#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE III# - IMAGEM: GOOGLE/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



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GENUÍNO POMO DA SABEDORIA


A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski


2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO


Não é de estranhar que Dostoïévski fosse considerado pelos discípulos “um excêntrico”. Alcunharam-no de Photius, relacionando esta alcunha com a de um estranho padre, Pedro Spassky (1792-1838), que adotara o nome de Photius ao tornar-se monge e se considerava “enviado militante da Providência” e “o salvador da Igreja e da Pátria”.


De fato, Dostoïévski era um estranho no meio dos cento e vinte e cinco estudantes do Colégio de Engenharia Militar. A disciplina era feroz, os estudos eram ingratos e sofridos. Dostoiévski sufocava no meio de jovens grosseiros, totalmente absorvidos pela carreira e pela vida mundana. Até sua categoria social de “nobre” parecia ter sido posta em dúvida pelas autoridades do colégio, que, a 19 de Maio de 1838, mandaram ao Serviço de Heráldica uma petição para investigar “a origem do menor Fyodor Dostoïévski”, e só ano e meio após, a 29 de Novembro de 1839, veio a confirmação de que “se pode considerar o menor Fyodor Dostoïévski como pertencendo à classe nobre”.
Depois de fazer os exames finais no Colégio de Engenharia Militar, a 5 de Agosto de 1841, Dostoïévski foi promovido ao posto de oficial-engenheiro e teve a permissão de viver em domicílio próprio. Com as suas ânsias de liberdade em parte finalmente satisfeitas, não demorou a gozar com avidez os prazeres que uma cidade como Petersburgo oferecia. A entrega plena ao trabalho literário – escrevia então febrilmente, apesar de nenhuma dessas obras haver sido preservada – e a absoluta determinação de se tornar um escritor, tornavam-no pouco escrupuloso.


Num país em que toda a vida política e econômica se baseava na escravatura, e onde qualquer manifestação de idéias liberais era brutalmente reprimida, o culto de Schiller entre a elite intelectual e sobretudo entre os jovens do ensino superior e das universidades propagava-se amplamente.


A Convenção Francesa de 1793 – escrevia Dostoïévski no Diário de um escritor, Junho – ao conceder o título de cidadão francês honorário au poète allemand Schiller, l´ami de l´humanité, praticou uma bela, nobre e profética acção, mas não supunha que na bárbara Rússia de Schiller fosse mais nacional e querido aos bárbaros russos, do que o era aos franceses desse tempo. Mesmo mais tarde, no nosso século, Schiller, o cidadão honorário da França e l´ami de l´humanité, só era conhecido em França por professores de Literatura, e nem sequer por todos, mas só por alguns .


Por essa época, o romantismo de Chidlovsky e de Dostoievski tinha profundo caráter religioso e opunha-se diretamente às idéias rebeldes da poesia de Lord Byron. Byron, escreve Dostoievski para Miguel, era um egotista. A idéia que tinha da glória era vil e fútil. Três meses antes, declarava ao irmão:


Se leste toda a obra de Hoffman, lembras-te provavelmente do carácter de Albano. Que te parece? Não achas que é horroroso ver um homem que maneja poderes impenetráveis e incompreensíves, que não sabe o que fazer, que anda sempre a divertir-se com um brinquedo que é – Deus?! .


Em Noites brancas, quando fala do sonhador, refere-se a Hoffman:


“Os pobres diabos!” pensa o meu sonhador. Não admira nada que ele assim pense! Olhe os fantasmas feéricos que se formam diante dêle, feiticeiros, caprichosos, largamente e sem limites, em um animado quadro fantástico, em que se encontra no primeiro plano, naturalmente primeira figura, o nosso próprio sonhar em sua preciosa pessoa; Olhe: que aventuras variadas, que exame infinito de sonhos exaltados! Você perguntará talvez, com que sonha ele? Para que perguntar? Mas em tudo... um papel do poeta, primeiro desconhecido, depois glorificado; em sua amizade com Hofmann; na matança de São Bartolomeu... .
Mas ao exprimir o horror que sente por Albano, - uma personagem de caráter tão tipicamente byroniano, o herói que repudia todas as regras de conduta – Dostoievski, então ainda um jovem de dezessete anos, embora opondo-se-lhes, admite os poderes embriagadores dessas idéias revolucionárias contra as crenças ingênuas da infância.


