#AFORISMO 686/INTRODUÇÃO AO ESTILO ÁSNICO** - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO SATÍRICO
Homenagem póstuma a Friedrich Nietzsche quem me ensinara com mestria a
importância dos INSTINTOS.
“O seu conhecimento ainda não aprendeu a sorrir e a não ter inveja: a
onda da sua paixão ainda não se acalmou na beleza”(Nietzsche)
Assim relinchava Incitatus...
Triste, não? Pode ser que haja alguém quem não o julgue assim, sendo
complacente e misericordioso comigo; não adiantaria ninguém interferir,
interceder a favor por estar mais do que convencido e persuadido de que é
triste, mui triste. Triste é haver começado, iniciado a refletir sobre novas
experiências com “assim relinchava Incitatus” – quem iria acreditar, se alguém
pudesse perceber, intuir as reflexões, pensamentos, idéias? – e não poder
realizar-lhes a contento, de modo que a obra desejada fora feita, está aí,
tornou-se objeto de uso. Não poderia fazê-lo com falar ou dizer, falta-me a
língua, a expressão verbal, só me é dado relinchar os pensamentos. Isto é o que
chamo de tristeza eterna, imortal. Embora condenado à miséria eterna, a falta
de língua, arranco deste silêncio o que trago em mim. O silêncio se torna fluxo
de instintos comungados às razões todas. O silêncio é o tempo da palavra
verdadeira, aquela que retumba no íntimo e nos instintos e tudo o mais é desejo
e vontade de mais vida ainda.
Assim, como o viajante sabe que algo vela nele, conta as horas, e o
acordará, nós também sabemos que o instante decisivo nos encontra despertos,
que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito em flagrante delito, ou
seja, em via de fraquejar, recuar, de se render, se endurecer, de agravar, ou
de sucumbir a outra doença qualquer que em dias saudáveis tem contra si o
orgulho (pois continua verdadeiro o velho ditado: o espírito orgulhoso, o pavão
e o asno são os três animais mais orgulhosos da terra).
Por que o espírito orgulhoso não pode ser animal? É sob a sua efígie
dele que se trata dos interesses de por baixo das incompetências, inutilidades,
incapacidades, sentimentos de inferioridade e perseguição. É sob a sua efígie
que as nações se armam contra os autoritarismos de alguns.
Com o fantástico desenvolvimento do intelecto e da penetração espiritual
cresce a distância e, certamente, o espaço que me circunda. Meu mundo tornou-se
mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos
enigmas. Um dia os conceitos mais solenes, aqueles que provocaram maiores lutas
e maiores sofrimentos, os conceitos do instinto, Deus e do pecado, não
signifiquem, para nós, as criaturas de Deus, mais do que um brinquedo e um
esporte de criança significam para um velho.
Uma dor muito grande ter o que dizer e não poder fazê-lo em nível de palavras,
e ninguém poder saber o que penso, não há contacto entre os homens e os equus
asinus.
Houve um asno que nascera imortal, eterno – a imortalidade e eternidade
se fundamentam na tristeza de ser intelectual e não revelar a sabedoria, o
idioma faltou-lhe. Feliz e saltitante, estou por ser o primeiro da humanidade,
espero que outros nasçam nos séculos e milênios vindouros. A vida ser-lhes-á
menos difícil, não irão ter de conviver com as insatisfações, frustrações e
fracassos da raça, pois fora eu quem lhes proporcionara nova vida,
oportunidades. Muitos questionamentos que poderia ter eu durante a caminhada,
os fretes, respondi, embora necessitando de serem desenvolvidos ao longo da
vida deles, pois não tenho a mínima capacidade de dizer a verdade absoluta, e
se tivesse sentiria enfastiado com a coisa, não posso investigar, contemplar
por estar no fim a minha jornada no mundo.
Assim relinchava Incitatus...
Mas não tem revolta não, há as milhares e esplendorosas compensações –
uma delas por exemplo é que asno e homem algum vão entrar em contacto com as
idéias e pensamentos, adulterando-lhes em benefício próprio, fazendo certas
cositas serem esquecidas ao longo da história da raça, e só no futuro bem
distante alguém iria despertar para o fato de que seria necessário resgatar as
idéias por mim professadas, foram adulteradas pelos interesses e ideologias de
muitos séculos. Humano jamais poderia mergulhar tanto nelas, são idéias para
todos e para ninguém, não haveria modo de adulterá-las.
