idéia de uma relação dialética com o Outro é categoricamente rejeitada em favor da circularidade existencial, estipulando que “jamais podemos sair do círculo”. O problema da extensão da dialética se concentra em dois pontos: a dialética na História e a dialética na natureza. Quando se trata de saber se existe uma dialética da natureza, a questão torna-se sobremodo controvertida, e se há autores que afirmam de um modo absoluto tal dialeticidade, outros negam até mesmo o sentido do problema, como é o caso de um Kojéve. O sucesso da dialética em alguns setores científicos desperta o otimismo unânime dos marxistas, como também a simpatia reservada de um Gurvitch, ainda as reticências de Sartre.


Num debate sobre a dialética, realizado com diversos marxistas e posteriormente publicado sob o título de Marxismo e Existencialismo, Sartre afirmara: “O homem é um ser dialético no meio de uma natureza em exterioridade”.


Afirmar que a natureza é exterior a si só se entende a partir de um conceito, digamos, unívoco de interioridade: a interioridade como sinônimo estrito de consciência; dizer que a natureza é exterior a si própria redunda no mesmo que dizer que ela não tem consciência, e aqui também o argumento permanece negativo.


Na Crítica da Razão Dialética, Sartre afirma: “No momento em que a pesquisa marxista assumir a dimensão humana (isto é, o projeto existencial) como o fundamento do Saber antropológico, o existencialismo não terá mais razão de ser: absorvido, excedido e conservado pelo momento totalizante da filosofia, ele cessará de ser uma pesquisa particular para tornar-se o fundamento de toda pesquisa”. Observe-se que o fundamento não reside antes do antropológico: o próprio antropológico se reveste de caráter fundante. A dimensão humana é fundamento, e tudo como que se encolhe aos limites de uma antropologia.


O ser perde vigência de fundamento e põe em xeque o sentido metafísico da participação; dessa maneira, o outro que não o ser é forçado a radicalizar-se enquanto outro e a buscar em si mesmo sua razão de ser: o para si encontra no nada sua origem e seu fundamento. A problemática da História deve ser explicitada a partir do outro que não o ser, desde a alteridade radical. Em Crítica da Razão Dialética, Sartre assim afirma: “O lugar de nossa experiência crítica não é outra coisa que a identidade fundamental de uma vida singular e da história humana”. Essa identidade vem a constituir-se através da totalização dialética; a dialética é uma “totalização que nos totaliza”. Neste particular, Sartre assimila a lição de Hegel, embora inverta o seu sentido: “se minha vida, aprofundando-se, torna-se a História, ela deve descobrir-se a si própria no fundo de seu livre desenvolvimento como rigorosa necessidade do processo histórico, para se reencontrar, mais profundamente ainda, como a liberdade desta necessidade e enfim como necessidade da liberdade”.


Em sua crítica a Hegel, Marx indica claramente o caráter do devir humano, ao mesmo tempo em que reconhece Hegel como precursor no desvendamento da processualidade humana e de sua tendência imanente: “ao apreender o sentido positivo da negação referida a si mesma (ainda que sempre em forma estranhada), Hegel apreende o auto-estranhamento, a alienação da essência humana, a desefetivação e desobjetivação do homem, como um ganhar-se a si mesmo, como exteriorização da essência, como objetivação, como efetivação.


Toda a análise na Crítica da Razão Dialética está situada no nível do Outro que não o Ser, da alteridade, do contrário do ser. Ao invés de desenvolver uma dialética adstrita ao mundo das Idéias, como em Platão e em toda a História da Metafísica, empenha-se em elucidar a dialeticidade do Outro que não o Ser, precisamente desse Outro que, em Platão, termina soçobrado num mundo de sombras.


Partindo da “solidão ontológica do Para-si”, a existência do Outro é estabelecida às custas de identificar objetividade com alienação e estipulando a insuperabilidade absoluta dessa alienação.


Como se poderia escapar do círculo pela solidariedade que se ergue sobre o fundamento de uma condição compartilhada, se a “pura e simples existência” do Outro converte a objetividade em escravidão permanente pela definição da “essência” de toda situação como alienação: como se poderia sequer conceitualizar a possibilidade de uma luta social contra a objetividade reificada, se é atribuída à reificação a dignidade ontológica de “solidificação” e “petrificação”, tal como contida no “significado profundo do mito de Medusa”. E como se poderia devisar um fim do desamparo da individualidade isolada mediante uma reciprocidade dialética e uma mediação com outros, se a dialética da reciprocidade é convertida em uma circularidade autofalida e a mediação é a priori condenada como o domínio do Outro em meu próprio ser, depois de ter eu caído miticamente pelo “vácuo absoluto” na objetividade-alienação-petrificação da minha situação.


