#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE II# - IMAGEM: GOOGLE/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO
2.0
GENUÍNO POMO DA SABEDORIA
A arte é para o homem uma necessidade fundamental,
como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma
só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais
viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski
2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO
Interessante a ser observado é que Dostoievski não
tenha se referido à data mesma do acontecido, devido ao fato de a sua memória
ser esplendorosa, recolhida e acolhida sob a dimensão da descrição dos lugares,
dos conflitos e sofrimentos da alma humana, os seus detalhes mais sutis.
Justifica dizer: em verdade, era um homem em demasia fechado.
A data exata da primeira crise de epilepsia de
Dostoïévski tem sido objeto de muita controvérsia; e dois fatores complicam
especialmente a questão. O primeiro é que Dostoïévski sofreu de uma
“enfermidade nervosa” inespecífica durante os últimos anos da década de 1840,
um provável sinal de sua doença posterior. Com isso, as duas enfermidades são
muitas vezes confundidas, embora o próprio Dostoïévski tenha declarado várias
vezes que os sintomas da primeira desapareceram completamente na Sibéria. O
segundo fator de complicação é o crédito atribuído ao famoso artigo de Sigmund
Freud, “Dostoïévski e o Parricídio” , no qual o psicanalista afirma que os
primeiros sintomas epilépticos de Dostoïévski foram provocados por “algo
terrível, inesquecível e angustiante ocorrido em sua infância”. Entretanto, a
única prova que Freud oferece para essa conclusão remete ao (suposto)
assassinato do pai de Dostoïévski em 1839, quando o escritor tinha 18 anos de
idade. Não existe também nenhuma razão para crer que ele tenha sido vítima de
um ataque epiléptico nessa época.
O pai de Dostoïévski tinha trinta anos quando casou
com Maria Nechaev, de dezoito anos, filha de um abastado comerciante de
Moscovo. Por essa ocasião, tendo entrado na campanha de 1812, prestava serviço
como médico militar. Um ano depois do casamento, em seguida ao nascimento do
primeiro filho, Mikhail, em 13 de Outubro de 1820, foi-lhe dado um lugar na
direção do hospital público de Marinsky, de Moscovo, sendo encarregado da seção
feminina de doentes externos. No ano seguinte, a 30 de outubro de 1821, nasceu
Fyodor, seu segundo filho; outro ano depois, Varvara, a irmã mais velha do
escritor; dois anos volvidos, a 15 de Março de 1825, o terceiro filho, Andrei,
cujas memórias são o único depoimento fidedigno da família de Dostoïévski em
Moscovo; quatro anos depois, duas gêmeas – Vera e Lyubov -, tendo esta vivido
apenas uns dias; dois anos a seguir, a 13 de Dezembro de 1831, Nikolai, o
quarto rapaz; e, finalmente, a 25 de julho de 1835, Alexandra, a irmã mais nova
do escritor. Dois anos depois, a mãe de Dostoïévski morreu, tuberculosa.
Talvez nada determine melhor a diferença entre o
Dostoïévski adolescente romântico e o gênio adulto do grande romancista que ele
viria a ser, do que a mudança da sua atitude quanto à inscrição na lápide da
sepultura da mãe. O Dr. Mikhail decidira erguer uma lápide na sepultura da
martirizada senhora, depois de se resolver a mandar os dois filhos mais velhos
para o Colégio de Engenharia de Petersburgo, de se demitir do hospital e de ir
viver para Doravoye.
O meu pai – escreve Andrei -, deixou aos meus
irmãos a escolha da inscrição. Ambos decidiram que a lápide só devia levar o
nome, o apelido e as datas do nascimento e da morte. Como inscrição, escolheram
um epitáfio de Karamazine: “Descansa em paz, bem-amado pó, até à radiosa manhã”
. E este belo epitáfio foi gravado sobre a lápide .
Dostoïévski cita essa inscrição por duas vezes nos
seus escritos e das duas vezes não pode deixar de escarnecer dela, achando-a
totalmente ridícula, clichê de mau gosto. A primeira vez foi no quarto capítulo
da quarta parte d´O idiota, na versão do general Ivolguin da história burlesca
de Liebediev: Liebediev tendo perdido uma das partes na campanha de 1812,
enterrara-a e mandara erguer um monumento no local com a inscrição “Descansa em
paz, bem-amado pó, até à radiosa manhã”. Quatro anos depois, Dostoïévski cita
esta inscrição em Bobok, o seu primeiro conto “fantástico” publicado em O
cidadão, em Fevereiro de 1873.
Mas não foi somente por causa da bebida que me
tornei amigo dele. O que me permitiu isso foi, justamente, ter-lhe verificado
qualidades. Mas apenas até certo ponto, mesmo no que se refere às qualidades.
