#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTRE - UMA LEITURA DO OUTRO E O OLHAR EM “O SER E O NADA"# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA



POST-SCRIPTUM: Esta DISSERTAÇÃO EM SARTRE foi publicada em livro pela GRÁFICA DIAMANTINA, em 2003.


2.0 - SUJEITO E OBJETO - I PARTE


A constante de toda a filosofia de Sartre, sem dúvida, reside na preocupação com o problema do fundamento. O Ser e o Nada revela a linha diretriz básica que deve possibilitar o seu esclarecimento.


Melhor seria especificar a especificidade de nossos desejos e intenções em nível de considerar a “consciência” em primeira instância, aliás, tema da obra em sua plenitude; se a consciência é constitutivamente intencional, isso se verifica com categoria à medida que encontra no nada o seu fundamento; o para-si busca afirmar-se, persegue o ser porque não é, não é ser, e sim nada. A intencionalidade é explicada como um esforço de auto-superação do nada. Sartre refere-se ao “desejo de existir com a consciência inteira sobre o modo de ser da coisa”. Sem dúvida, tudo o que não quero ser é o nada, permanecer na condição do nada, inerte, “nós somos sobre o modo de ser do dever ser o que somos”. O garçom de barzinho, botequim, café, representa ser garçom e busca realizar a sua condição. O Para-si deve ser garçom, e se não o conseguir será devolvido a seu próprio nada, será um nada de garçom. (Parág.


Se nos referimos à consciência, sendo o tema central da obra, é-o, com efeito, dela vindo à luz a “liberdade”, constituindo-a, superando-o à busca da essência, desde suas palavras, aliás, sobremodo presente nos existencialistas, “a existência precede a essência”, sabendo de antemão e revezes que a essência são as obras, o conjunto delas, o que justifica estar-no-mundo entre as coisas, os homens, os objetos.


Veremos, nesta exposição da conciliação, reconciliação da relação entre o Eu e o Outro, enquanto ontologia, vista sob a luz do indivíduo, ele mesmo, sem importância coletiva, e enquanto relação social, relação com a História.


Sob este ponto de vista, pensamos que a dificuldade imprescindível da união do marxismo e existencialismo reside na questão da essência em Marx e a essência em Sartre. Marx considera que a essência humana, “em sua realidade, é o conjunto das relações sociais”, e adverte que “antes de tudo é preciso evitar fixar a “sociedade” de novo como abstração em face do indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua manifestação de vida – mesmo que não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, levada a cabo simultaneamente com outros – é por conseguinte uma manifestação e confirmação da vida social”. Cremos que esta dificuldade reside num modo de pensar Marx, o economicismo muito presente nas interpretações, mas, em tomando outro modo de interpretação, isto é, a leitura marxiana em Paulo T. Fleury Teixeira, esta dificuldade se ameniza um pouco.


O homem se realiza como ser tendendo ao em-si, cedendo ao fascínio do ser. “O que tento realizar é um ser-em-si do garçom de café”. Dois verbos importantes que delimitam toda a situação: “tento realizar”.


O homem tenta. Permanece na tentativa. Porque a consciência não consegue realmente ser um em-si: “Se eu o sou, não posso sê-lo sobre o modo do ser em si”. O tentar pretende ser uma subida ao fundamento, ao “totalmente outro”, e sabemos que tal pretensão está destinada ao fracasso: o desejo é apenas desejo, e a realidade não se poderia identificar com o fundamento. Assim, o tentar se devolve a si próprio, o desejo como que se entope em si mesmo, e o em-si só alcança ser determinado de um modo negativo; “eu o sou sobre o modo de ser do que eu não sou”: o nada determina a essência do em-si.


A identidade com o fundamento resulta impossível porque o para si se conserva separado do em-si – separado par rien, por nada. O Para-si só é ser em-si enquanto representação.