Há outros modos de produzir mudanças radicais no mundo social. As pré-condições necessárias de uma mudança social importante são: (1) a identificação e utilização das contradições, forças e instituições historicamente dadas, e (2) a adequação do sujeito da ação à tarefa.


Se se concebe o sujeito como um indivíduo isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série infinita. A realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito que é, ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado (por meio de sua classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo) na comunidade a que pertence.


Aos olhos do indivíduo isolado, a totalidade social tem de parecer, naturalmente, o agregado misterioso de passos específicos que ele não pode concebivelmente controlar para além de um ponto extremamente limitado. Assim, esse indivíduo isolado que se contrapõe – dentro do espírito da dupla dicotomia sartreana – não só ao mundo dos objetos, mas também aos seres humanos do dado mundo social caracterizado como “o outro”, nada mais pode fazer do que admitir a impotência de suas ações pessoais no “mundo das coisas utilizáveis” e deixar-se levar pelas curiosas estratégias do mundo “mágico”.


A herança heideggeriana de Sartre pesa sobremodo neste sentido. A concepção não-dialética do mundo como uma totalidade não-estruturada e a caracterização, a ela intimamente ligada, do sujeito da ação humana como indivíduo isolado transmutam-se em “estruturas existenciais” a-históricas, e o mundo social é subjugado pelo mundo da magia: o mundo da emoção.


No contexto dos pressupostos individualistas de Sartre, a solidão ontológica do Para-si e o caráter essencialmente degradado da função mediadora do Outro, não pode haver outro caminho senão esse. Não pode haver consciência social genuína, não só no nível da “humanidade como nossa”, mas igualmente no domínio das relações de classe.


A dimensão fundamental da realidade humana, a possibilidade, articula-se como “a presença do futuro enquanto aquilo de que se carece, e enquanto aquilo que, pela própria ausência, revela a realidade”. Quanto aos indivíduos particulares, ficamos sabendo que “Todo homem define-se negativamente pela soma total de possíveis que são impossíveis para ele; isto é, por um futuro mais ou menos bloqueado”. E quanto ao todo social complexo como a cidade, lemos que “uma cidade é uma organização material e social que deriva sua realidade da ubiqüidade de sua ausência”. Uma vez mais Sartre procura introduzir restrições históricas e mais uma vez a estrutura original tende a reafirmar-se.


Pode-se perceber esse dilema no modo como Sartre aborda a História. Ele critica o marxismo por seu suposto fracasso em estudar as estruturas da História – objeto de investigação de Sartre na Crítica da Razão Dialética – “por si mesmas”. Contudo, paradoxalmente, a análise ontológica que faz dessas estruturas, sob o aspecto das “possibilidades teóricas de suas combinações”, tende a negar a historicidade da História, ao defini-la como uma estrutura existencial básica: “Se a História me escapa, não é porque eu não a faça; é porque o outro a está fazendo também”. Se a história me escapa não é porque o “outro” é o que quer que pareça (isto é, antagonicamente oposto a “mim”, por razões sócio-históricas determinadas), mas porque ele é o “ outro” (isto é, devido à estrutura existencial ontológica do “próximo”. Conseqüentemente, ou o outro deixa de ser o outro, ou a História continuará do modo como a conhecemos do passado, ou seja, fora do controle humano consciente.


Neste sentido em que nos fundamentamos, devemos proceder, para a compreensão e entendimento de em que nível se possa encontrar e fundamentar a conciliação do existencialismo e marxismo, o outro segue as mesmas trilhas da superação do em-si, isto é, a busca de tornar a liberdade uma responsabilidade com os homens, a humanidade, o engajamento com a História.


E como essas possibilidades quando muito estão confinadas a momentos transitórios – como a obliteração do antagonismo entre o “eu” e “o outro” no “grupo amalgamado” estruturalmente instável – “o outro” continua a lançar sua imensa sombra negra sobre a história, graças à determinação negativa de Sartre da estrutura ontológica existencial. Se se mede o valor do marxismo dentro de um quadro de referência cujo centro é o indivíduo e sua consciência (visando a atribuir responsabilidade até mesmo á consciência “não-reflexiva”) até mesmo uma concepção dialética do marxismo parecerá mecânica. Qualquer forma de marxismo, avaliada da perspectiva de uma ontológica existencial-individual, parecerá carente de “fundamentação”.


