#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE IV# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



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GENUÍNO POMO DA SABEDORIA


A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski


2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO


Desde o inverno de 1848, Dostoïévski havia começado a freqüentar as reuniões do círculo de Petrachevski, jovens que se encontravam na casa de Mikhail Butachévitch-Petrachévski para discutir as grandes questões do momento que a imprensa russa amordaçada estava proibida de veicular. Tronos desabavam por toda a parte na Europa de 1848; novos direitos eram obtidos, novas liberdades eram reclamadas, e foi nesse clima tenso, cheio de expectativas, estimulado pelas notícias de vitórias sem precedentes conquistadas no exterior, que as discussões, na casa de Petrachevski, tomaram, gradualmente, rumos mais perigosos e fizeram brotar o irresistível anseio de seguir o exemplo dos prodigiosos eventos de bravura e heroísmo que se produziam na Europa.


O problema de saber até que ponto Dostoievski foi influenciado pelas idéias radicalistas de Bielinsky, e sobretudo pelo seu ateísmo, continua por solucionar cabalmente. Houve um período na vida de Dostoievski – o período da concepção de Os possessos – em que nenhum insulto foi suficiente para manchar a memória de Bielinsky. Falou do crítico a Strakhov como tendo sido “o mais estúpido, vergonhoso e prejudicial fenômeno na vida russa”.


Aquele homem – continuava – injuriou Cristo na minha presença com as palavras mais obscenas, e no entanto nunca conseguiu pôr-se a si próprio ou a alguma das notabilidades do Mundo no mesmo nível que Cristo. Não podia conceber quanto orgulho mesquinho, que más intenções, quanta cólera, quanta vileza e, acima de tudo, quanta vaidade havia dentro dele. Nunca se lembrou de perguntar a si próprio: quem havemos de pôr no lugar d´Êle? Não nós, certo, que somos tão vis. Não, esse pensamento nunca o afligiu .


Dostoiévsky recusava-se mesmo a reconhecer que Bielinsky tivera algum talento. Esquecia até que ficara a dever a glória a Bielinsky e que, embora o crítico tivesse feito reservas a algumas das suas obras e condenado A senhoria como “algo de monstruoso, sensacionalista e falso”, nunca renegou a admiração por Pobre gente. Não podemos deixar de pensar se Dostoievski insultava assim Bielinsky em 1871 por ir regressar à Rússia, sabendo que a polícia secreta russa o vigiava e abria todas as cartas dele. Dois anos depois, tendo-se tornado editor da reacionária revista mensal O cidadão, Dostoievski não foi levado a proclamar mais a sua opinião com tal veemência, e no primeiro número do Jornal de um escritor fez uma relação muito mais ponderada das ligações com Bielinsky.


A minha primeira obra, Pobre gente – escreveu Dostoievski – encantou-o; (assim, um ano depois, acamaradámos um com o outro – por razões que eram, aliás, insignificantes em todos os aspectos; mas nesse tempo, tendo-se ligado a mim profundamente tentou logo, com o ímpeto mais ingênuo, converter-me às suas crenças. Não estou de maneira alguma a exagerar o seu vibrante afecto por mim, pelo menos nos primeiros meses em que nos conhecemos .


Nesse período, Bielinsky era, segundo Dostoievski, um “socialista apaixonado”, e iniciou a conversão de Dostoievski “diretamente para o ateísmo”. Sentia que, como socialista, tinha antes de mais de “banir o Cristianismo”, gerador dos “princípios morais” da sociedade que Bielinsky odiava. Pensava, sem dúvida, que ao negar-se a responsabilidade ética do individual se negava também a liberdade de cada indivíduo; mas – declara Dostoievski – “acreditava com todas as forças que o socialismo, longe de destruir a liberdade pessoal, re-estabelecia-a com grandeza sem precedentes, e desta vez em diamantinos princípios inabaláveis”. Bielinsky era, em verdade, um idealista, “uma personalidade sempre em êxtase”, mas estava tão firmemente decidido a destruir a doutrina de Cristo que chegou a negar “a inacessível grandeza moral e a beleza suprema e transcendente” da própria figura de Cristo, “ao contrário de Renan, que na completamente atéista Vie de Jésus proclamava que Cristo era ainda o ideal da beleza humana”.