Se a exigência do em-si é o que determina o para-si, pode-se perguntar se, desde esse fundo nadificante da subjetividade, Sartre consegue de fato afirmar um em-si e atingi-lo objetivamente em seu ser. Sartre recusa o chamado problema crítico fundamental. Mas cabe interrogar se a ontologia de Sartre vai além de uma gnosiologia condenada a ignorar-se. Com a crise do fundamento que a gnosiologia se faz possível e mesmo fatal; se o fundamento não pode ser dito, se não se consegue estabelecer uma comunidade ou conaturalidade entre sujeito e objeto, o abismo entre os dois termos torna-se intransponível. Sartre inicia O Ser e o Nada com a constatação de que “o pensamento moderno realizou um progresso considerável reduzindo o existente à serie das aparições que o manifestam” O relevo dado ao fenômeno pelo pensamento moderno ter-se-ia tornado possível graças à supressão de diversos dualismos: interior ou “coisa em si” e exterior ou “manifestação da coisa em si”, ato e potência, essência e aparência. Pela eliminação desses dualismos, visar-se-ia a estabelecer o “monismo do fenômeno”.


Na Introdução, Em Busca do Ser – título da primeira divisão do ensaio - Sartre se ocupa da “idéia de fenômeno”, não apenas para defini-la, mas para conhecer o que ela é e aceder à natureza do seu fundamento. O ser do fenômeno é apresentado numa perspectivamente fortemente antiidealista, como algo de incriado, de autônomo, para lá da atividade e da passividade, da afirmação e da negação (que são todas categorias ou pontos de vista da consciência. Apresentado também como algo de maciço, de opaco, de existente de modo bruto”. Esse é o ser “em-si”.


A fenomenologia vem indicar o modo verdadeiramente correto para abordar fenômenos da consciência como as imagens. Mister compreender que a imagem não é de modo algum uma cópia das coisas. Ela não possui qualquer “conteúdo sensível” retirado do mundo exterior. Possui, ao contrário, uma natureza inteiramente feita de consciência, uma função própria que não pode ser reduzida à reprodução de objetos materiais e uma fenomenologia profundamente diversa da da percepção.


Propondo-nos a investigar o tema “fundamento”, e a conciliação entre o pensamento sartreano e o marxiano, a partir deste fundamento, outra preocupação importante na filosofia de Sartre é sua tentativa de fornecer um “fundamento” ao marxismo por meio de sua fenomenologia existencial. Seria muito equivocado ver isso somente no Sartre de Questão de Método e no que veio depois. As origens dessa orientação já se encontram em sua obra pelo menos desde A transcendência do ego, muito embora sua atitude inicial para com o marxismo mostrasse muito mais restrições do que no final da década de 1950.


Como estudante, Sartre aprende uma espécie mecânica de marxismo, tanto dos que a ele se opunham (seus professores), quanto dos que (como Politzer) defendiam sua causa. Há uma antiga tradição filosófica – entre cujos fundadores encontram-se Simmel e Marx Weber – que reconhece no marxismo, depois de muitos anos de Totschweigen (execução pelo silêncio), o valor de apresentar um interesse parcial (por oferecer interessantes hipóteses históricas) insistindo, porém, que carece de fundamentação filosófica e metodológica adequada. (Parág.) A supressão dos dualismos não alcança desvencilhar-se de uma dicotomia radical, pois se o fenômeno é o que aparece, há aquilo que aparece e há aquele a quem o fenômeno aparece. De onde se torna possível o fenômeno? A sua razão de ser encontra-se na natureza humana ou, ao contrário, em algo que transcende o homem.


No primeiro caso, teríamos a tese idealista de que o ser do conhecido descobre o seu princípio na subjetividade do sujeito, e assim o fenômeno se instauraria a partir do homem. Sartre recusa essa tese: “O ser do conhecimento não pode ser medido pelo conhecimento; ele escapa ao percipi” A tese só subsistiria se existisse uma realidade do “eu” que emprestasse objetividade ao que transcende; ter-se-ia, pois, de admitir a substancialidade do “eu”.


A “psicologia exata e objetiva” deve ser descartada como um “solipsismo” que trata o outro como um objeto, negando seu caráter de sujeito de modo bastante semelhante ao que encontramos na formosa descrição que Sartre fez de uma das estratégias fundamentais da “má-fé”. As mesmas considerações se aplicam ao conhecimento em geral. “O ponto de vista do conhecimento puro é contraditório; só existe o ponto de vista do conhecimento engajado. (...) um surgir engajado num determinado ponto de vista que alguém é”. Assim, o conhecimento é uma dimensão do ser, e “erros” ou “equívocos” de conhecimento devem tornar-se inteligíveis com base nas estruturas ontológicas fundamentais, ao invés de se “dissolverem” por meio de manipulação conceitual: circularidade solipsista que assume a existência distinta e o poder legislativo absoluto de seu próprio pensamento – “imparcial”, “objetivo”, “exato”, “rigoroso”.