Na medida em que esse fundamento não se defina em termos do indivíduo e de seu projeto existencial, as condições e leis históricas parecerão mecanismos externos anteriores ao indivíduo, e a filosofia que se centra nelas parecerá uma filosofia mecânica, seja qual for seu mérito no nível das “hipóteses históricas”, as quais, por definição, devem ser estabelecidas sobre a base de uma “ontologia fundamental” (antropologia existencial) e, assim, não podem fundar a si mesmas.


Na medida em que as “hipóteses históricas” do marxismo não podem ser subsumidas à concepção existencial da ontologia (antropologia) o marxismo deve ser “validado”, “complementado”, “corrigido” etc. – em suma, deve ser suplantado pela busca existencialista.


A atitude ambivalente de Sartre para com o marxismo tem raízes na incompatibilidade entre a antropologia existencialista e a ontologia marxista. Para Marx, ontologia e antropologia não são sinônimos; a primeira é a base inquestionável da última e, nesse sentido, a “precede”. Conseqüentemente, o problema não é simplesmente a “materialidade”, ou seja, “o fato de que o ponto de partida é o homem como organismo animal que parte de necessidades e cria conjuntos materiais”, mas precisamente as condições ontológicas objetivas sob as quais podem ocorrer tais desenvolvimentos. Isso é que faz Marx insistir no princípio ontológico inerente ao desenvolvimento da tecnologia moderna, que consiste em “resolver cada processo em seus movimentos constitutivos, sem considerar de modo algum a possibilidade de sua execução pela mão do homem”.


Não nos deve preocupar, aqui, se se deve ou não aplicar o nome de “dialética da natureza” (e, se for o caso, com que ressalvas) ao estudo dessas condições. O que interessa é que elas são claramente não “antropológicas” – dizem respeito a leis fundamentais do movimento da natureza e aos pré-requisitos do desenvolvimento humano conformes a essas leis naturais objetivas e em resposta a elas – mas constituem os pontos de referência últimos da ontologia à qual se deve integrar uma concepção dialética da antropologia como uma parte no todo.


Exemplar para a continuidade de nossa apresentação é a análise marxiana da relação entre o homem e a mulher, pois Marx considera que essa é “a relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser humano”. A seu ver, “nesta relação natural do gênero, a relação do ser humano com a natureza é imediatamente a sua relação com o ser humano, assim como a relação com o ser humano é imediatamente a relação dele com a natureza, a determinação própria dele”.


A partir dessas explicações acerca de Marx, retornamos à questão do outro. A descoberta mais dramática tem lugar quando o Outro levanta os olhos e me observa. O seu olhar abala radicalmente o meu estado ontológico – de súbito, sinto-me transformado de sujeito em objeto. Tal olhar não é, de fato, algo de neutro e isso eu sinto de imediato. Assim como ao olhar o outro eu o tinha objetivado, também agora o olhar do outro me objetiva. Seja de que forma isto for analisado, a opinião que se possa ter sobre este processo, algo é certo: é apenas deste modo que se efetua a descoberta do Outro como sujeito, assim como a relação entre o Eu e o Outro.


As relações entre o Eu e o Outro são em si mesmas antagônicas: o Outro limita-me e nega-me, enquanto, por outro lado, existe apenas como um “eu rejeitado”. É verdade que o Eu se esforça por compreender o Outro, mas, por definição, não o pode atingir: o Outro, o homem, não é, em última análise, possível de ser conhecido pelo outro homem. Sentir (no sentido hermenêutico e fenomenológico de einfühlen) e, ao mesmo tempo, conhecer o homem é a priori impossível: “se o sinto (éprouve) com clareza, não o consigo conhecer; se o conheço, se ajo sobre ele, alcanço apenas o seu ser-objeto e a sua existência provável no mundo; nenhuma análise destas duas formas é possível”.


Apesar da situação de natureza intrinsecamente conflitual, a relação entre o Eu e o Outro se processa também como apaixonada procura de relações positivas. É à caracterização de tais relações que Sartre dedica ao Outro grande capítulo desta fenomenologia da intersubjetividade e que surge, desde logo, como um dos centros nodais de toda a obra.


