#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE VII# - GRAÇA FONTIS: ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



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GENUÍNO POMO DA SABEDORIA


A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski


2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO


Dostoievski ficou muito impressionado com a maneira como foi tratado quando chegou para assistir à representação. Geralmente os presos se comportavam de maneira rude e descortês com ele; longe de tratá-lo com qualquer consideração especial, eles ou o ignoravam de maneira proposital ou, na hora do trabalho, repeliam-no de modo grosseiro, mais como um estorvo do que uma ajuda. Mas, naquele momento, quando encontrou no pavilhão militar que servia de teatro, Dostoiévski surpreendeu-se com o respeito e até a deferência que recebeu. Providenciaram-lhe imediatamente um lugar na primeira fila, embora o pequeno espaço estivesse abarrotado de presos em pé, sentados em camas, ou até olhando por trás do palco improvisado. O tratamento que os presos lhe deram, explica Dostoievski, se devia ao fato de saberem que seus conhecimentos superiores de teatro habilitavam-no, naquela ocasião, a uma deferência especial.


Eles me viam como uma pessoa que entendia de teatro, um crítico, que havia assistido a representações muito diferentes daquela; sabiam que Baklúchin durante todo aquele tempo tinha-se aconselhado comigo e me tratava com respeito; de modo que, naquela ocasião, eu merecia a honra de um lugar na frente .
Não nos esqueçamos de sua primeira tentativa Maria Stuart, que se inspirou na peça de mesmo nome de Schiller.


A moldura da narrativa nos episódios de Dostoievski é dada muito mais frequentemente pelas coerções da vida na prisão – a vida que ele comparte com a coletividade. Em Recordações da casa dos mortos, vez por outra, após a descrição de alguma festa ou de outro acontecimento (como os espetáculos teatrais) que quebram o tédio sufocante da rotina, o capítulo termina com esse tipo de moldura que cerca e constringe.


Mas por que descreve esse tumulto! Até que enfim aquele dia opressivo acabou. Os presos estão dormindo em sua cama de tábua. Essa noite falam e murmuram no sono mais do que de costume. Aqui e ali alguns ainda jogam cartas. O feriado tão esperado tinha chegado ao fim. Amanhã outra vez a rotina do dia, amanhã o retorno ao trabalho .


Temos aqui a natureza do mundo da prisão, que não permite que o homem dissolva sua tristeza em sua vastidão ilimitada e reconfortante; ao contrário, ela apenas afunda, de forma ainda mais desesperadora, na prisão de seu destino em massa, o indivíduo que talvez tenha sentido uma excitação momentânea de liberdade.


Comparemos Jean Genet, Diário de um ladrão, que também é a respeito dos anos de prisioneiro do autor, na França:


A minha solidão na prisão era total. Ela o é menos agora que falo dela. Antes eu estava sozinho. De noite eu me deixava descansar numa correnteza de abandono. O mundo era uma torrente, um rápido de forças unidas para me levar para o mar, para a morte. Tinha a alegria amarga de me saber só. Tenho a nostalgia daquele barulho: na cela quando eu sonhava e o meu espírito vagueava, acima de um detento de repente se levanta e anda de um lado para o outro, com um passo sempre igual .


Tomando em consideração a perspectiva puramente artística, Recordações da casa dos mortos é talvez o livro mais incomum que Dostoievski já produziu – incomum não tanto na literatura russa, apesar do caráter inusitado de sua descrição da vida na prisão, mas, antes, no contexto da própria produção do romancista. É difícil para alguém aceitar que as memórias da prisão e sua obra puramente criativa tenham saído da mesma pena. Aqui, a intensa dramaticidade da ficção é substituída por uma serena objetividade na apresentação; há pouca análise detalhada dos estados interiores da mente; e há maravilhosas passagens descritivas que revelam a capacidade de Dostoievski de observar o mundo exterior, mesmo que em seus romances o diálogo e o monólogo predominem claramente sobre a descrição do cenário e do local.


Enfim, caiu o crepúsculo. A angústia, a dor, o pesado tédio retornavam através da orgia, da bebedeira. Aquêle que uma hora antes estava rindo, soluçava agora num canto, depois de atravessar os limites da simples embriaguez. Alguns já tinham tido tempo de trocar pancadas duas ou três vezes. Outros ainda, lívidos, mal se segurando nas pernas, vagueavam oscilantes através das casernas, provocando brigas. Os que o vinho entristecia procuravam obstinadamente amigos: queriam aliviar a alma e desabafar as mágoas que o álcool erguera à tona. Aqueles desgraçados tinham desejado tanto divertir-se, passar alegremente a grande festa e - meu Deus! – que peso, que esmagamento para quase todos! Cada um quisera, naquele grande dia, embalar-se com uma esperança; mas a esperança não se realizara .