Sartre contra o idealismo assevera que “a consciência nada tem de substancial”; ela “só existe na medida em que aparece”, e só aparece a si própria esposando um mundo que está “todo inteiro fora dela”. A tese já aparece em 1936, em La transcendence de l´Ego: o eu “tira do mundo todo o seu conteúdo”. De fato, se a consciência se resume em ser um “vazio total”, não pode ser fundamento do que quer que seja; pelo contrário, Sartre explica a consciência precisamente como busca de fundamento.


Posto assim, faz-se mister partir da consciência no sentido de estabelecer o que é isto – o conhecimento, em Sartre. Poderemos assim compreender com nitidez toda a questão do sujeito, tendo como alicerce o outro e o olhar.


Compreender as razões do entusiasmo com que Sartre estuda o pensamento de Husserl ou uma parte dele não é difícil em hipótese alguma. Nos anos precedentes, Sartre havia procurado reagir contra a ontologia e a gnoseologia realista e materialista, na sua opinião igualmente inaceitáveis. Conforme Simone de Beauvoir, A Força da Idade, Sartre procurou conferir à consciência uma gloriosa independência, se bem que concedendo todo o seu peso à realidade.


Para Husserl, com efeito, o centro da reflexão não é exatamente a realidade a parte objetiva. Mas não é também aquele Eu ou aquele Esprit de que falava grande parte da filosofia francesa da época. Trata-se, ao invés disso, da consciência enquanto consciência-de-algo que existe irredutivelmente na realidade objetiva do mundo.


A teoria da intencionalidade veio finalmente mostrar qual é a verdadeira relação entre sujeito e objeto, entre consciência e mundo: eles nascem e emergem juntos, estando envolvidos numa relação na qual um termo não pode ser sem o outro, embora permanecendo sempre autônomo do outro. Em Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade, diz Sartre que a consciência e o mundo são dados no mesmo momento: pela sua própria essência, o mundo é um conjunto exterior à consciência e a ela relativo.


Não se trata apenas da superação do idealismo e do realismo que Sartre pretende evidenciar na doutrina da intencionalidade. Vale ressaltar que ele pretende utilizá-la contra o pensamento francês seu contemporâneo, definido como uma “filosofia alimentar” na medida em que, na sua corrente realista pretende fazer comer o sujeito pelo objeto e, na sua corrente idealista, fazer “comer” o objeto pelo sujeito”.


A outra implicação deste modo de pensar que interessa ao jovem Sartre fazer salientar é o fato de que a consciência se encontra toda nos atos intencionais que concretamente leva a efeito. Assim como não existe uma essência absoluta das coisas, também não existe uma “essência” substancial da consciência independente de sua existência inteiramente dirigida para a realidade mundana.


Sartre sublinha com energia em Uma Idéia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade que uma consciência “em-si”, uma “vida interior” ou um centro substancial metafisicamente separado das coisas, não existem realmente: “a consciência não tem um ´lado de dentro´. A consciência mais não é senão o ´lado de fora´ de si própria e é esta fuga absoluta, esta recusa de ser substância que a tornam consciência”.


Em La Transcendence de l´Ego Sartre propõe repensar criticamente a perspectiva “egológica” que caracterizou (e caracteriza) boa parte do pensamento moderno (tem ele em mente sobretudo aquelas que têm contacto e que mais importam no ambiente cultural francês) vieram de fato conferir, se bem que de modo diversos, um estatuto particular e uma função privilegiada do Eu.


O cartesianismo de imediato o arvorou em identidade, dele fazendo uma res cogitans que é em si uma consciência, mas não já a consciência “imediata” e espontânea que resulta da experiência, mas antes uma espécie de consciência “reflexa”, uma consciência da consciência muito diferente daquele que sentimos e vivemos no concreto da existência.