O para-si não pode ser concebido como uma realidade que, em um segundo momento e como que aleatoriamente, buscasse atingir um ser perdido na pura exterioridade; também não satisfaz entendê-lo como um existente provido de certas tendências. Antes ao contrário, sendo nadificação original, o para-si é constitutivamente relação ao em-si, em seu próprio fundamento relaciona-se necessariamente ao em-si. Assim, o tema da intencionalidade adquire uma dimensão ontológica. Sendo negação interna, o para-si faz-se habitar por uma fome de ser, de afirmação de si no ser – mas de um ser no qual jamais consegue incidir. Ele é relação ao em-si, e apenas relação; o para-si confunde-se com seu próprio nada, e permanece separado do em-si por nada. “O para-si é fundamento de toda negatividade e de toda relação, ele é a relação”.


Explica-se, pois, que o olhar não se possa desembaraçar da categoria do ser objeto.


O encontro do sujeito com o Outro determina, pois, a inquietante descoberta da “falta” e da heteronomia do Eu. O sujeito dá-se, de fato, conta de ter sido visto e descoberto na sua própria objetividade (que para ele é inatingível) através de algo que está fora de si: “o olhar do Outro constitui o meu corpo na sua nudez [...]. O outro possui um segredo: o segredo daquilo que eu sou [...]. O outro funda o meu ser na medida em que este ser se encontra sob a forma do ´isto existe´”


A existência do sujeito não pode deixar de ser expressa como “fuga” e como “procura”, como superação da sua própria facticidade e como (tentativa de; vimos anteriormente a importância de “tentar”) conquista do “fundamento” que lhe falta. Tudo isto não se vai reunir a uma qualquer essência pré-existente do Eu. O Eu, o sujeito humano, é esta permanente fuga e esta imparável procura: a “relação” que ele instaura com o Outro através dessa fuga e dessa procura é constitutiva da sua própria essência. Na medida em que o objeto do sujeito é a anulação da sua própria heteronomia através da anulação do Outro como alteridade, tal relação pode configurar-se de duas maneiras diferentes: o sujeito pode tentar tomar o lugar do Outro, conjugando-se harmoniosamente com a transcendência que ele é e cuja suspeita fazia sentir mesmo sem fundamento; e pode, pelo contrário, tentar anular tal transcendência através da sua negação, isto é, transcendendo-a por sua vez.


A primeira das análises dos modos indicados é o amor. O ideal do amor, seu motivo e seu fim, consiste no empenho para estabelecer a unidade com o outro, isto é, “uma fusão de consciências em que cada uma delas conservasse sua alteridade para fundar o outro”. O amor procura constituir a síntese de duas transcendências, e isso de tal modo que a liberdade de uma só possa existir pela liberdade da outra; eu seria eu enquanto outro, e o outro enquanto eu. Nessa experiência, as coisas se passam como se se pudesse aplicar o argumento ontológico ao nosso ser-para-outro: “Nossa essência objetiva implica a existência do outro e, reciprocamente, é a liberdade do outro que funda nossa essência. Se pudéssemos interiorizar todo o sistema seríamos fundamento de nós mesmos”, ou seja, deuses. Tal empreendimento só seria realizável, uma possibilidade, se nos fosse dado vencer a contingência original de nossas relações com o outro. A contingência impõe-se como irredutível, e a unidade, conseqüentemente, como irrealizável; o amor não chegar a superar a raiz mesma da contingência, o fato de que as consciências estão separadas por um nada invencível: “o amado é olhar”. Assim, o amor se desafoga num esforço contraditório, e “os amantes permanecem cada um para si em uma subjetividade total”.


O projeto do sujeito de se unir a um Outro conservado e respeitado na sua liberdade e no seu ser-sujeito (não foi como sujeito que o Outro me olhou, fazendo-me sentir objetividade heterônoma?) traduz-se no desejo de o amante de possuir o amado sem o objetivar, sem o reduzir a coisa, isto é, sem dele fazer uma espécie de brinquedo ou de autômato destituído de personalidade.


A impossibilidade de realizar tal projeto por parte do sujeito perpassa já pela impossibilidade do amor-deste amor. Tendo partido do desejo de amar o companheiro como sujeito, o amante em breve manifesta a exigência de se fazer amar de modo absoluto e exclusivo. O amor encarna então na imperiosa vontade de ser amado – e de ser amado de uma certa maneira. A esta primeira contradição respeitante ao propósito de assumir (e respeitar) o Outro como liberdade segue-se depois uma outra: também o amado, se for realmente considerado como sujeito livre, desejará amar o amante da mesma maneira que é amado. Ou seja, desejará ser-amado.