Um traço cada vez mais importante da imaginação literária de Dostoievski: sua tendência a inventar uma situação extrema, um conjunto extremado de circunstãncias, nas quais ele coloca uma personagem a fim de ressaltar a reação moral e psicológica apropriada que quer exemplificar. Encontramo-nos no cerne daquilo que, alguns anos depois, se tornará a defesa histérica que o “homem do subterrâneo” fará da irreprimível e indispensável necessidade do espírito humano de manter o senso de sua própria liberdade – sua preferência pelo sofrimento, se preciso for, a uma vida de plenitude numa utopia socialista na qual essa liberdade seria abolida por uma questão de princípio.


Quanto ao sofrimento, não podemos deixar de registrar o pensamento de Byron, uma das influências de Dostoievski. A tragédia é não podermos acreditar nos dogmas da religião e da metafísica, quando trazemos no coração e na cabeça o rigoroso método da verdade, e que por outro lado, graças à evolução da humanidade, tornamo-nos tão delicados, suscetíveis e sofredores a ponto de precisar de meios de cura e de consolo da mais alta espécie; daí surge o perigo de o homem se esvair em sangue ao conhecer a verdade. Byron exprimiu isso em versos imortais:


Sorrow is knowledge: they who know the most
Must mourn the deepest o´er the fatal truth,
The tree of knowledge is not that of life
[Sofrimento é conhecimento: aqueles que mais sabem
Devem prantear mais profundamente a verdade fatal,
A árvore do conhecimento não é a da vida] .


Para tais preocupações não há melhor remédio que evocar a solene frivolidade de Horácio, ao menos para os piores instantes e eclipses da alma, e juntamente com ele dizer para si:


Quid aeternis minorem
consiliis animun fatigas?
cur nom sub alta plátano vel hac
pinu jucentes –
[por que afadigas a alma pequena
com desígnios eternos?
Pó que não deitar sob o alto plátano
ou sob este pinheiro...]


Petrachevski, como discípulo fiel de Charles Fourier, clamava que o homem, como qualquer outra criatura viva, tem direitos e deveres na vida – o que, para ele, como para qualquer outra criatura na natureza, significa uma evolução livre e multilateral, de acordo com as exigências e as leis da sua própria natureza; a vida do homem deve ser absolutamente sagrada através de todas as circunstâncias e em todos os tempos; toda a sociedade bem organizada deve ter como lema a eliminação de contradições e diferenças de opinião entre os seus membros de maneira que o desejo comum e unânime de todos seja a proteção do bem-estar da prosperidade de todos. Que isto se torne lei universal – e a própria sociedade se tornará a realização prática dos preceitos do amor fraterno pregados pelo nosso Redentor. Em suma, todos devem amar conscientemente o próximo como a si próprios.


O sempre vigilante soberano russo, Nicolau I, só se decidiu a afiar ainda mais suas garras de ferro diante dessa nova ameaça. A prisão de Dostoïévski e de todo o círculo de Petrachévski fez parte dos esforços do czar para erradicar as menores manifestações de pensamento independente que, simpatizando com as revoluções que irrompiam no exterior, poderiam provocar convulsões semelhantes dentro do país. Citando um exemplo, o novo ministro da Educação, príncipe Chirínski-Chikhmátov, aboliu o ensino da filosofia e da metafísica nas universidades – cujo corpo de estudantes, aliás, já se reduzira muito – e os cursos de lógica e de psicologia foram entregues a professores de teologia.


Nesse clima político e ideológico é que Dostoïévski foi preso, julgado e condenado. Um certo desafogo na atmosfera da sociedade russa se verificaria, porém, logo depois de Dostoïévski ter cumprido sua pena no presídio de Omsk, pois a declaração de guerra à Turquia, em 1853, provocara um conflito não só com o decadente Império Otomano, mas também com a França e a Inglaterra.
Durante um qüinqüênio sofreu, na carne e no espírito, o apodrecimento de sua personalidade, trágica e livre, nas prisões siberianas. A solidão do cárcere mostrou-lhe - de início de modo artístico, em nível do desejo da liberdade e da idéia de Beleza e Belo, mas, no seu quotidiano, da Realidade e do sonho do Real, através dos sofrimentos e dores – que a autonomia da personalidade humana podia ser realidade viva; a angustiante expectativa do fim dera um novo significado transcendente (e não mais exclusivamente social e secular) às suas crenças cristãs; ele havia visto a essência moral dessas crenças encarnada de maneira comovedora naqueles que tiveram a generosidade de visitá-lo no cativeiro.


Se a atitude de Dostoïévski para com os presos foi abalada por sua crescente familiaridade com as razões dos seus crimes, foi também muito influenciada pelo que pôde observar a respeito de sua aceitação instintiva do código moral cristão, até mesmo reverência por esses valores.


(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)


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