Em ambos os filósofos, Descartes e Sartre, a postulação da necessidade de um primeiro princípio metafísico estabelece o reconhecimento de que também o método deve ser metafisicamente determinado pela subjetividade. Tanto num como no outro, o cogito, enquanto fundamento, é alcançado através de duas etapas essenciais.


Descartes busca atingir a afirmação do cogito, mas de tal maneira que sua existência deva ser aceita como certeza absoluta. Pergunta-se o que é o cogito, qual a sua natureza. Assim, Descartes recorre à dúvida metódica, que aplica primeiro ao conhecimento sensível, depois ao intelectual. Fá-lo de modo tão radical que, para atingir as verdades menos abaláveis, lança mão da dúvida chamada “hiperbólica”, isto é, a “hipótese do gênio maligno”. A dúvida se estende a todo o domínio do conhecimento humano, e é precisamente tal amplitude que permite ao filósofo afirmar o cogito como uma certeza absoluta, pois tudo por em dúvida pressupõe a realidade do pensamento. Descartes pergunta pela natureza desse pensar, e infere que se trata de uma substância, res cogitans.


Entre Descartes e Sartre há uma diferença nada pequena: aquele limita a dúvida à esfera do conhecimento, ao passo que este lhe empresta uma dimensão muito mais larga. Sartre não busca submeter à dúvida tão-somente o conhecimento, e sim o próprio sentido da existência humana – da existência concreta, apanhada em seu viver cotidiano, destituída de qualquer realce especial, desprovida até mesmo de significado coletivo.


No mito do Eu, nesta espécie de constante egológica, Sartre vai distinguir a origem de uma série de erros, os quais condicionaram e condicionam o pensamento moderno e contemporâneo. O erro crasso mesmo consiste no desconhecimento da primazia absoluta e da auto-suficiência da consciência, em a considerar por si só incompleta ou incapaz de ser a base da experiência psíquica do homem, e em postular, portanto, um eu como suporte indispensável de tal experiência.


Responde Sartre que o Eu não é de modo algum indispensável nem como centro nem como fundamento dos processos conscientes. Admitir uma entidade deste tipo significa desconhecer a atividade concreta e autônoma da consciência, a sua precedência em relação ao Eu e a todos os outros estados psíquicos. A consciência “é uma totalidade que não tem qualquer necessidade de ser completada”, “aquilo que é realmente prévio são as consciências através das quais se constituem os estados e depois, através destes, o Ego”.


O Eu não tem qualquer realidade lógico-ontológica independente. Não é senão uma modalidade da consciência e precisamente a modalidade “reflexa”. Paralelamente à polêmica contra toda a autonomização (mais ou menos ontologizante) do Eu, a firme crítica do privilégio dado ao momento da reflexão e das categorias da vida da consciência é um dos aspectos mais válidos e felizes desse ensaio de Sartre. Tanto no campo afetivo como no campo intelectivo, a fase reflexa não pode pretender qualquer prioridade. Ela é antes, tanto em sentido lógico como cronológico, uma fase “secundária”.


Não satisfeito com o redimensionamento psicológico do Eu e da reflexão, Sartre tem tendência a apresentá-los como modos externos e transcendentais em relação ao fluxo dinâmico e concreto da consciência irreflexa, interpretando-os como momentos de cristalização e coisificação, de inércia e passividade relativamente a tal fluxo.


Sartre não se contenta com contestar a possibilidade de uma ciência “total” da consciência (na medida em que os estados da consciência podem ser vividos, mas não conceptualmente objetivados), chegando mesmo a propor uma noção da consciência como realidade absoluta e livre no seu íntimo, uma consciência como centro irreprimível e incondicionalmente criativo. A consciência, de acordo com A Transcendência do Ego, Esboço de uma Descrição Fenomenológica “afirma-se a cada instante perante a existência, sem que se possa conceber alguma coisa antes dela. Assim, cada instante da nossa vida nos revela uma criação ex nihilo. Não já uma organização (arrangement, itálico em Sartre) nova, mas uma existência nova. Há aí algo de angustiante para cada um de nós, ao ser posto perante esta imparável criação de existência, da qual nós não somos os criadores. A este nível, o homem tem a impressão de se esquivar permanentemente a si mesmo, de se superar, de ser como que surpreendido por uma riqueza sempre inesperada”.


