#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE VI# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO
2.0
GENUÍNO POMO DA SABEDORIA
A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A
beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma
necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste
mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski
2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO
Dostoïévski deu novos olhos aos homens: o mundo nunca será o mesmo
depois dele. Ele aperfeiçoou o nosso olhar e nossa grandeza como seres humanos
do século XX, buscou espiritualizar-nos e evangelizar-nos através de sua vida e
de sua Fé em Cristo, de sua literatura que revela o “subterrâneo da alma
humana” num século de esplendores e horrores. Ele nos armou para enfrentar as
paixões – purificados pela leitura de seus livros, exorcizamos os nossos
demônios e descobrimos, encarnados, que não há nada mais maravilhoso do que
cada um ser ele mesmo e não outra pessoa, reconhecer em si uma missão a ser
realizada com cada gota de sangue que nos percorrer as veias, sob sofrimentos e
dores os mais pujantes e “marcantes”. Orienta-nos nas sendas da liberdade, da
responsabilidade com o nosso povo, nossa pátria, nossa terra-natal, na nossa
entrega ao outro, entrega esta de carne e osso, espírito e alma. Somos
responsáveis por nosso mundo.
Durante sua estada na prisão, não há indícios de que tenha renunciado a
nenhuma das convicções que inicialmente o levaram para lá. Vinte e quatro anos
depois, ele escreveu no Diário de um escritor que, “senão todos, pelo menos a
grande maioria de nós (os membros do grupo de Petrachevski) considerou desonroso
abdicar de nossas convicções” por causa da prisão.
Ninguém pode dizer o que realmente se passava na cabeça e no coração de
Dostoïévski durante todos aqueles anos angustiantes – pode-se, contudo, afirmar
o sofrimento ter sido realmente doloroso e pujante - mas foi durante esse tempo
de retraimento que ele começou a rever minuciosamente suas idéias e convicções
anteriores. Nada escrevera nesses anos, apenas a leitura da Bíblia.
Na sua solidão espiritual, passou em revista toda a sua vida, repisou os
menores detalhes, meditou sobre seu passado, formou juízo implacável e severo
sobre si mesmo, e houve até momentos em que deu graças ao destino por lhe ter
colocado naquela solidão sem a qual não teria sido possível julgar a si mesmo
dessa maneira, nem chegar àquele severo exame de sua vida passada.
Qualquer estudo cuidadoso sobre os anos de cárcere de Dostoïévski deve
partir de uma certeza incontestável: a de que o primeiro período de sua vida no
presídio, que se estende por pouco mais de um ano, submergiu-o num estado
emocional que se pode qualificar como de choque traumático. E, embora
Dostoïévski o negue, a extrema severidade física do regime carcerário não
poderia deixar de produzir efeitos negativos sobre seu estado psíquico em
geral. É verdade que não se deixou abater pelos sofrimentos que foi obrigado a
suportar, nem modificou suas convicções para amenizar sua sorte ou granjear
favores.
Pode parecer, à primeira vista, que Recordações da Casa dos Mortos não
tenha qualquer organização e seja unicamente relato direto, um tanto
desorganizado e inevitavelmente cauteloso e circunspecto dos anos que o autor
passou na prisão. No entanto, mesmo que a obra não tenha uma trama no sentido
óbvio, é de qualquer modo mais unificada do que os seus mais notáveis rivais,
Relatos de um caçador, Turgueniev, e Histórias de Sebastopol, Leon Tolstói.
Com efeito, os episódios narrados por Turgueniev são totalmente
independentes um do outro e estão unidos apenas pelo mais frouxo dos elos
narrativos: as andanças de um caçador à procura de caça colocam-no em contato
com a vida russa ao longo de toda a escala social, e ele nos comunica as
curiosidades de suas observações. Assim, as histórias têm uma unidade
propiciada pela personagem sensível e humana do seu contador – um culto
cavalheiro russo de tendências liberais – mas sem nenhuma outra organização
global. Tolstoi está mais próximo de Dostoiévski, porque pelo menos suas
Histórias são ligadas pela unidade de lugar; mas são também mais ou menos
independentes e carecem de uma integração estrutural ambiciosa. O que unifica
suas narrativas é a evolução delas desde a glorificação inicial do heroísmo dos
defensores de Sebastopol até um protesto mudo contra a futilidade da incessante
carnificina; e adquirem um ligeiro movimento épico porque a queda da cidade
cuja defesa descrevem termina na última das quatro histórias.
