#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTE - UMA LEITURA DO OUTRO E O OLHAR EM “O SER E O NADA"# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA
POST-SCRIPTUM: Esta DISSERTAÇÃO EM SARTRE foi
publicada em livro pela GRÁFICA DIAMANTINA, em 2003.
O objeto de nossa dissertação em Sartre é o tema do
sujeito, tendo como alicerce o olhar e o outro, visto á luz da dialética .
Dir-se-á que, para Hegel, toda determinação é
negação. O entendimento, a compreensão, a busca da essência, neste sentido,
limita-se a negar a seu objeto ser outro que não si mesmo. Isso é suficiente,
sem dúvidas, para impedir todo trâmite dialético, mas não deveria ser
suficiente para desaparecer até o embrião do transcender .
Em primeira instância, pode-se reconhecer a
partilha que Alexandre Kojéve dizia, Introduction à la lecture de Hegel, nunca
ter deixado de fraturar o campo filosófico. A fratura a que nos referimos: a da
dialética, se considerarmos que ela funciona em Sartre, não por “progressões”,
mas por “torniquetes”, e tem a dupla propriedade, por causa de sua forma
“espiralada”, de passar várias vezes, e, inclusive, ilimitada e
indefinidamente, pelo mesmo ponto – após a permissão de tal acontecimento de
encontrar a fonte, ou o recurso, não no acontecimento antecedente, nem sequer
em um próximo, mas em acontecimentos eventualmente muito distantes, mas com os
quais a dialética fraturada cria uma separação.
A cada espira da espiral, uma espécie de nova
subida, ou de propulsão, que, engendrada, não por princípio transcendente, ou
um Deus, mas por mola íntima, aninhada no coração do Ser, faz com que se possa
continuar a falar de dialética. Esta dialética tem apenas o nome com a de
Hegel.
A postura ontológica individualista de Sartre
afirma-se pela atribuição ao “Outro” de um status radicalmente diverso do
Para-si, com conseqüências de longo alcance para todos os aspectos de sua
concepção. Segundo Sartre, “O outro é uma hipótese a priori sem justificação
alguma, salvo a unidade que ele permite operar em nossa experiência”.
Tal como Marx, Sartre muito deve á caracterização
hegeliana da relação Senhor - Escravo em A fenomenologia do espírito. Cada um deles,
porem, desenvolve os “insights” originais de Hegel em direções diametralmente
opostas.
A crítica de Marx à abordagem de Hegel visa
aprofundar o dinamismo histórico inerente àquela relação, retificando a
violação por Hegel, ideologicamente determinada, da lógica interna de sua
própria concepção. Sartre elimina radicalmente a dimensão histórica da relação
e a transforma numa estrutura existencial atemporal. E, ao recusar ao Outro um
status ontológico próprio, torna toda a relação extremamente problemática,
determinando de modo peculiar não só o caráter do Outro, mas também a natureza
da autoconsciência, especialmente em sua forma coletiva o “Nós-sujeito”.
Com base no resgate de certas determinações
ontológicas do ser social, elaboradas, formuladas, por Marx, o devir
perspectivado apresenta-se como tendência imanente à lógica do trabalho e, ao
mesmo tempo, como efetivação do caráter ativo dos indivíduos humanos,
dependendo, portanto, de suas decisões entre alternativas, de suas escolhas
subjetivas.
O indivíduo humano é ser natural vivo, ser
orgânico, biológico, dotado de potencialidades e necessidades naturais; este é
um dos elementos ontológicos imprescindíveis da existência e do processo
histórico da humanidade. A constatação desta realidade mais que evidente,
embora reiteradamente omitida ou negligenciada, é um dos pontos basilares da
análise marxiana da individualidade humana. A condição ontológica primordial da
história humana, o caráter necessariamente natural e vivo do homem, expressa-se
em capacidades e necessidades individuais que, contudo, transformadas no
decurso da história, jamais sertão completamente suprimidas.
A individualidade propriamente humana, resultante
do devir autoproducente da humanidade, tem a própria realização humana como necessidade,
ou seja, tem a totalidade de manifestação humana de vida como potência
historicamente desenvolvida e, consciente, toma-a como objeto de seu
crescimento. Marx ressalta que a realização total do indivíduo só deixara de
surgir como ideal, como vocação, etc., quando a impulsão do mundo que suscita
aos indivíduos o desenvolvimento real das suas faculdades tiver passado para o
controle dos próprios indivíduos, tal como pretendiam os comunistas.