Quimeras, quimeras, quimeras... Nada pode ser deixado desde que revele
quem sou a partir da expressão verbal, claro, na teia de contradições e
contra-sensos. Tudo é simplesmente inútil. Sem as palavras, até mesmo a
engenhosidade e perspicácia do instinto por elaborá-las, como este instinto
funciona, como é o caminho que sigo para ir elaborando as idéias, nada é
possível. Desgasto-me por nada. Tenho disto consciência, é dizer o que me
perpassa os instintos.
Antes mesmo de haver nascido, estava escrito nas estrelas que a tristeza
eterna, imortal que me acompanharia por toda a existência neste bendito mundo –
bendito por haver sido escolhido por Deus, seria o habitat de suas criaturas;
quanto ao resto, tenho algumas dúvidas, sendo necessário in-vestigar com apreço
e carinho - seria devido a tornar-me intelectual, reflexões que ninguém na
humanidade havia se atinado com elas, os filósofos e cientistas sabiam que
havia coisas que só o tempo iria mostrar e revelar com transparência, no tempo
de cada um deles não era possível saber. Só ninguém esperava que o vazio seria
preenchido por asno intelectual, o grande Incitatus.
Há-de se relinchar, nestes termos, que acabo de atingir o topo do
Olimpo, olhando a cidade e os homens de cima. Embófia, poder, orgulho,
convencimento... Pode-se acreditar que omito alguns outros substantivos com
intenção efetiva de não iniciar a ver-me um deus, deus dos asnos. Não sou eu
que julgo, pois não? Não seria possível olhar de cima ou de baixo por habitar
numa região plana, ninguém me levaria de elevador para conhecer o estábulo de
cobertura reservado para mim, a grande experiência de olhar os homens de cima.
O instinto de conservação é que ensina os homens a serem volúveis,
ligeiros e falsos. O meu instinto de entrega, doação me ensinou a ser ousado,
cínico e insolente, e por isto tornei-me autêntico, verdadeiro com o que sou.
Ninguém pode duvidar que quem tem necessidade do culto da superfície não tenha
feito alguma vez uma incursão para debaixo dela.
Sinto necessidade de olhares que se dirigem a mim. Quisera dar e
repartir até que os sábios voltassem a gozar da estultícia e os pobres da riqueza.
Há quando fico imaginando tudo isso que vivi pelas estradas, coxias e
pastos, dentro de mim, o acúmulo de todas as situações e circunstâncias; que
seria de mim, se não me houvesse sido dados a inteligência, o dom da
intelectualidade?; creio que instintivamente em resposta ao acúmulo viveria
dando coices até na sombra, desde que os nossos reflexos não fossem imagens de
nós, algo como se relincho, a sombra coaxa a plenos pulmões. Difícil seria
olhar a sombra e vê-la coaxando, não apenas ouvindo, enquanto relincho. Por
mais diferentes sejam as características da natureza humana, se é que assim
possa expressar-me com categoria, nisto somos iguais: nenhum de nós aceitaria
este paradoxo dos infernos: enquanto o homem próprio ri a bandeiras soltas, a
sombra chora, esgoela-se de tanta angústia e desespero de estar só, separada do
homem, e não podendo atinar com tão difícil problema.
O que pensei neste tempo em que tudo isso me perpassava os instintos?
Nada pensei – tanto que fiquei tentando, digamos, em silêncio, tecer a meada de
assunto e outro, não tenho consciência de assim poder relinchar – Foram imagens
que se me revelaram aos instintos e tive dificuldades de as colher e
contemplar. Imagens perpassaram-me as entranhas, não sei o que podem ter
colhido e recolhido dos instintos inúmeros que me habitam. Tornaram-se idéias e
o que necessitava fazer está sendo feito nestes relinchos, a bem da verdade,
hein, são poucos para que possam ser compreendidos em tudo que tenho vontade e
desejo de revelar, e não posso. Não apresento mais a digníssima justificativa.