Recordações da casa dos mortos é organizada com mais cuidado, e o padrão
que engloba os episódios reflete a gradual penetração do narrador no mundo
estranho e desconcertante do presídio – sua aquisição, à medida que domina
lentamente seus preconceitos e prejulgamentos, de um novo entendimento da
intensa humanidade e da qualidade moral particular daqueles que no princípio
olhara apenas com aversão e consternação. Assim, o plano da obra, desenvolvido
por esse processo de descoberta, tem um caráter “dinâmico” e reproduz o
movimento de assimilação e reavaliação morais e psicológicos que o próprio
Dostoiévski experimentou.
Uma das anomalias de Recordações da casa dos mortos é que Dostoïévski
não inclui em suas páginas um relato de sua experiência de conversão, mas
escrevera nesta obra uma imagem da origem desta conversão: “O traço mais
característico e mais impressionante do nosso povo é sua consciência e sua sêde
de justiça” . Contudo, não é de se indagar se no Capítulo XI O espetáculo , não
o tenha feito em termos da conversão artística, a partir da Katharsis na peça
encenada no presídio? Por que não o fez noutra dimensão? Por que não a dimensão
do teatro? Difícil explicar. Pode ser que o medo da censura, das conseqüências,
tenha influenciado nessa decisão; talvez se tratasse de algo demasiado pessoal
e íntimo, que implicava uma exposição psicológica muito grande e incompatível
com o tom de narrativa objetiva que ele desejava preservar. Ademais, é claro
que não poderia fazê-lo com a mesma liberdade que teve mais tarde, quando não
precisou mais esconder as razões políticas de sua condenação.
Aliás, assim diz Dostoïévski, um conselho íntimo e fraterno aos
escritores:
Falei “teatro popular”; e seria realmente bom que os nossos escritores
se ocupassem com pesquisas novas e mais objetivas nesse gênero de teatro que é
muito mais vivo e mais rico do que o imaginamos. Disso me convenci diante de
tudo que vi nossos forçados fazerem para o seu espetáculo. Há tradições,
métodos, noções já estabelecidas que se transmitem de uma geração a outra .
Imaginemos o que Dostoïévski descreve a partir da “subida do pano”:
Mas de repente, na cena, observa-se um movimento, um rumor... O pano vai
subir... a orquestra inicia a overture (grifo de Dostoïévski). Essa orquestra
merece menção especial... De um lado, na tarimba, via-se um grupo de oito
musicistas: dois violinos (um pertencente a um detento e outro arranjado na
fortaleza – porém o artista era um dos nossos); três balalaicas – obra dos
forçados; duas guitarras e um tamboril, fazendo as vêzes de contrabaixo. Os
violinos rangiam, guinchavam, as guitarras não valiam nada, mas em compensação
as balalaicas eram incomparáveis. A agilidade dos dedos que tangiam as cordas
tinha algo de prestidigitação. Tocavam principalmente músicas de dança. Nas
passagens mais movimentadas, os músicos batiam com os dedos fechados na madeira
do instrumento; o tom, a execução, tudo era original, tudo traía o presídio. Um
dos guitarristas também entendia maravilhosamente do seu instrumento: era ele o
jovem barine parricida. O pandeiro fazia maravilhas: ora girava o disco nos
dedos, ora fazia ressoar a pele com o polegar, ora se ouviam pancadas claras,
límpidas, monótonas, ora irrompia dele um rumor sonoro que caía como uma
cascata e se espelhava num dilúvio de pequenos ruídos trêmulos, em ricochet.
Enfim, havia ainda duas sanfonas. Palavra de honra, eu até então não tinha a
mínima idéia do partido que se pode tirar desse grosseiro instrumento popular;
a harmonia dos sons, a execução, e, sobretudo, a expressão, a compreensão
perfeita dos motivos, eram verdadeiramente extraordinários. Foi então que
descobri quanto abandono infinito, quanto amor do risco traduzem as sugestivas
músicas de dança na Rússia.
(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)
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