Faz-se mister, para compreensão e entendimento
acerca da relação do indivíduo em particular, diante da história e do processo
histórico, a que intenciona perder-se e encontrar-se, a consciência da
existência “individual” e a consciência “do processo histórico”, avaliar o
processo autoconstitutivo que caracteriza a dinâmica própria do gênero humano e
determinar a distinção ontológica entre o homem e os puros seres orgânicos, em
sua cabal radicalidade. Segundo Marx, o homem não é apenas um ser natural: é um
ser natural humano, isto é, um ser que é para si próprio e, por isso, ser
genérico, que enquanto tal deve atuar e se confirmar tanto em seu ser como em
seu saber, a harmonia do ´ser´ e do ´saber´. É um homem à busca da contemplação
da verdade, ainda que contingente na dialética que se emperra, no desejo e vontade,
sustentado na “liberdade”, de a suprimir.
Por conseguinte, nem os objetos humanos são objetos
naturais tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é
imediatamente – como ele é objetivamente – é sensibilidade humana, objetividade
humana. Nem objetiva nem subjetivamente está a natureza do imediato presente ao
ser humano de modo adequado.
E como tudo que é natural deve nascer, assim também
o homem possui seu ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele
uma história consciente, e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de
consciência, é ato de nascimento que se supera.
A relação entre Método e Ontologia não deve ser
concebida, pois, dentro de um modelo de determinações unilaterais, mas com uma
forma de reciprocidade dialética. Significando isso que, uma vez constituída a
versão sartreana da fenomenologia, como base em seus princípios ontológicos,
tendeu a restringir os limites dentro de que a realidade é vivenciada e
avaliada.
Em Questão de Método, Sartre expressa total
concordância com o método do marxista Lefebvre, dando às palavras deste último
sua interpretação pessoal. Os termos exatos da análise de Lefébvre são estes:
a) Descritivo. Observação, mas com exame atento orientado pela experiência e por
uma teoria geral. B) Analítico-regrssivo. Análise da realidade. Esforço para
datá-la precisamente. C) Histórico-genético. Esforço para redescobrir o
presente, porém elucidado, compreendido, explicado.
Nossa interpretação fundamenta-se essencialmente no
terceiro nível, o histórico-genético, em que buscamos a reconciliação do “eu” e
do “outro”, inspirados na “dialética do olho que manda o outro à merda”, a
História à margem do processo histórico, a sua dialética e a sua ontologia, o
olhar e o outro que se harmonizam na dialética de “torniquetes” sartreana, como
a pensamos e contemplamos.
O interesse primordial de Sartre que está nas
“significações” (que, alhures, ele chamou de (“significações hierarquizadas”),
indivíduos, concretude e “originalidade” (singularidade) a serem conectadas com
a universalidade mediante comparações, a serviço da heurística. A investigação
de Lefebvre diz respeito a uma comunidade rural e, ao estudá-la, preocupa-se
com a definição de métodos adequados ao campo da sociologia rural.
A fase descritiva, para ele, é exatamente o que ela
diz, ou seja, fazer um inventário dos dados do modo como se encontram na
comunidade rural em questão, dentro do quatro de referência de uma teoria geral
da sociedade. O que quer dizer que não pode haver “descrição pura”, uma vez que
a avaliação é parte integrante do empreendimento, em todas as suas fases,
graças á teoria geral aplicada aos dados da descrição. É significativo que
Sartre traduza “descritivo” por “descrição fenomenológica” - que é um
empreendimento totalmente diferente, tanto por declarar ser “descrição pura”,
quanto porque seu objetivo é a identificação de “essências”.
A segunda fase, para Lefebvre, é
“analítico-regressiva”. Pois ele quer datar (o itálico é dele) com precisão as
diversas camadas históricas que coexistem na estrutura. Em outras palavras,
esta fase diz respeito á elucidação de um corte transversal da estrutura,
enquanto a terceira fase centra-se na compreensão e elucidação
“histórico-genética” da totalidade dinâmica do presente. Mais uma vez,
tipicamente, essa complementaridade das dimensões “analítico-regressiva” (ou
“estrutural-analítica”) e “histórico-genética” foi traduzida por Sartre como o
“duplo movimento de regressão seguida de progresso”, muito embora, de fato, o
termo “progresso” não aparecesse na classificação de Lefebvre. De qualquer
modo, não está claro porque a fase histórico-genética deveria chamar-se
“progressiva”, já que o problema de Lefebvre não era o de estabelecer uma
seqüência temporal, mas sim o de destacar as duas formas em que a história e a
estrutura são tratadas no estudo: a história como subordinada à estrutura (a
datação analítico-regressiva dos diversos elementos da estrutura”, e a
estrutura como subordinada á história (a compreensão histórico-genética do
presente).