Sartre apresenta do outro modo tentado pelo sujeito para eliminar a alteridade: a anulação do Outro. Esta anulação parte inicialmente do meu olhar: fixando o olhar sobre quem me observa, reajo ao Outro e à sua liberdade (graças à qual ele me observava) até por fim o obrigar a reconhecer a minha liberdade. Escolho, depois uma atitude em relação ao Outro (e mesmo em relação aos Outros) baseada na indiferença: “Pratico então uma espécie de solipsismo de fato [...], ajo como se estivesse sozinho no mundo; ´toco ao de leve´ as pessoas tal como ´toco ao de leve´ uma parede, evito-as tal como evito os obstáculos, a sua liberdade-objeto não é para mim senão o seu ´coeficiente de adversidade´; não imagino sequer que elas me possam olhar”.


Não nos admiremos que uma outra expressão fundamental do projeto de anulação do Outro, o ódio, vá ao encontro de um falhanço certo. O ódio é um estado de resignação, olhado, sim, à luz de uma submissão à comodidade, confortabilidade, e também aos sofrimentos da vida, o destino está traçado, o destino é dado, negando assim a liberdade. O sujeito resigna-se a viver só através de uma supressão prévia de todos os outros sujeitos. Ainda que realizado o projeto de anulação do outro, este falha o seu próprio objetivo. Suprimidas, as outras consciências continuarão a existir na consciência daquele que odeia, ele não pode fazer com que elas nunca tenham existido.


A que conclusão chegaríamos? Em verdade, a conclusão a que se chega a análise de todo o tema do sujeito, tendo como alicerce o olhar e o outro é que somos devolvidos, dialeticamente, do ser-que-olha ao ser-visto, Qualquer que seja a nossa atitude diante do outro, nossa relação se define como instabilidade. Trata-se sempre do mesmo ideal impossível de captar simultaneamente a liberdade e a objetividade do outro enquanto esta objetividade determina o ser-para-outro.


Sartre ainda se detém em um último problema: o ser-com e o nós. “O nós abrange uma pluralidade de subjetividades que se reconhecem umas às outras como subjetividades”. Toda a argumentação de Sartre busca como que limitar o nós à consciência particular: o ser-para-outro precede e fundamenta o ser-com-outro. Com efeito, Sartre elucida o nós na perspectiva do olhar, isto é, obedecendo às mesmas coordenadas que explicam o ser-para-outro.


No contexto dos pressupostos individualistas de Sartre, a solidão ontológica do Para-si e o caráter essencialmente degradado da função mediadora do Outro, não pode haver outro caminho senão esse. Não pode haver consciência social genuína, não só no nível da “humanidade como nossa”, mas igualmente no domínio das relações de classe. Ou somo confrontados ás manifestações simbólicas diretas de relações ontológicas profundas, ou à “experiência psicológica do homem histórico”. Por conseqüência, a idéia de “consciência de classe” é relegada à posição de uma “experiência estritamente psicológica” e derivada, que não pode afetar significativamente as relações ontológicas fundamentais: “(...) o Nós-sujeito é uma experiência psicológica realizada por um homem histórico imerso em um universo de trabalho e em sociedade de tipo econômico definido. (...) O nós-sujeito é uma experiência psicológica que supõe, de um modo ou outro, que a existência do Outro como tal já nos foi revelada”.


Como conseqüência, o “Nós-sujeito”, em sua caprichosa instabilidade, deve necessariamente postular a permanência da classe opressora, da qual depende estruturalmente nessa ontologia de cabeça para baixo de O Ser e o nada, em fragrante contraste até mesmo com os insights de Hegel, sobre essa questão, em sua exposição sobre a relação Senhor-Escravo, para não falar em Marx.


Assim, as experiências psicológicas do homem histórico, aprisionado num universo de trabalho de objetividade alienada, admitem a inevitabilidade da impotência como uma imagem especular degradada da inutilidade ontológica última da paixão humana.


