CAPÍTULO XXVI RELAÇÃO ABSURDA ENTRE O HOMEM E O SAGRADO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@@


Sou uma mulher sagrada... Sou uma mulher sacra.

O sagrado refere-se, com justeza, ao mundo estético da sensibilidade insensata que a raça humana entende como alheio à razão, e por isso teme – morrer não causa tanto medo que o de tornar-se louco, o que significa perder o senso de todas as coisas, ser objeto de olhares escusos – ao mesmo tempo que é atraída para ele, como quem se vê magnetizado pela origem de sua própria criação.

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O sagrado é sempre exuberante e prolixo, em meio à confusão de todos os sinais, na entropia e no próprio caos; é a indistinção entre o bem e o mal, a confusão do justo e o injusto e a interpolação da verdade com a falsidade, do sincero com a hipocrisia.

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Após Édipo haver-se tornado cônscio da previsão de seu destino, o que fora previsto tornou-se real, este desembocou-se inteiramente na confusão dos códigos: sua esposa era a rainha, “mas também” a sua mãe; o rei era o inimigo a quem ele matara, “mas também” o seu pai, Édipo não era apenas filho, “mas também” o marido de sua mãe – a confusão dos códigos.

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Não é dado ao homem viver por longo tempo na ausência de códigos, de modo que para sua sobrevivência e seu desenvolvimento a humanidade evadiu-se da esfera do sagrado(origem primitiva), por meio do desenvolvimento e da aplicação da racionalidade, tanto no pensamento como nas instituições sociais.. Para o sagrado uma coisa é ele mesma e também outra e mais outra ainda. Para as crianças, as coisas podem ser uma e muitas outras ao mesmo tempo. Brincar de “colorir desenhos” ou “construir castelo com tampinhas de garrafa” é trocar a coisa por um signo, sem qualquer discernimento de nível da realidade. A criança sairá do sagrado à medida em que for seqüestrada pela racionalidade da maturidade. O que dizer do artista, tomando isto em consideração? Toda vez que o artista entra no mistério do sagrado arrisca dele jamais sair, como o louco, exilado nos vales obscuros e confusos do sagrado e do estético.

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A lenda bíblica de Jó é um exemplo dessa relação absurda entre o homem e o sagrado. Jó se diz um homem justo, enquanto seus filhos e sua mulher o abandonam, seu gado adoece, seus amigos o evitam. Jó, perdido, confuso, invoca a justiça de Javé, questionando os fatos que lhe acometeram de modo tão contundente, tão ríspido. Não se pode, não se deve tomar os deuses por seres razoáveis, encontram-se eles muito além das regras e normas racionais, das leis de recompensa pelos méritos – os deuses estão fora do cenário do razoável.

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No que concerne à narrativa do livro judeu, Javé responde a Jó: “Onde estavas tu quando Eu colocava as bases da terra?” Ao ressaltar o fato de que Jó não estava presente, aquando colocou a terra sobre seus pilares, nem aquando encheu o céu de estrelas, as águas de animais marinhos, Javé responde que aquelas indagações de Jó não eram de sua alçada, não estavam à altura de sua divindade. Isto é,  pela completa falta de proporção entre as questões que afligem os homens e a imensurável atividade empreendida por Javé, entende não haver respostas a se buscar na entropia do sagrado que saciem a sede do homem por sentido, significado e causalidade.

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Guardar a esperança de que os deuses respondam com atos de justiça e olvidar-se de que eles não habitam o plano da razão humana, mas o indiferenciado campo do sagrado.

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Se tagarelo desvairadamente e com demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher, sou a loucura e sou sagrada. Não vos esqueçais de antigo provérbio grego: “Muitas vezes, também o homem louco fala judiciosamente”. Jamais desejaria eu beber com um homem que se lembrasse de tudo.

RIO DE JANEIRO(RJ), 23 DE JANEIRO DE 2021, 08:53 a.m.

 

 

 

 


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