Não sei – escreve Dostoievski na mesma carta -, se os meus amargos pensamentos cessarão algum dia. Só uma condição é dada ao homem como destino: o universo da alma do homem é a união do celestial e do terreno (grifo nosso). Que filho ilegítimo é o homem: a legalidade da natureza espiritual foi quebrada [...]. Vejo o Mundo como um purgatório de espíritos angélicos, coberto por nuvens de pensamentos pecaminosos. Vejo o Mundo entregue a desígnios negativos e o sublime e a espiritualidade pura transmudados em sátira. Se não aceitarmos esta idéia ou os seus efeitos em relação ao todo e nos perdermos nesse turbilhão, o que acontecera? O turbilhão desaparecerá, não poderá continuar a existir [...]. Mas ver o pesado fardo a que sucumbe o Universo, saber que basta um impulso da vontade para romper ou unir a ligação com o eterno – como isto é terrível! E como o homem é cobarde! Hamlet! Hamlet! Quando faço estas tormentosas, cruéis evocações, ouvindo os lamentos do Mundo torturado, já nem queixas angustiadas ou censuras me enchem o peito [...]. A minha alma está tão esmagada pela dor, que teme compreender o Mundo [...] .


Num ensaio publicado anteriormente, no mensário O tempo, em 1861, Dostoïévski era ainda mais preciso sobre a influência de Schiller na novíssima geração russa.


Sim, Schiller foi realmente absorvido para o sangue da sociedade russa, especialmente na mais nova geração e na anterior. Fomos educados em Schiller, tornamo-nos íntimos dele e a nossa evolução fica-lhe a dever tudo .


É nos ensaios literários de Grigóriev que encontramos a ligação mais direta e evidente com Dostoievski, mas existem outros pontos de contato que não podemos negligenciar. Como Dostoievski na juventude, Grigóriev foi fortemente influenciado por Schelling, cuja concepção da arte ele adotou; para ambos, a arte era um meio de conhecimento metafísico, o veículo escolhido pelo qual os segredos do Absoluto se revelam no tempo e na história. Essa concepção exaltada da arte já estava bastante obsoleta na década de 1860; e Dostoievski viu em Grigóriev aliado extremamente valioso que podia aplicar esse ponto de vista convincentemente à situação cultural imediata. Assim, ambos defendiam o status da arte contra o ataque sarcástico dos radicais utilitaristas e sustentavam seu direito de ser reconhecida como uma necessidade e uma função autônoma do espírito humano.
Dostoievski também olhava com profunda simpatia o irracionalismo de Grigóriev, afirmado e fortalecido por suas entusiasmadas leituras de Schelling do período final. Kierkegaard também recebeu forte influência dessas últimas obras de Schelling, as quais são consideradas, hoje em dia, uma das fontes do existencialismo moderno. Grigoriev chegou à mesma conclusão do dinamarquês, seu predecessor: a vida não podia ser contida dentro de categorias racionais de nenhum tipo.


Para mim a ´vida´é realmente uma coisa misteriosa, escreve, dirigindo-se diretamente a Dostoievski, quer dizer, é misteriosa porque é algo inesgotável, ´um abismo que traga toda razão finita´, para usar uma expressão de um velho livro místico, um espaço ilimitado no qual as conclusões lógicas da mente mais inteligente muitas vezes se perderão, como uma onda no oceano; [a vida é] até mesmo uma coisa irônica, mas ao mesmo tempo prenhe de amor, apesar desta ironia


Foi a imitar Schiller, é claro, que Dostoïévski escreveu a sua primeira composição literária, a peça teatral Maria Stuart. Esta e fragmentos de outra – Boris Godunov, escrita em imitação de Puchkin – leu Dostoïévski a Mikhail e a alguns amigos durante a visita do irmão a Petersburgo, em 16 de Fevereiro de 1841. (Desconhecem-se estas primeiras tentativas literárias de Dostoïévski).
Schiller define a beleza como “forma viva”. Para ele, a consciência das formas vivas é o primeiro passo indispensável que leva à experiência da liberdade. A contemplação ou reflexão estética, segundo Schiller, é a primeira atitude liberal do homem para com o universo.
A 15 de Janeiro de 1846, Pobre Gente é publicado no Symposyum de S. Petersburgo, de Nekrasov. Foi saudado, escrevia Dostoïévski para Mikhail, “com violentas injúrias”. Mas as injúrias dos jornais de Petersburgo foram compensadas largamente pelo exaltado elogio escrito por Biélinski: que Dostoïévski tinha “ultrapassado Gogol”.


Biélinski e os outros descobriram em mim um estilo original ao proceder por análise e não por síntese, ou seja, penetro em profundidade até ao âmago das coisas e, dissociando os átomos, tento apreender o todo – enquanto Gogol vai direto ao todo e, portanto, é menos profundo que eu.


(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)


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