A razão pela qual Sartre tem que imaginar um duplo
movimento é, ela mesma, dupla: por um lado, a “pureza” da fenomenologia pura
significa que a facticidade (ou “factualidade”) da existência humana há-de
escapar-lhe por definição; e, por outro lado, a facticidade da existência
humana (vale dizer, seu caráter “tal-e-tal”; sua natureza exatamente como a
vivenciamos) requer disciplinas às quais a facticidade seja acessível se se
quiser compreender e elucidar o objeto da pesquisa.
A perspectiva marxiana do devir humano, por meio do
comunismo, projeta a objetivação das categorias essenciais do homem por
intermédio da reaproximação consciente e ativa por parte dos indivíduos
associados de sua própria interatividade, de suas forças produtivas e de suas
relações sociais.
Afirma Marx que sob o pressuposto da propriedade
privada, positivamente superada, o caráter social é o caráter geral do
movimento inteiro. Assim como a sociedade produz o homem como homem, assim ela
também é produzida por ele. A atividade e a fruição, tanto segundo seu conteúdo
quanto também o seu modo de existência, são sociais. O aspecto humano da
natureza existe somente para o homem social, pois é somente aqui que ela existe
para ele como vínculo com o homem, como existência sua para o outro e do outro
para ele (grifo nosso), e também como elemento vital da realidade efetiva
humana, é somente aqui que ela existe como fundamento da sua existência humana
própria.
Apenas no homem social as determinações ontológicas
especificadoras do ser humano encontram desenvolvimento apropriado, ou seja,
somente então sua essência é tornada efetividade, adquire existência real.
A essência do indivíduo humano é o conjunto de suas
relações sociais, ou seja, ela se forma pela relação com os outros, razão pela
qual o processo de humanização do homem e a formação da individualidade humana
consistem no processo de humanização de suas realizações.
A argumentação de Marx é que, ao manifestar sua
natureza, os homens criam, produzem a comunidade humana, a entidade social, que
não é um poder universal abstrato oposto aos indivíduos singulares, mas a
natureza essencial de cada indivíduo, sua própria atividade, sua própria vida,
seu próprio espírito, sua própria riqueza.
A totalidade social, em suas determinações
ontológicas, não se desdobra num para-além das existências individuais,
consistindo antes da forma em que se efetiva a interatividade dos indivíduos e
que a cada momento histórico resulta da evolução prévia dessa mesma atividade.
Os indivíduos humanos, por suas determinações
ontológicas essenciais, têm a próprio realização, a manifestação ativa de suas
potencialidades como necessidade fundamental e que tal necessidade se manifesta
mesmo em face das determinações próprias da existência social, que as
categorias ontológicas da individualidade humana impulsionem – pela legalidade
imanente à dinâmica que instauram – a superação das formas sociais
essencialmente estranhadas, rumo ao controle consciente dos indivíduos sobre as
condições concretas, sociais de sua existência.
Em Hegel, o que permite a progressão da dialética e
a conquista da liberdade decorre, de início, do meu temor, de minha dependência
radical e angustiada diante do outro; no entanto, o elemento fundamental, o
elemento sem o qual toda a dialética perde sentido, está no trabalho.
Considerada nesta perspectiva hegeliana, a análise existencialista da
intersubjetividade fica como que emperrada em seu ponto de partida, naquele
momento em que o escravo não passa de um simples objeto para o mestre.
A dialética sartreana não se desata nem se resolve.
É uma dialética sem recurso nem síntese, irremediável. É um motor que, ao pé da
letra, gira em circulo e quebra a linearidade e, portanto, o providencialismo,
implicado por todas as outras dialéticas.
É realmente uma outra dialética. Um outro modelo,
epistemológico e ontológico de Movimento dialético da História.
