#DOSTOIÉVSKI E A MENIPÉIA EM CONTOS FILOSÓFICOS DE VOLTAIRE# - Manoel Ferreira Neto: TESE EM DOSTOIÉVSKI: "ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO"
Dostoïévski conheceu outra variedade de menipéia através dos Contos
filosóficos de Voltaire. Este tipo de menipéia foi muito próximo de alguns
aspectos da obra dostoïévskiana (Dostoïévski chegou inclusive a esboçar a idéia
de escrever um Cândido Russo).
Cândido confirmava ao pé da letra a afirmação segundo a qual “l´esprit
de Voltaire est um stylo”: efetivamente, é um modo de ver, interpretar e
representar o mundo e as coisas humanas, e a língua que usa com tanta agilidade
e elegância, só é o meio expressivo mais adequado ou – teria dito Voltaire –
mais natural: “numa sociedade [como aquela do século XVII) que não conhece nem
puritanismo nem religião, o humor a própria razão torna-se humor...”.
O romance de aventuras do século XIX é apenas um ramo da poderosa e
amplamente ramificada tradição do gênero, que remonta a um passado remoto, às
próprias fontes da literatura européia. Consideramos necessário estudar essa
tradição precisamente até as suas fontes.
Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais
estáveis, “perenes” da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os
elementos imorredouros da archaica. É verdade que nele essa arcaica só se
conserva graças à sua permanente renovação, vale dizer, graças à atualização. O
gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero
renasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em cada
obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do gênero. Por isto,
não é morta nem a archaica que se conserva no gênero; ela é eternamente viva,
isto é, é uma arcaica com capacidade de renovar-se. O gênero vive do presente
mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória
criativa no processo de desenvolvimento literário.
A ironia com a qual Voltaire revire em brilhante fantasmagoria o funesto
grand guignol da vida humana e do mundo é o contrário do cinismo, já que nasce
da indignação e da urgência de entender; e se Voltaire não quis conceder nada
ao sentimento fácil de compaixão, foi porque sabia que esta indignação devia
transformar-se em inteligência, em reflexão serena para poder ser profícua:
para suscitar piedade e terror, já bastam o sublime trágico e os romances
lacrimejantes.
Não nos esqueçamos de que, em Dostoïévski, os sonhos abrem espaço a
conteúdos meramente artísticos, ou revelam profunda insatisfação ao próprio
comportamento moral. Também nos sonhos a espiritualidade inconsciente encontra
saída. Não se pode negar que em muitos sonhos o núcleo emana do inconsciente
espiritual.
Muitas pessoas, acreditando piamente que se conhecem e persuadidas de
que não têm indulgência consigo mesmas, facilmente se acusam de orgulho, de
egoísmo e de outros defeitos; mas quando a descida ao seu inconsciente põe em
plena luz estes aspectos de sua natureza, reagem violentamente e se recusam a
aceitá-los. Isso mostra que é realmente imenso o abismo entre compreender
(atividade da alma) e ter esperança e fé (desejo da liberdade-redenção).
Observamos este fato em nós mesmos e podemos verificá-lo todos os dias nos
outros. Pelo inconsciente nossa alma nos fala e encontra como nos perscrutar e
esmiuçar; encontra expressões e símbolos de uma clareza impiedosa, dos quais o
consciente não pode fugir, mas que, raro, aceita imediatamente.
No início de uma análise psicológica, o conhecimento vai pouco além do
inconsciente pessoal; mas logo penetra no inconsciente coletivo e, por ele, se
abre a um conhecimento universal.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2018)
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