Numa carta a A. A. Fet, Turguiênev falou da “autolaceração malcheirosa” de Crime e castigo (estava se referindo à segunda parte); mas chamou a cena do banho de Recordações da casa dos mortos de “simplesmente dantesca”. Herzen fez a mesma comparação com Dante e acrescentou que Dostoievski, “a partir da descrição dos costumes de uma prisão siberiana, criara um afrescon no espírito de Michelangelo”. Tolstói também admirava a obra, considerando-a uma das mais originais da prosa russa; em O que é a arte?, colocou-a entre as poucas obras da literatura mundial que podiam ser tomadas como modelos de “uma arte religiosa elevada, inspirada no amor a Deus e ao próximo”.
Somente vinte e seis anos depois, num artigo do seu Diário de um escritor (1876), intitulado O camponês Marei, Dostoïévski escreveu as páginas que faltavam em suas memórias da prisão, páginas que nos ajudam a penetrar no enigma da “regeneração de [suas] convicções”. Essa regeneração significou essencialmente uma mudança de sentimentos em relação ao povo russo, a recuperação de sua fé no povo, mas de uma fé muito diferente da que havia sentido no passado.


Ao narrar a história do lobo imaginário, Dostoïévski ansiava provar que o “servo totalmente ignorante” possuía de fato um “alto grau de cultura” . No entanto, parece que, em criança, Dostoïévski não se impressionava muito com os maus tratos infligidos pelo pai aos servos. Uma criança com sentido de observação como ele devia perceber que os camponeses, incluindo “Marei”, eram habitualmente chicoteados nos currais, à ordem do pai e apesar da intercessão da mãe. Aliás, há uma alusão vaga a isso quando Dostoievski fala de “Marei”.
O problema da conversão de um conjunto de crenças e idéias para outro é geralmente discutido no contexto da história das religiões, em que exemplos dramáticos são encontrados na vida dos fundadores da tradição ocidental, como São Paulo e Santo Agostinho. Até muito recentemente, esse tema era objeto de um tratamento ora edificante, ora incrédulo e desdenhoso. Os crentes atribuíam suas conversões a uma intervenção direta de Deus, enquanto os céticos, partidários do Iluminismo, viam-nas como pura farsa e impostura, manifestações de doença mental.


A experiência de Agostinho, segundo Henrique C. de Lima Vaz, aparece-nos como uma experiência do espírito em sua acepção mais rigorosa. A experiência do espírito é ainda, em Agostinho, uma experiência de “conversão”, e em torno do conceito de “conversão” se adensa todo o seu conteúdo inteligível. Somos levados a afirmar que as linhas de força, da experiência de Agostinho, se organizam no sentido de uma reflexão propriamente religiosa.
A “conversão”, de que as Confissões nos dão o inigualável testemunho, opera-se em planos diversos, é um movimento total da alma que se arranca ao pecado para dar-se à fé, à inteligência e ao amor, segundo um ritmo triádico especificamente agostiniano. “Ora, esta dialética da conversão de Agostinho define também o que se poderia chamar a sua filosofia religiosa.”
Se a conversão de Agostinho é uma conversão ao “interior”, é ainda, na unidade de um mesmo movimento, conversão ao “superior”. Conforme o sentido da reflexão religiosa de Agostinho, o ato religioso não é tal se não é ele mesmo, em sua intencionalidade profunda, o mediador de uma realidade transcendente. O encontro de um absoluto transcendente no seio da razão, como origem radical e fim da razão mesma e do amor que dela nasce, definiria assim o agostinismo como filosofia religiosa.


O fruto das minhas Confissões é ver, não o que fui, mas o que sou. Confesso-Vos isto, com íntima exultação e temor, com secreta tristeza e esperança, não só diante de Vós, mas também diante de todos os que crêem em Vós; dos que participam da mesma alegria e, como eu, estão sujeitos à morte; dos que são meus concidadãos e peregrinam neste mundo; e enfim, diante dos que me precedem, me seguem ou me acompanham no caminho da vida. Estes são os vossos servos, os meus irmãos, aos quais constituístes vossos filhos e meus senhores. A eles me mandastes servir, se quisesse viver de Vós e convosco .


Contra todas as tentativas de amalgamar religião e filosofia, fé e saber, deve-se enfatizar com toda a força que a religião é um domínio de valores completamente autônomo. Ela não se baseia num outro domínio de valores, mas está completamente firmada sobre seus próprios pés. Não tem seu fundamento de validade na filosofia e na metafísica, mas em si mesma, na certeza imediata característica do pensamento religioso. O reconhecimento da autonomia epistemológica da religião depende, portanto, do reconhecimento de um conhecimento religioso especial.