Imagino este colóquio com a sombra:
- Ah, coitada de mim!... Mereço lágrimas de toda a humanidade, lágrimas
ardentes e conscientes do que é isto a minha sombra que sou eu. Rio de você,
caríssima sombra, porque você está aí no chão, refletida pela luz em cima do
meu corpo, estou aqui, sentado no trono, sem luz alguma a refletir-me neste
espaço, eu, um ser só e solitário, longe de tudo e de todos, representando a
dor de toda a humanidade, como o deus grego, Zeus, o mais poderoso, quem usa
das sombras dos deuses menores para satisfazer os sonhos supérfluos, fétidos.
Aeiou.... Aeiou... Aeiou... Féretros, fétidos. Preciso de carinho, amor,
felicidade...
- Oh, pedaços de mim, por que vos entristecestes tão rápido, o que na
sua imagem, a sombra que sou eu, vos entristeceis tanto? Seria que não realizo
o seu sonho maior, o de harmonizar-se consigo mesmo, o de sentir que vós sois a
imagem da vida refletida realmente, alegrias e tristezas bem representadas
neste espelho que são você e a representação de mim? Se tristes estais vós
assim, por que não me abraçais novamente? Aconchega-me no vosso útero de
criação, no vosso útero à palavra, pois que o Filho de Deus ensinou a todos os
homens que a palavra é a salvação de toda a solidão, incompreensão do que
acontece e do que existe, sombras que se projetam a partir de meu único corpo.
Basta que vós quereis, desejais com todo ímpeto do coração e alma, se possível
unir a eles o espírito, este que purifica a vida. Não vos negarei a minha
própria sombra, embora vós não podeis ver esta minha sombra, sombra esta que
vos guardais, vos iluminais, vos santificais... Aliás, meu amigo, a vocação dos
asnos é ser justamente santos, como Jesus o dissera...
- Sombra, prestai bem atenção nestas minhas palavras, aliás, resposta às
suas!... Olho a pata. Com efeito, olhando-a, prestando-lhe atenção aos traços,
passos que foram dados na existência, registrados nela, observo e lhe digo,
sombra, que vos negarei serdes vós o sacrário de mim, pois que sou este
sacrário de minha vida, “eu “, de minha redenção e ressurreição. Digo-lhe ainda
mais: “Aqui, sombra, é o fim de tudo, onde começa o reflexo do mundo, o lugar
de repouso de todas as sombras sem sacrários que sonham os raios solares do
Éden, as felicidades que todos nós somos merecedores, somos vocacionados para a
Felicidade Eterna, o Reino de Deus...
- Incitatus, mesmo que vós não aceitais ser eu a vossa sombra, ser eu
quem de algum modo o identifica com o mundo e a vida, ainda assim serei eu como
a exemplo do palhaço que usa objeto no nariz, de preferência vermelho, para
mostrar hilaridade, serei eu quem diz as verdades por caminhos tortos, como se
é costume dizer sobre Deus que Ele resolve os problemas dos homens por caminhos
sinuosos, mas Ele é a Redenção, a Ressurreição, a Sombra que cobre todo
universo. Serei, Incitatus, mesmo que não aceitais, quem lhe dirá os caminhos
do campo!...
Viver com uma calma orgulhosa e impassível, sempre para além. Ter e não
ter, arbitrariamente, os seus afetos, o seu pró e contra, condescender com eles
por umas horas; montar sobre eles como em cavalos, freqüentemente como em
burros. Pois que se deve saber aproveitar a sua estupidez assim como a sua
fogosidade. Conservar os primeiros planos. Igualmente os óculos escuros, pois
há casos em que ninguém nos deve olhar nos olhos e muito menos ainda nas nossas
“razões”. E escolher, para companhia, aquele vício matreiro e sereno, a
cortesia. E ficar senhor das suas quatro virtudes: a coragem, perspicácia,
simpatia, solidão. A solidão é entre os humanos e os equus asinus uma virtude,
como tendência e impulso sublimes de asseio que adivinha como, no contato de
homem para homem “em sociedade”, tudo é inevitavelmente sujo.
A sabedoria para mim é o desejo de harmonia e coerência tanto do homem
como de mim em respeito à sombra, vontade desta comunhão haver sido realizada,
mas, em verdade, pouca importância tem, mas se a dôo aos homens, aí sim tem
importância divina, é para os outros, os outros através de mim possam descobrir
os desejos e vontades habitam-lhes a alma, vendo tudo se transformando a olhos
nus. A sagrada face são os outros.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2018)
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