Analisando O Ser e o Nada, constatamos o caráter
radicalmente antidialético do existencialismo: a dialética como que trunca a
meio do caminho, absolutizando o momento da contradição. Sartre em O Ser e o
Nada divide a realidade em dois domínios e discute a dialeticidade de cada um
deles – esta dicotomia se mostra especialmente significativa, havendo ele
dividido o real em dois reinos, o Para-si e o Em-si, caracterizados,
respectivamente, como contradição e identidade.
Em O Ser e o Nada, o Para-si é essencialmente busca
de identidade: a realidade humana apresenta-se habitada, desde sua mais remota
intimidade por um ser do qual permanece definitivamente separada. A identidade
fundamental só se verifica pelo reconhecimento do oposto dela mesma: o homem é
de modo insuperável, sendo nossa preocupação explicar ao longo da dissertação,
sua própria contradição, “fratura”.
Os conceitos de “autenticidade” e de “má-fé” estão
calcados na oposição bergsoniana do “tempo” (espacializado, socializado e,
portanto, “inautêntico) e da “duração” (plena, livre, criadora, inventiva,
contínua e, portanto, “verdadeira”). A Bergson que reduz o homem ao somatório
dos seus estados, Sartre opõe a idéia de uma totalidade psicológica a
ultrapassar o somatório dos seus elementos e transcendê-la.
Vemo-nos, deste modo, frente a todo um grupamento
de conceitos – “totalidade individual” e “totalidades do mesmo tipo”,
“totalidade real, “unidade ideal” (ou totalidade ideal) e “totalidade concreta”
– em cujos termos se expressa a relação entre a consciência e o mundo. Sartre
não se satisfaz em permanecer dentro da esfera da experiência subjetiva. Seu
objetivo essencial é ontológico.
Em A Transcendência do Ego, encontramos uma teoria
da consciência sistematizada em relação ao problema da totalidade. Referindo-se
criticamente à opinião de Husserl sobre o “eu transcendental” como condição da
unidade e identidade da consciência. Sartre refere-se á procedência da
individualidade da consciência, evidentemente, da natureza da consciência.
A consciência (como a substância de Spinoza) só
pode ser limitada por ela mesma. Sendo assim, constitui uma totalidade
sintética e individual inteiramente isolada de totalidades do mesmo tipo, e o
eu evidentemente só pode ser uma expressão (e não uma condição) dessa
incomunicabilidade e dessa interioridade da consciência.
Se explicarmos o tempo de modo exterior, como
elemento objetivo no qual o homem está inserido, segue-se a falsificação do
para si; com efeito, se o tempo condiciona a realidade humana, o para-si se
transforma num em-si, tornando-se, então, fatal que a liberdade seja
substituída pelo determinismo. Conseqüentemente, o tempo deve ser reduzido à
temporalidade, isto é, a uma estrutura do próprio para-si. Daí a crítica
sartreana à doutrina bergsoniana; um passo que “adere ao presente e o penetra,
não passa de uma figura retórica”. Sartre toca na ambigüidade radical do
pensamento de Bergson, pois não se chega a saber, afinal, se para o autor de A
Evolução Criadora é o ser que dura ou se a duração é o ser: “se duração é o
ser, é necessário dizer qual é a estrutura ontológica da duração”; se se, ao
contrário, é o ser que dura, é necessário mostrar aquilo que, no ser, lhe
permite durar.
Com isso, Sartre apenas indica o impasse da
filosofia bergsoniana, porquanto, a rigor, ambas as hipóteses são
insustentáveis. Numa perspectiva sartreana, dizer em que consiste a estrutura
ontológica da duração ou mostrar aquilo que permite que o ser dure são
hipóteses que excluem a temporalidade. Sartre não pode admitir a duração no ser
porque isso implicaria em reabilitar, em algum sentido, a doutrina metafísica
do ato e da potência, já que a duração pressupõe que o real venha a ser.
O interesse de Sartre pela fenomenologia é, desde o
início, existencial-ontológico. Ele quer captar os “existentes” em sua
facticidade, em oposição às diversas espécies de pressupostos ou
pré-julgamentos metafísicos que parecem dominar não só as teorias filosóficas,
como também suas aplicações na psicologia e alhures, e seu entusiasmo pelas
potencialidades da fenomenologia é a expressão direta dessas preocupações. Esse
mundo contingente dos “existentes” é o mundo das coisas e o mundo dos homens
que podemos descobrir em sua totalidade complexa.