Sob um outro aspecto, a teoria de Heidegger surge a Sartre como o antídoto mais enérgico contra os vícios de fundo da filosofia francesa: a absolutização do homem, o intimismo da consciência, o descuramento das “coisas” e das situações reais, a rarefação gnoseológica do filosofar. O sujeito mais não é do que um eu absoluto e solipsista, essencialmente entre a um predominante exercício de conhecer. A filosofia não mais deve ser vã egologia, epistemologia abstrata. O sujeito é um Eu terreno, “imerso” e envolvido no real.


A filosofia do Eu e da consciência faz-se filosofia da existência do mundo.


A consciência não surge fechada sobre si, totalmente adequada a si própria. As coisas estão como que comprimidas em si mesmas; “a característica da consciência, ao contrário, é que ela é uma ´descompressão´ de ser”. É impossível defini-la como coincidência consigo própria.


A consciência é consciência de..., ela é intencional, e, nesse sentido, o para-si é o que não é e não é o que é. A vida da consciência consiste em tender a algo que ela não é, buscando como que coincidir plenamente com o outro que não ela mesma, com um intencionado; assim, ela é o que não é. Mas ela não é o outro, não é aquilo do qual tem consciência, visto que, sendo consciência, esgota-se na distância e não consegue abandonar-se; e, assim, ela não é o que é enquanto intencional.


Se o ser mesmo da consciência está em sua exterioridade, se ela se esvai em ser intencional, então a consciência se despe de tudo, ela é nada. A consciência introduz o nada no ser, e a realidade humana revela essa síntese paradoxal de ser e de nada.


A primeira estrutura “imediata” do para-si é a “presença a si”. A idéia fundamental é a de separação ou distância. Não apenas a separação constatável entre o sujeito e o objeto, mas aquela que se instala no próprio seio do para-si. O em-si caracteriza-se por essa presença total a si mesmo, que é total precisamente por não se saber presença; ele como que se comunica por dentro de si mesmo de um modo absoluto, dotado de uma plenitude que ignora qualquer modalidade de relação. No para-si, ao contrário, introduz-se uma “fissura intraconsciencial”, uma “fissura impalpável” se intromete no ser. Tudo se passa, pois, como se se verificasse uma cisão no em-si, e então as partes permanecem devolvidas a si mesmas, como que se encolhendo à sua própria particularidade. O para-si é presença a si; mas esse “si” não pode ser apreendido como se fora um ser plenamente real. O sujeito não pode ser ele mesmo, porque a coincidência total consigo destruiria o “si” do para-si. E o sujeito também não pode não ser ele mesmo, porque pelo “si” do para-si o sujeito se indica a si mesmo. “O si representa, portanto, uma distância ideal na imanência do sujeito em relação a si mesmo, um modo de não ser sua própria coincidência, de escapar à identidade colocando-a ao mesmo tempo como unidade”.


O nada, na realidade, é gerado pelo próprio sujeito. Damo-nos conta disso, em primeira instância, com base na experiência da nossa própria natureza interrogadora; o ser para o qual o nada se produz no mundo é um ser no qual, no seu ser, o nada do seu ser se torna questão. Para ser aquilo através do qual o nada vem ao mundo o homem deve ser livre: de outro modo, e pertencendo inteiramente ao determinismo próprio do ser em-si, não poderia manifestar esse não-ser que é o nada. Para ser aquilo através do qual o nada se manifesta, a liberdade deve ser, no homem, angústia: ela é, de fato, o dar conta da existência desse nada que é o meu futuro como série das minhas ações possíveis (e que, portanto, ainda não-são) e que um Eu que eu não-sou ainda deverá decidir autonomamente.


Habitado pelo nada, o ser para-si do sujeito não tem qualquer solidez, qualquer espessura ôntica. É desagregação, “descompressão de ser”. Sem dúvida, contém (ou é) também ser – aquela parte de inércia e de permanência do homem que Sartre designa por “facticidade”.


O estudo da temporalidade constitui o elo intermediário entre as estruturas imediatas do para-si e a sua transcendência. Não isenta de analogias com as teorias de Husserl e (não obstantes algumas críticas) de Bérgson, as investigações sartreanas da temporalidade continuam presas ao para-si considerado em sua imanência subjetiva.