Mas já que ele, subitamente, teve a impudência de declarar na cara de quem quer
que fosse – e todavia foi na minha! – que, em 1812, quando devia ser
simplesmente uma criança, perdeu a perna esquerda e que a enterrou no cemitério
de Vagánkovskii em Moscou, então ultrapassa os limites e se mostra desrespeitoso
e impertinente...
Segundo Derrida, traduzindo o discurso da lembrança
e do luto, a retórica do epitáfio incorpora o outro na violência do mesmo – do
sujeito, do orador, do amigo. A amizade, fraternidade, amor, solidariedade
trazem, no seu âmago, o luto e com ele o epitáfio e suas aporias: manter a
memória do morto pela oração fúnebre e, ao mesmo tempo, vê-la dissolvida na
subjetividade do orador-amigo – no caso de Dostoievski, dos oradores, família.
Nesse sentido, Derrida se refere a um “luto possível” e a um “luto impossível”:
Onde se encontra a traição mais injusta? [...] a do
luto possível, que interioriza em nós a imagem, ídolo ou ideal do outro que
está morto e vive somente em nós? Ou talvez a desse luto impossível, o qual
deixando o outro na sua alteridade, respeitando assim o seu infinito
afastamento, recusa tomar, ou é incapaz de tomar, o outro dentro de si mesmo,
como no túmulo ou na abóbada de um narcisismo? (Derridá, 1988, p. 29).
As aporias do epitáfio levam ainda Blanchot a
propor um “epitáfio impossível” a seu amigo Georges Bataille, sem lembrança,
sem dissolução da alteridade, sem o fortalecimento da memória, mas antes do
esquecimento:
E, portanto, quando chega ao acontecimento [a morte
do amigo], provoca a seguinte transformação: não o aprofundamento da separação,
mas seu apagamento, não o alongamento da fissura, mas seu nivelamento e a
dissipação do vazio entre nós. [...] Podemos lembrar-nos, mas o pensamento sabe
que a gente não lembra. Sem memória, sem pensamento, ele luta já no invisível
onde tudo recai na indiferença. Nisso consiste sua dor profunda. É preciso que
ela acompanhe a amizade no esquecimento (Blanchot, 1971, pág. 329).
Marcos Antônio Alvarenga, curvelano, em seu texto
Adeus Saulo, Adeus Boi de Carro. Até um dia, assim escreve numa passagem deste
epitáfio:
Boi de Carro viajou empobrecendo a nós tão ricos,
em coisas sem importância. Ficou o exemplo de amizade fiel! O exemplo de como
levar a vida! Inteligente e moderado no trabalho dispunha do tempo que para o
rico pobre gera depressão enquanto para o pobre rico gera alegria. Não fazia
força contra o jeito nem dava laçada sem nó .
A fusão do escritural com o sepulcral ocorre também
nos três livros de Antônio Nilzo Duarte, curvelano, escritos in memoriam à
Maria Neusa Siqueira Duarte. Nesta homenagem à querida e amada esposa, o autor
anuncia incessantemente como a sua trajetória reflete uma morte que não cansa
de retornar.
A minha vida, Neusa, a minha verdadeira vida teve
sentido no momento em que a conheci. Foi quando me iniciei no amor e, creia-me,
minha amada, que ninguém, ninguém mesmo tenha amado com tamanho devotamento
como eu a você, e ainda hoje a amo, sobretudo sob as vistas de seus retratos.
Eu sinto ainda, com grande intensidade, a verdadeira vida que ontem existiu
para mim, amando e sendo amado. Não sei até quando poderei sobreviver estes
angustiantes dias de minha vida.
Hoje falta-me o essencial, que não é senão você,
minha amada Neusa, para que me desse um impulso e eu pudesse, assim, revelar
mais uma vez o testemunho dessa minha paixão. Estou certo de que tudo que se
passou em nossas vidas, entre nós, eu não deixei de relatar, mas, se alguma
coisa ainda existir, eu voltarei a escrever-lhe, a fim de que tudo entre nós
seja devidamente esclarecido .
Ao reproduzirem a retórica do epitáfio, os
discursos filosóficos da amizade questionam a suposta estrutura de simetria e
reciprocidade existente na perspectiva clássica da amizade, introduzindo uma
“assimetria insuperável” entre os amigos. Como bem observa Ortega (2000, p.
69-70), com o amigo morto não pode haver simetria, pois a lógica do epitáfio de
uma amizade além da morte, reproduz uma egologia e o fortalecimento da
subjetividade. A alteridade do morto é dissolvida e progressivamente assimilada
ao discurso do amigo que lhe presta a homenagem fúnebre.
Tinha um coração de ouro que em notas aveludadas e
cristalinas brotava pela garganta e aí era tanta beleza, tanta emoção que
apertava o peito da gente e a água jorrava dos nossos olhos. Nos casamentos os
noivos deixavam de ser as vedetes e se sentiam felizes ao ceder as honras a
Saulo .
(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)
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