Assim, a preocupação no que se refere à totalidade
foi ulteriormente caracterizada como enfrentar o mundo como ele é, exatamente
como ele costuma ser em sua contingência e facticidade, com o propósito de
“revelar esse existente contingente em sua inteireza”.
A oposição sartreana repete Bergson “a matéria é
necessidade, a consciência é liberdade”, de A Energia Espiritual, o eterno
conflito, encenado em A Evolução Criadora entre a vida (duração, impulso,
energia) e o que lhe opõe resistência (matéria, natureza, recaídas incessantes
da espécie humana na matéria e na natureza). Bergson acrescenta que matéria e
liberdade podem “muito bem se opor uma a outra”, mas a vida encontra sempre “o
meio de reconciliá-las”, pois a vida é precisamente a liberdade inserindo-se na
necessidade e transformando-a a seu favor.
Sartre, em O Ser e o Nada, era um antinaturalista
conseqüente. Fazia o possível para desnaturar o sujeito. Em Crítica da Razão
Dialética, escreve “a história do homem é uma aventura da natureza”, e isso não
só porque
(...) “o homem é um organismo material, com
necessidades materiais”, mas porque “a matéria lavrada, como exteriorização da
interioridade, produz o homem, que a produz ou a utiliza, por ser constrangido,
no movimento totalizante da multiplicidade que ele totaliza, a reinteriorizar a
exterioridade de seu produto”
Assim como em O Ser e o Nada a realidade humana é
sinônimo de consciência, podemos dizer que a dialética pressupõe em toda sua
extensão a consciência individual.
A intuição sartreana de que o destino de um homem
se faz a partir, não de seu passado, mas de seu futuro. A definição do sujeito
como “ser” que, diferentemente do “Em-si”, que “é apenas o que é”, é
perpetuamente “o que ainda não é”. A idéia de uma “realidade humana” que só se
temporaliza a partir do “adiante”, na “antecipação” de si - mesma,
“projetando-se em direção a um possível” que vai tornar-se o “projeto”
sartreano.
A idéia de que o ser é o tempo, de que ele deve ser
todo repensado a partir do tempo, mas também de que, longe de o passado ser,
como para Bergson, a dimensão desse tempo que dá força ao futuro, longe de o
passado nutrir o futuro, futurizá-lo e insuflar-lhe a energia e o sentido, é o
inverso que se dá: o futuro empresta força ao passado, imanta-o, dá-lhe seu
sentido e, na ordem do ser, precede-o.
Para Bergson, a vida deriva de um impulso da
própria vida, é uma manifestação da Vida Criadora, “Ato Puro” que produz todos
os fenômenos. O princípio mesmo de O Pensamento e o Movente... A definição
bergsoniana do conhecimento como progresso continuo, processo sem fim,
movimento necessário e incessante. A vida, para Bergson, não é um fenômeno
suspenso no vácuo da natureza atéia, mas tem de ser vista sobre o último plano
da Vida Criadora, Deus, que trabalha na Natureza, criando, no momento
ascendente da mesma Natureza, novas e mais elevadas formas.
Referindo-se ao conhecimento, a divisão básica é
consciente e inconsciente. Para Bergson, de acordo com a Introdução de Utopia
Cristã no Sertão Mineiro , é a necessidade pragmática da Vida que divide o
mundo em duas partes: consciente (aquilo que se precisa conhecer para atuar no
mundo) e inconsciente(aquilo que, se conhecido, de alguma maneira irá
atrapalhar a conservação da Vida em seu estágio presente). Se a vida não é
apenas conservação e sim também criação, novas dimensões da realidade têm de ir
sendo incorporadas ao consciente para que a mesma vida possa continuar.
A obsessão sartreana por uma natureza sempre
qualificada como pesada, pastosa, viscosa – presença inquietante, massa
informe, plenitude sufocante, espessura vegetativa e asfixiada, desmoronar
gelatinoso, cola, transbordamento: estamos tão longe da definição bergsoniana
da matéria?
A assertiva de que a natureza é exterior a si mesma
parece pressupor, mais uma vez, a consciência. Por outro lado, afirmar que a
natureza é exterior a si só se entende a partir de um conceito, unívoco de
interioridade: a interioridade como sinônimo estrito de consciência.
No seio da natureza, diz Sartre em Baudelaire:
(...) sente-se preso em uma imensa existência amorfa
e gratuita que o traspassa inteiro com a sua gratuidade” e lhe causa medo.