É pela subjetividade que Sartre tenta a fundamentação da temporalidade; toda compreensão “exterior” da temporalidade falsifica o seu objetivo. As dimensões que compõem o tempo – passado, presente e futuro – são “momentos estruturados de uma síntese original”, ou seja, da temporalidade entendida como característica original do para-si. Cabe descobrir uma nova feição ontológica do para-si, e nisso se repete o procedimento metodológico usual de nosso autor: a análise do núcleo ontológico deve ser precedida de uma descrição fenomenológica ou pré-ontológica.


O tempo, que nasce com o homem, não pode ser compreendido através de uma análise meramente objetiva e quantitativa. Deve ser visto essencialmente no modo como é especificamente vivido por um sujeito determinado (não existe o tempo “em geral”, o tempo “universal”). Deste modo, em particular, o passado, longe de ser algo de completamente separado do presente, é vivido no presente: “eu sou o meu passado”. Este meu passado, de fato, eu vivo-o como parte integrante de mim e sem possibilidade de o modificar, uma vez que ele já foi e por isso está-ali, com as características da imodificabilidade e da invariância. Mas, ao mesmo tempo, eu não sou o meu passado como o era.


O presente, por seu lado, é o absoluto para-si. Ele assinala, de fato, a absoluta “presença” do sujeito perante o em-si. Uma presença que, em conformidade com a natureza que já conhecemos do para-si, se constitui como distinção e separação de, ou seja, como negação. E o “presente” é precisamente essa negação do ser, esta evasão para fora do ser enquanto o ser está lá, tal como aquilo de que se evade.


O futuro, finalmente, volta a afigurar-se sob certos aspectos como o passado. Também ele não-é, também ele assume para o para-si as características do em-si: um ser acabado, imóvel, não modificável. E também ele, sobretudo, não se encontra absolutamente separado do sujeito: a consciência vive-o como parte de si própria, na sua presencialidade, ainda que se aperceba da sua alteridade, ou melhor, da sua ausência. Mas, mais precisamente, o futuro é o modo de ser da consciência ligado à sua conhecida característica de ser-em-falta, de ser-“desejante”, sempre projetado em busca dos possíveis. Assim, o sujeito tem uma permanente tendência para negar o insatisfatório determinismo do seu próprio ser, voltando-se cheio de esperança para o não-ser futuro (não necessário, mas possível).


Se o para-si se faz constitutivamente presença, o presente entra no mundo pelo homem. O homem é presente ao em-si, ao passo que o em-si não é presente ao homem; a presença pressupõe um tipo de ser que sai de si para ser junto a.... pressupõe o ser que traz o nada em-si. O em-si não pode ser presente como não pode ser passado: o em-si apenas é. Mas como entender a presença própria do para-si? Diz Sartre que “o para-si é originariamente presença ao ser”. Acontece que esse ser presente a... vem acompanhado de distância ou de separação: “a presença ao ser do para-si implica que o para-si é testemunho de si em presença do ser como não sendo o ser”


Uma objetivação do tempo tem, no entanto, lugar e é
levada a efeito pela reflexão. Na reflexão, de fato, o sujeito reduz a duração concreta de um ato a uma duração psíquica, baseada nas suas determinações. O objetivo, de um modo geral, é o de bloquear o fluxo da consciência (pré-reflexiva) para a sobrepor a uma análise “objetiva” e “científica”.


Explicando o tempo pela temporalidade nadificadora, Sartre leva às suas últimas conseqüências o próprio sentido da evolução do conceito de tempo, tal como se apresenta na Metafísica ocidental. Sabe-se que a Metafísica entende o tempo como objetivo, segundo a ordem do anterior-posterior; além disso, o fundamento do tempo está num plano intemporal e só se explica pela eternidade.


Em Kant, o tempo é tão-somente uma intuição pura da sensibilidade, confinando-se, portanto, ao subjetivo; a destruição da objetividade do tempo permanece, todavia, relativa no sentido de que, para Kant, o tempo continua suspenso em uma esfera intemporal.


A importância da tese de Sartre sobre a Temporalidade nutre-se da idéia de que toda redução do tempo a um plano intemporal não consegue mais captar a dimensão irredutível do tempo; se o tempo encontra seu fundamento no ser imóvel, ele é falsificado, já não é pensado em seu ser outro que não o imóvel.