Em sua análise do modo pelo qual “o Outro me determina”, subitamente nos coloca diante de um insight extraordinário: “Nossa relação não é uma oposição frontal, antes, porém, uma interdependência oblíqua”. Devemos apreciar a importância desse insight em contraste com muitas teorias que retratam o conflito social sob um modelo de oposição frontal e contribuem pesadamente para a geração de expectativas desapontadoras.


Uma estratégia social adequada, erguida sobre a base de uma compreensão histórica correta, requer a definição precisa do “momento” de uma mudança histórica superior junto com seu “ante” e “depois”, em termos das modalidades complexas das relações estruturais predominantes e de suas transformações dialéticas.


A história possui suas estruturas: se assim não fosse, ela nos escaparia irremediavelmente.


Insights como esse que citamos – que, paradoxalmente, surge de um projeto individualista de definição de sua posição pessoal na forma de uma “eqüidistância” em relação às forças sociais de maior importância, fixando ontologicamente relações na imobilidade a-histórica do circulo existencial – representam uma contribuição maior para o aprofundamento da compreensão histórica.


O significado último da realidade humana é equivalente a revelar o caráter insolúvel das contradições (daí todas as categorias de “totalidade irrealizável”, “unificação impossível”, “ideal impossível”, “dilema insolúvel de transcendências radicalmente separadas”, o “circulo de relações com o “outro”, e coisas assim).


O mundo do qual nos devemos apropriar deve também ser produzido, no modo dialético de uma “apropriação produtiva e produção apropriativa”. Existe uma solução alternativa, designadamente, uma abordagem segundo a qual o ato de apropriação não precisa ser concebido como ato simbólico, se eliminamos a contradição entre propriedade e utilização através da abolição da propriedade e da simultânea acessibilidade coletiva à utilização, juntamente com a harmonização da totalidade das relações apropriativas reais com a totalidade das relações produtivas na auto-realização da ação transindividual e transhistórica. Contudo, é radicalmente incompatível com os horizontes ontológicos de O Ser e o nada.


Todas estas experiências deixariam de ter sentido se não significasse que sou a minha liberdade, a minha busca, saídas das profundezas, constituindo a pulsação ou o próprio ritmo da minha existência, de me entregar inteiro à busca não só do sentido da vida, mas a Vida mesma, de existir o mais plenamente possível.


Para isso, tenho de comprometer e de me colocar ao serviço desse compromisso, desta responsabilidade, que é, na clarividente interpretação de Kierkegaard, tensão e risco – uma fidelidade que se tornará, pelo seu próprio exercício, não somente a atestação perpétua do meu ser e do seu valor, mas ainda fidelidade criadora quanto mais eminente é o que ela atesta.


Em Homo Viator, Gabriel Marcel procurou mostrá-lo concretamente, delineando uma “metafísica da família”. Há, diz ele, um “mistério familiar” que ultrapassa tudo o que, em termos de puro ter, se entende vulgarmente pela palavra “família”. Com efeito, não se trata simplesmente de conservar ou de aumentar um determinado patrimônio material, mas sim de participar num valor, ou seja, numa hierarquia reconhecida e respeitada, e de participar também numa presença que é, em mim, a presença de um nós privilegiado, que se manifesta na comunidade de um lar e de uma paisagem familiar, com tradições e sentimentos que não podem ser objetivados, mas que são tanto mais profundamente vividos quanto melhor reproduzirem a fisionomia do próprio amor e corresponderem ao mais sólido alicerce da esperança.


No segundo movimento da peça teatral Bariona, escrita e encenada por Sartre, no Stalag XII D, onde serviu na Segunda Guerra Mundial como meteorologista, um discurso de pastores. Estamos na montanha, acima de Betsur, onde Paulo, Pedro, Simão e Caifás recebem a visita do Passante e depois a do Anjo, que vem anunciar-lhes um nascimento misterioso em Belém. Estamos, em seguida, na praça de Betsur, ao alvorecer, onde os mesmos, emocionados, quase trêmulos, vê informar aos aldeões o que, na montanha, lhes foi anunciado pelo Anjo. Hino à Natureza: “estalos, trauteios, murmúrios por toda parte (...) parecia que brotos desabrochavam em árvores invisíveis, parecia que a natureza tinha escolhido aqueles planaltos desertos e gelados para dar a si mesma, numa noite de inverno, a festa magnífica da primavera”. Hino à Esperança, a pura e bela esperança, suscitada pela Anunciação: “há noites como esta, diz Paulo; parece que vão parir alguma coisa, de tanto que pesam e depois, afinal, tudo o que sai é um pouco de vento, pela aurora.” Hino, canto de amor à Infância – a Infância em si e, depois, a Infância dessa criança, o menino Jesus, que acaba de nascer: “pronto! Diz o Anjo, ele nasceu! seu espírito infinito e sagrado esta preso em um corpo lambuzado de criança e se espanta de sofrer e ignorar; aí está, nosso mestre não é nada mais que uma criança...” Hino, à alegria, enfim, ao renascimento, à revolução dos astros e do mundo – o texto diz, muito precisamente, à idade de ouro: “moradores do vilarejo e pastores, cantemos e dancemos pois a idade do ouro voltou.” A Natureza... A Infância... A Esperança... A idade de ouro...