“No meio das cidades, pelo contrário, rodeado por
objetos precisos, com existências determinadas pelos seus papéis e, todos,
aureolados por um valor e um preço”, ele está á vontade: eles “lhe devolvem o
reflexo do que seja ser, uma realidade justificada”
O “judeu Sartre” – esse antinaturalista resoluto,
que, por nunca transigir quanto a seu antinaturalismo, por nunca se ter curado
do enjôo diante do perfume da natureza, manteve, até o fim, a escolha da
errância, da fratura, do exílio, da não-propriedade de si e das coisas. A
Natureza é a vida? Não, é a morte.
Aqui, encontraríamos certas análises de O Ser e o
Nada:
A vida morta não cessa, por isso, de mudar e, no
entanto, ela está feita. Isto significa que, para ela, os jogos estão feitos e
que, de hoje em diante, sofrerá suas mudanças, sem, entretanto, ser responsável
por elas... Nada mais lhe pode vir do interior, ela está inteiramente fechada:
nada mais se pode fazer entrar ali; mas, seu sentido não cessa de ser
modificado de fora... Estar morto é ser presa dos vivos .
E quem pode em sã consciência não considerar que
Sartre está expressando e dizendo acerca do “intelectual”, do “escritor”,
enquanto aquele quem deixa suas obras, seus pontos de vista acerca da
existência humana, desta consciência de que somos a busca de ultrapassar a
nossa liberdade à busca da “consciência universal”, embora Sartre mesmo tenha
negligenciado haver-lhe considerado como a “consciência-do-século”.
A tentação antiintelectualista não é o tom
dominante do “pensamento-Sartre” nem o seu aspecto mais suave. Ela percorre La
Transcendence del Ego , oposição do “fluxo concreto” da consciência
fenomenológica à lentidão do conhecimento transcendental. E mesmo O Ser e o
Nada, “não há conhecimento que não seja intuitivo”. Em Bergson, a intuição,
destituída de motivos utilitários, permitiria a apreensão do que é vida,
dinamismo, mudança qualitativa, duração, criação.
A idéia de que posso, até o fim, mudar o sentido do
meu passado, desligar-me dele e, no mesmo impulso, transformar em escolha o que
o “penso” do mundo me impôs como destino. Sustentando Sartre a maravilhosa
aposta do arrancar-se da banalidade do ente, percebe-se a denúncia bergsoniana
do “impessoal” e do murmúrio “mecânico”: o vitalismo contra o pensamento do
“esquecimento do Ser...”
A grande lição de Schopenhauer ou dos grandes
moralistas franceses, La Rochefoucault primeiramente: o olhar viola, no caso
particular de Sartre o problema de seu olho direito, “um olho manda o outro à
merda”, somos todos medusas petrificadas.
Falávamos antes que a análise existencialista da
intersubjetividade fica como que emperrada em seu ponto de partida, naquele
momento em que o escravo não passa de um simples objeto para o mestre. A
dialética sartreana não se desata nem se resolve.
Na Dialética do Senhor e do Escravo, o ponto de
partida de Hegel é o imediato: a consciência-de-si na sua simplicidade e
igualdade consigo mesma, excluindo o outro, toma por objeto o seu Eu singular.
Qualquer outro que apareça já virá marcado com sinal negativo, não lhe é
essencial como objeto. Ora, o outro que surge é uma consciência-de-si, com
igual independência; e a relação que estabelecem as suas consciências ainda
imersas no ser da vida – pois como vida está aqui determinado o objeto
“essente” - é imediata: enfrentam-se como simples indivíduos, que ainda não se
apresentaram um ao outro como consciência-de-si.
Um indivíduo que não arriscou a vida poderá ser
reconhecido como pessoa, porém não atingiu a verdade desse reconhecimento
enquanto reconhecimento de uma consciência-de-si independente. Arriscando a
vida, o indivíduo visa á morte do outro: a vida alheia não vale mais que a
própria. O Outro tem de ser posto em perigo de vida para suprassumir sua
alteridade: assim deixa de ser consciência perdida nas escórias dos muitos
modos do ser e da vida e adquire a pureza do ser-para-si, como negação
absoluta.