É perfeitamente admissível que se encontre uma explicação psicológica para a fé em Deus. Psicológico ou não-psicológico não é aqui a alternativa correta. Do ponto de vista psicológico, a fé em Deus sempre apresenta estruturas e conteúdos de projeção, ela sempre está sob suspeita de projeção. Mas o fato da projeção não decide de forma alguma se o objeto a que a projeção se refere existe ou não existe. Ao desejo de Deus é perfeitamente possível que corresponda um Deus real. E por que não me seria permitido desejar que com a morte nem tudo se acabasse? Que houvesse um significado profundo em minha vida, na história da humanidade, em suma, que Deus exista?


Kant está plenamente convencido de que é em vão que a razão estende suas asas, buscando pela força do pensamento ultrapassar o mundo dos fenômenos e chegar às “coisas em si” (como conclusão necessária do pensamento, e não pela contemplação!), ou procurando mesmo chegar ao Deus real. O homem não pode erguer torres que cheguem até o céu, mas somente casas apenas com a altura e o espaço necessários para nossas atividades ao nível da experiência! Por isso, não existe nenhuma prova da existência de Deus que possa ser universalmente aceita, mesmo pelos crentes. Mas este é apenas um dos lados do problema.


Também teólogos e filósofos precisam demonstrar modéstia e autocrítica no diálogo com a ciência natural. Pois também eles, que profissionalmente estão empenhados na verdade da fé, não possuem de antemão esta verdade, nem dela dispõem de forma definitiva. Também eles sempre de novo precisam ir em busca da verdade, pois, da mesma forma que as demais pessoas, não podem chegar a ela senão aproximativamente. Também eles precisam aprender por “tentativa e erro”, e estar dispostos a rever sua posição. Também na teologia, caso ela deseje ser uma ciência, e não um dogmatismo estéril, é possível, e muitas vezes necessário, o jogo de projeto e crítica, de contracrítica e correção. Não devem os teólogos facilitar a discussão com os cientistas apresentando-lhe o aurgumento da autoridade, que pelo menos desde o Iluminismo deixou de ser válido, e retraindo-se sem maior análise a uma pretensa infalibilidade da Bíblia, do Papa ou de declarações conciliares.
O caráter propriamente agostiniano desta experiência está, de uma parte, em sua decidida orientação ao “interior”, de outra, em sua “comunicabilidade”, ou seja, em sua inserção no plano da razão.


Muitos autores sustentam que a regeneração de Dostoïévski no presídio implicou basicamente a recuperação da fé religiosa perdida em meados dos anos 40 em conseqüência do seu contato com o materialismo dos hegelianos de esquerda. Essa opinião implica uma aceitação incondicional da falsa versão divulgada por Dostoïévski sobre os acontecimentos de sua vida, sutilmente distorcida para adaptá-los à polêmica que tratava com os populistas russos da década de 1870.


Dostoïévski certamente conhecia bem todos os argumentos dos hegelianos de esquerda contra a religião, pois eram abertamente expostos tanto na “plêiade” de Biélinski quanto nas reuniões do círculo de Petrachevski. Não resta dúvida de que os ataques à divindade de Cristo deixaram-no confuso e perturbado, mas, por outro lado, não há provas de que ele se tivesse deixado convencer completamente. Dostoïévski sempre esteve mais próximo dos socialistas utópicos franceses que, apesar de rejeitarem a religião oficial encarnada em sua tradição católica romana, definiam suas idéias sociais radicais como a aplicação ao mundo moderno da doutrina divina do amor cristão.


No Jornal de um escritor – que acima mostramos uma parte de seu artigo -, falando sobre a relação dele com Bielinsky acerca da tentativa deste de o converter ao ateísmo, assim continua:


Não acha – declara Dostoievski ter-lhe dito Bielinsky certa noita, numa voz áspera -, não acha que não devemos culpar o homem de pecados e impor-lhe que ofereça a outra face quando a sociedade está assim tão mal organizada; tão mal organizada que os homens não podem deixar de cometer crimes, por imposições econômicas; e que é absurdo e cruel pedir aos homens que façam o que lògicamente não podem fazer, segundo as leis da natureza, mesmo que queriam?
Nessa noite não estávamos sós; fazia-nos companhia um dos amigos que Bielinsky mais respeitava [...] bem como um jovem escritor que depois se tornou famoso.
Quando olho para ele – interrompeu Bielinsky de súbito a sua veemente tirada e, dirigindo-se ao amigo, apontou para mim – ponho-me a pensar: de cada vez que fala em Cristo, muda completamente, fica como se fosse a chorar. Mas, seu ingênuo – precipitou-se novamente para mim -, não vê que, se o seu Cristo nascesse agora, seria o mais inculto e vulgar dos homens? Ficaria suprimido quando confrontado com a ciência moderna e com as novas elites intelectuais da humanidade. [...] .
Se a evolução interior de Dostoiévski pode parecer enigmática, misteriosa, paradoxal para alguns, ou francamente patológica para outros, nosso projeto será torná-la pelo menos inteligível.


(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)


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