CAPÍTULO XIV – QUADRÚPEDE SOBRECARREGADO DE MISÉRIAS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@


Quem tece intempestivos comentários no concernente à gentalha, há-de fazê-lo em relação aos sábios, porque, caso contrário, estará pecando contra à amplitude de visão das coisas; é-se mister apresentar os dois lados da moeda, a fim de que se possa avaliar as questões reveladas, possa-se analisá-las, estabelecer parâmetros, conhecer-lhes as contradicções e dialécticas. Sou quem isto defende a unhas e dentes afiados. Assim, chega-se o instante de falar dos sábios. A escolha por mim feita é a dos sábios gramáticos, ou seja, os pedantes. Já realizaram tantas mudanças cretinas na Língua, merecendo ode às façanhas.

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Essa estirpe de homens seria decerto a de uma miserabilidade sem precedentes, a mais agoniada, a mais malquista pelos deuses, se não tivesse eu o especial cuidado de mitigar os incômodos de sui generis profissão com gêneros exclusivos de loucura. Estão eles sujeitos às cinco pragas e flagelos, mais ainda a “trocentos” outros. Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, academias, melhor explicitando, nas suas cadeias ou sítios de intempéries e tormentos, no meio de rebanhos de meninos, envelhecem de fadigas, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com a catinga e a imundície. Graças a mim, não podendo sê-lo de outra forma, os pedantes se ajuízam como os primeiros homens do mundo. Não podeis vós imaginar o prazer que experimentam fazendo tremelicar os seus súditos com ar ameaçador e a voz altissonante. Armados de chicote, vara de marmelo, de correia, só faltando o soco inglês, não fazem outra coisa senão decidir o castigo, sendo ao mesmo tempo partes, juízes e carrascos – chamo-lhes de Cristiano Santarém, não era gramático, sim diretor de Grupo Escolar, este sim surrava os alunos que transgrediam as leis da boa conduta. Todos andavam “pianinhos” com ele.

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Parecem-se mesmo com o asno da fábula, o qual, por ter às costas pele de tigre, julgava-se tão valoroso quanto este. A sua sujeira afigura-se-lhes asseio; o fedor serve-lhes de Paco Rabani, e, acreditando-se reis em meio à miserabilíssima escravidão, não desejariam trocar pelas de Dionísio.

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O que, sobretudo, contribui para torná-los felicíssimos é a idéia que fazem da própria erudição. Apesar de que não façam senão meter regras e exceções  insignificantes na cabeça das pobrezitas crianças confiadas aos seus cuidados. Nem mesmo sei, juro pelos deuses, com que estratagemas conseguem vangloriar as ignaras mães e os imbecilóides pais dos alunos, ao ponto de serem com efeito considerados como os ilustres homens que eles próprios se inculcam. Acrescento a isto outro gênero de prazer por eles experimentado: quando tem a sorte de encontrar um pedaço de lápide antiga com um epitáfio em Latim Vulgar apresentando uma regra e exceção inéditas que tudo pode mudar nas línguas advindas deste. Oh! como é sui generis vê-los trocar, entre si, elogio por elogio, admiração por admiração, lisonja por lisonja! Se, porventura, um homem da arte erra em alguma sintaxe e outro mais penetrante do que ele o percebe, que cenas, discussões, que injúrias, que invectivas! Quando os gramáticos da época souberam da afirmação do escritor Machado de Assis, tendo lido um livro de gramática: “Não entendi nada”, subiram nas tamancas de tanto ódio, quem o escritor achava que era? Dissera-me ele ao pé do ouvido: “Só comigo vão conhecer outras regras e exceções da erudição da Língua Portuguesa”, o que me fizera chorar de tanto rir.

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Conheci um clérigo, tendo sido reitor de seminário, Celso de Carvalho, que dominava treze línguas, a filosofia, a sociologia, a literatura, a poesia. Seríeis vós capazes de adivinhar com que esse sábio se preocupou nos últimos tempos de sua existência? Com a sintaxe da Língua Portuguesa, os gramáticos juramentados cometeram sérios despautérios. Pôs seu cérebro em tormento contínuo, mas deixara insofismáveis correções na sintaxe – jamais publicadas, estando guardadas no cofre do seminário, nunca serão aceitas pelos gramáticos hodiernos, acabam com a prepotência destes. Não é mesmo uma miséria tomar uma conjunção por advérbio? Um tal equívoco mereceria guerra cruenta.

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Que vos parece esse ridículo pedante? Devemos chamá-lo de louco ou delirante? Chamai-o do que quiserdes, desde que concordeis que é graças a mim que esse quadrúpede sobrecarregado de misérias anda sempre tão satisfeito, tão orgulhoso de si e de sua sorte, a qual ele não trocaria pela dos mais ricos e poderosos reis da terra.

RIO DE JANEIRO(RJ), 17 DE JANEIRO DE 2021, 11:41 a.m.       

 


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