A reflexão hegeliana sobre a “luta mortal pelo
conhecimento” , Sartre dá crédito a Hegel por sua”ligação sintética e ativa”
entre duas consciências que não são mais exteriores, mas constitutivas uma da
outra; reconhece-lhe o mérito de ter sabido ver, em meu duelo com o Outro, na
querela, então, e na guerra, o que faz de mim um sujeito; exceto que, ali onde
fazia desse duelo um simples momento, ali onde a Fenomenologia do Espírito,
tomando o ponto de vista do Absoluto, via já chegar o outro momento, o
seguinte, quando a separação será reabsorvida, Sartre vê o estado normal da
relação inter-humana, um escândalo definitivo.
Contrariamente a Hegel, Sartre não imagina encontro
de consciências que não se torne tão logo, e indefinidamente, uma
agressividade, um olho “mandar o outro à merda”. Não concebe olhar que não seja
uma declaração de guerra, nem gesto dirigido ao outro que não implique uma
alteração das consciências, que perdem, tão logo se aproximam.
Pelo olhar se manifesta toda a ambigüidade que sou.
Pelo simples fato de surgir um outro adquiro uma dimensão de exterioridade, e
tudo se passa como se eu tivesse uma natureza estável e me transformasse num
em-si. O olhar do outro espacializa-me e me temporaliza, e me ofereço, sem
defesa, à apreciação alheia; assumo, a despeito de mim, uma liberdade que não é
minha.
Observe-se que a inspiração dessa doutrina na
dialética hegeliana do mestre é evidente. Em Hegel, essa dialética se apresenta
como resultado de um processo “histórico”, sendo apenas um momento da evolução
geral do Espírito. Em Sartre, a tese torna-se absoluta e aplica-se à realidade
humana como tal . O olhar alheio, porque tende a transformar-me num em-si, põe
em perigo meu ser, e “esse perigo não é um acidente, mas a estrutura permanente
de meu ser-para-outro” .
O campo inteiro das relações entre os sujeitos,
assim como atesta o que ele diz sobre o amor, ou sobre o erotismo, “se o ato
sexual não é normalmente, uma violação consentida”, se não é “sempre, mesmo que
de forma mascarada, uma espécie de violação”, se “toda penetração” não
comporta, o que quer que se diga, e o que quer que pense os meigos sonhadores a
imaginar “uma outra mulher e um outro homem construindo-se na revolta do hoje”,
um inevitável “elemento de agressividade”: é “importante de um ponto de vista
revolucionário”, resmunga,
“(...) decidir se o ato sexual é uma violência ou
se existe um ato sexual não violento, construído e equilibrado a partir do ato
sexual violento”, e conclui: “não creio que a agressão possa ser completamente
eliminada da sexualidade – antes de lançar a seus interlocutores espantados: “a
maioria dos homens de Libération” nunca se perguntou “o que sente uma mulher
nas relações sexuais”, pois nessa mistura de corpos, que é o amor, nessa guerra
de todos contra todos e sem fim, “é um problema que não interessa muito aos
homens”
O olhar nos revela a existência indubitável do
outro para quem nós somos. “Qual é o ser desse ser-para-outro?” O
ser-para-outro não pertence á estrutura ontológica do ser-para-si; não podemos
também derivar um do outro, à maneira como se tira a conseqüência de um
princípio. O olhar “nos revela como um fato a existência do outro e minha
existência para outro”. Mas ser-para-outro ocorre como um acontecimento
absoluto.
Que chama Sartre “sujeito”? O que quer dizer quando
diz “sujeito” e quando opõe esse termo á indigesta mineralidade das coisas?
Como define esse sujeito, e como sua definição combina com seu anti-humanismo?
O Sentido profundo da análise de Sartre é que a
relação sujeito-sujeito não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto;
no fundo, ele pensa a relação do para-si com o em-si.
Sartre acredita em um eu esvaziado de si, proibido
de permanecer em si. “A consciência se purificou”, frisa ele, no artigo sobre
Husserl, de 1939, A intencionalidade em Husserl “é clara como um forte vento,
nada há nela senão um movimento para fugir de si”.
Assim como não tem interioridade, o eu não tem uma
unidade que faça a chamada dos “eu” espalhados. A convicção de Sartre é de que
não se deveria falar do sujeito senão non plural: não a, mas as consciências,
não a, mas as subjetividades; uma infinidade, para cada um, de consciências e
de subjetividades que a comodidade da vida torna, às vezes, um sujeito; e,
indexada nessa infinidade, ligada a essa explosão fundadora, a disparidade dos
estilos e das escritas.
(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)
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