Entre as conclusões gerais de quanto se disse está que o para-si se apresenta, mesmo perante o olhar da “sua” própria reflexão, como transcendência. De que modo se pode configurar a relação entre o em-si e o para-si se o segundo pólo transcende o primeiro (e, portanto, vice-versa)?


A primeira relação que surge entre o em-si e o para-si é de tipo cognitivo. Ao examinar tal relação, Sartre mostra-se uma vez mais decidido, em primeiro lugar, a rejeitar tanto a gnoseologia idealista como a gnoseologia materialista. Retoma a teoria husserliana da intencionalidade, trabalhando-a de modo bastante livre. Tanto o idealismo como o materialismo interpretaram mal a relação cognitiva, uma vez que absolutizaram ou cristalizaram o Eu que conhece ou o objeto conhecido.


Na realidade, o conhecimento não é uma atividade de um ou de outro pólo, nem (muito menos) uma relação. O conhecimento é um “modo de ser” do para-si, que se verifica sempre que um objeto esteja “presente” à consciência ou quando a consciência se faça “presente” ao objeto. O conhecimento deve ser entendido como “presença a...”. Tal presença não poderia ser atribuída ao em-si; o em-si não se faz presente a nada, porquanto a presença é privilégio da consciência humana.


O conhecimento se verifica na presença da consciência à coisa, invertendo-se, dessa maneira, a formulação vulgar do problema. Sartre retoma um tema já analisado anteriormente: o da intencionalidade da consciência.


O conhecimento, com efeito, não é uma realidade “positiva” que possa ser minuciosamente analisada. Pelo contrário, identifica-se com uma série de negações. Conhecer implica, antes de mais, o dar-se conta de que o objeto não é a consciência e que a consciência não é o objeto. Implica, pois, no ato de intuição do objeto, a negação do Eu como sujeito que conhece.


Não basta, entretanto, uma elucidação meramente gnosiológica desse tema: o importante está em alcançar a dimensão ontológica da intencionalidade, saber por que a consciência é necessariamente “consciência-(de)-alguma-coisa”. Realmente, uma consciência que não fosse consciência de algo seria consciência de nada. Se a intencionalidade se mostra necessária à consciência, torna-se indispensável que se esclareça, o fundamento de tal necessidade, ou seja, que se saiba qual é a estrutura essencial possibilitadora da presença. Ora, “a presença implica uma negação radical como presença, àquilo que não se é. É presente a mim o que não sou eu” : o elemento essencial reside precisamente nesse “não ser”. A relação se determina, pois, precipuamente, de um modo negativo; antes de ser atingida por qualquer atividade que lhe seja constituinte, a coisa é o que é presente à consciência como não sendo a consciência, e o fundamento de todo conhecimento, a relação original que o instaura, permanece negativo.


O conhecimento parece constituir-se essencialmente como atividade negadora.


As categorias fundamentais ou as primeiras determinações cognitivas se afiguram, direta ou indiretamente, como puros “nadas” ou, em todo o caso, como algo de inteiramente dependente daquela negação em ato que é a consciência. Assim, por exemplo, a quantidade constitui-se como uma “relação [...] puramente negativa de exterioridade”. O espaço é negação, “perpétua evanescência da totalidade em coleção, do contínuo ao descontínuo” Até a qualidade, a qual Sartre vê com uma anticientífica simpatia ao reivindicar para ela uma inerência constituinte em relação ao objeto e a sua irredutibilidade, até ela é definida de um modo implicitamente negativo com o ser do “isto”, quando é considerado fora de qualquer relação externa com o mundo ou com outros “istos”, ou ainda com “o ser todo inteiro que se manifesta nos limites do aqui-existe”.


Longe se ser uma interação entre sujeito e objeto “positivo”, o conhecimento surge como uma função exercida exclusivamente pelo sujeito, perante o qual a realidade resulta estática e passiva. O ato cognitivo tende ainda a “reificar” a realidade objetiva, a conferir-lhe (ou a nela evidenciar) as características de inércia e de opacidade próprias do em-si, e a considerá-la como “falta” e imperfeição.