Tudo isto tem valor criador, porque absolutamente nada, propriamente falando, é dado: é preciso que eu viva este mistério e, em conseqüência, que, por um esforço constantemente renovado, o faça surgir das condições elementares em que ele se radica. A família é, portanto, obra minha, fruto da minha fidelidade e do meu sacrifício. O meu coração deve fazer que ela nasça, todos os dias, misteriosamente, do fervor do meu coração.


Cá na terra, a esperança é o nosso prêmio; só ela nos pode salvar dos conflitos das relações intersubjetivas, do feitiço das técnicas materializantes, afastar-nos da tentação, que persegue o homem carnal, do suicídio e do desespero; só ela nos pode fazer apreender o sentido e o valor da prova (sofrimento e morte), transformando-a, por sua vez, num “existir” mais rico e mais perfeito.


O próprio obstáculo que se levanta com os conflitos das relações intersubjetivas, sobre o qual incide a nossa ação e que se opõe à espiritualidade a que aspiramos, pode constituir uma abertura para o absoluto, revelando-nos os verdadeiros valores, os únicos que são capazes de corresponder às nossas mais profundas necessidades e às nossas aspirações morais, ética, humanas.


Referindo-nos ainda à peça Bariona, sétimo e último movimento, Baltazar, um dos reis magos, que, devoto, nada sabendo do drama interior que acaba de se desenrolar, começa a expor a Bariona os méritos da verdadeira fé, encarnada no pequeno corpo: que nasceu, criança, para todas as crianças do mundo... que a infância, de agora em diante, será sagrada e que, em cada criança que nascer, reviverá o Cristo... e haverá alegria para todos... o homem não mais será forçosamente o ser excedente apontado pelas metafísicas negras... o mal nada é em si... é o que queremos que seja... enfim, o pessimismo foi vencido e sempre haverá, no mundo, um ponto qualquer de onde o mal aparece sob cores risonhas... E Bariona, então, ao invés de agredi-lo ou de faze-lo calar-se, em vez de tornar a dizer-lhe que acredita que não haverá amanhã, que nunca houve e que Jerusalém permanecerá cativa, ouve-o e se derrete em emoção. Quando se aproximam os aldeões e descobrem, nesse meio tempo, que as legiões romanas marcam sobre Belém e cercam-na, exclamam: “tinhas razão, Bariona! Essa criança é maldita! Nosso povo é maldito! Deveríamos tê-lo ouvido e nunca ter vindo à cidade!”. Ele retoma a palavra e, suavemente, com a voz modificada, fustiga, para espanto geral, os homens de pouca fé que começaram por traí-lo pelo Messias e que, agora, ao primeiro vento contrário, traem o Messias. Continuo chefe de vocês? Sim. Cumprirão minhas ordens cegamente: Sim, sim. Ouçam, então, o que ordeno. Esperaremos os romanos. Nossos corpos servirão de muralhas. Morreremos, sim, mas na alegria, em Deus, e para salvar o Messias.


Fora do domínio da fé, em que a presença de Deus adquire uma realidade e intensidade incomparáveis, o ser, seja ele qual for, desde que seja apreendido interiormente, apresentará sempre ao filósofo o múltiplo mistério da sua existência, da sua duração, da sua estrutura, da sua adaptação ao resto do mundo, das suas relações intersubjetivas, da sua finalidade última. Tal mistério, com aspectos sempre novos é o de uma presença na qual a nossa razão, juntamente com o nosso coração (e o coração é aqui razão, como pretendia Pascal) congregam vida e amor – e constitui um apelo à nossa própria presença. Não há Tu senão para um Eu: qualquer presença é necessariamente um face a face e como que o canto da amizade.


(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)


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