Sartre designa o conhecimento como sendo a “pura solidão do conhecido”. Entende-se que o nosso autor possa descartar qualquer vestígio de kantismo ou idealismo no processo do conhecimento: se o para-si é pura presença, ele nada acrescenta ao ser, e também não cria nada, visto que o conhecimento surge da pura negatividade.


A análise da negatividade deve ser prolongada, e então se atinge o conceito de mundo.


Não pode ser aleatória a relação do para-si ao em-si, não se verifica indiferentemente com este ou aquele ser: a presença do para-si põe em relevo tal ser e não um outro; assim, essa presença faz com que haja um “isto” mais do que um “aquilo”: isto e aquilo se destacam sobre um fundo de totalidade.


A totalidade é presença, e enquanto presença só pode ser instaurada pelo para-si. Se a totalidade se apresenta como imbricamento ontológico de seres, tal imbricamento só acontece desde que se pressuponha a existência dos em-si singulares. “A presença ao mundo do para-si não se pode realizar senão por sua presença a uma ou mais coisas particulares, e, reciprocamente, sua presença a uma coisa particular só se pode realizar sobre o fundo de uma presença ao mundo”. Deste modo, a percepção se articula a partir desse fundo ontológico que é a presença ao mundo, e o mundo se desvela concretamente como fundo de cada percepção singular.


A totalidade permanece totalidade “destotalizada”, vale dizer, o ser mantém-se diante do para-si como tudo aquilo que o para-si não é. A negação original não surge apenas como negação diante disto ou daquilo – ela é negação radical: o para-si “sendo o todo da negação, é negação do todo”.


O mundo aparece justamente como aquilo que faz com que o para-si se anuncie a si próprio como totalidade, mas tão-somente na medida em que o para si deve ser a sua própria totalidade no modo de ser da destotalização.


O ponto essencial a ser esclarecido é que a relação originária entre o Eu e o Outro não é de tipo cognitivo. A existência do Outro não pode ser demonstrada e nem mesmo negada; não é uma probabilidade gnoseológica ou uma hipótese científica, mas antes uma afirmação, uma evidência.


Se o Outro é essencialmente presença (se bem que negativa), então o modo ou a função através da qual o sujeito entrará em relação com ele é o olhar. Toda a trama inicial das relações intersubjetivas será analisada por Sartre (segundo uma inspiração claramente fenomenológica que elimina ou põe à margem outras e mais importantes formas de contato) com base nas relações visuais entre o Eu e o Outro e nas conseqüências existenciais.


Aos olhos do sujeito, o Outro começa por surgir como mero “objeto”. Do mesmo modo como age perante as “coisas” mais inertes e opacas do em-si, a consciência distancia-se do Outro, reduzindo-os aos seus aspectos mais coisais, assim se sentindo transcendente (embora solitária) dominadora daquilo que tem diante de si.


A primeira crise nesta relação tem lugar quando a consciência se apercebe de que esta “coisa” tem um relacionamento próprio com as outras coisas propriamente ditas, manejando-as, movimentando-as, etc.


A pluralidade de consciências é um “escândalo” e o “conflito” é uma condição ontológica primária é insuperável. “O conflito é o significado original do ser-para-outros”, e a unidade com o Outro é radicalmente impossível. A relação se concebe na estrutura formal de reciprocidade, entendida como simetria, obliterando a dimensão de uma gênese sócio-histórica real. “Procuro escravizar o Outro, o Outro procura escravizar-me”. Apenas um dos lados do conflito é bem sucedido na escravização do outro e, ainda assim, não em virtude de alguma reciprocidade ontológica abstrata, mas porque, como um fato da “existência bruta”, ele obtém historicamente o domínio das condições de trabalho e isso destrói até mesmo a aparência da reciprocidade formal, efetivando a estrutura da dominação não como um imperativo ontológico, mas como um conjunto de relações sociais reais, historicamente persistente, e assim, pelo menos em princípio, também historicamente superável.


“Meu projeto de recuperar-me é fundamentalmente um projeto de absorver o Outro”, mas a estrutura formal de reciprocidade assegura que o projeto falhe e se reproduza perpetuamente como irrealizável, negando assim, a priori, toda a possibilidade de escapar do círculo dignificado ontologicamente.


(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)


Comentários