CAPÍTULO XIX – COTOVELADA NA BOCA DO ESTÔMAGO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@



Náusea! Manifesta-se nos auspícios da completa insatisfação com as coisas do mundo, da existência, abrindo um vazio imenso, os pés perdem a terra sob si, sonhos e esperanças se perdem, há-de refazer, refundir tudo, e só a coragem de enfrentar o efêmero é capaz de artificiar caminhos. Cogitar certas coisas causa náuseas, não o fazer é, não apenas consenti-las, aceitá-las.
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Causava-me náuseas tratar dos poderosos, que raça mais pusilânime, no entretanto, não posso furtar-me, sou obrigado a colocar-lhes no lugar onde merecem estar, isto é imprescindível.
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Cuidemos, então, dos grandes da corte. Não há escravidão mais pusilânime, viperina, repulsiva, desprezível do que aquela a que se submete essa intragável laia de homens, que, não obstante, costuma ganhar para si, de fio a pavio, alto a baixo, o resto dos mortais. São modestíssimos, coloque-se modéstia nisto, num único ponto: satisfeitos em possuírem as pedras preciosas, diamantes, ouro, púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem com facilidade e serenidade aos outros da sabedoria e da virtude.
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A maior felicidade, além de todas as coisas, consiste em ter a honra de trocarem dedos de prosa com o rei, chamá-lo de Senhor e Mestre absoluto, de fazer-lhe breve e estudado cumprimento, de poder prodigalizar-lhe os faustosos títulos de Vossa Majestade, de Vossa Alteza Real. O que dizer sobre os digníssimos cortesãos? Toda a engenhosidade deles consiste em trajarem-se com propriedade e magnificência, em andarem sempre bem perfumados, perfumes cujo odor não desaparece ao longo do dia, e, sobretudo, em saberem adular, lamber as botas com delicadeza e finesse. O fidalgo, por ter merecido do príncipe uma cotovelada na boca do estômago, ao tentar entrar na multidão, fica exultante de alegria e acredita haver menor distância entre ele e o soberano. O cortesão pavoneia-se com a corrente de ouro que lhe pende do pescoço por ser mais pesada que a dos outros e servir não só para mostrar sua robustez de carregador.
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Se esses felizes semi-deuses tivessem na cachola meio grama apenas de cérebro, que haveria no mundo de mais triste e miserável que a sua condição? Não se deve esquecer nunca, mesmo a troco de ferro e fogo, de que os vícios e os delitos dos súditos são infinitamente menos contagiosos que os do senhor, e repetir qual matraca o mesmo alarido, papagaio a mesma fala, que o príncipe se acha numa elevação, razão por que, quando dá maus exemplos, a sua postura é uma peste, uma pandemia que se comunicam rápido, fazendo enormes estragos.
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Mas, no que concerne aos súditos, quando assuntos externos geram distúrbios, polêmicas, escarcéus, o príncipe só tem a temer que conspirem contra ele, problema do qual pode se proteger, amparar-se, resguardar-se ao evitar ser odiado e desprezado e mantendo o povicho satisfeito com ele, coisa que é sine qua non. Aquele que conspira contra o príncipe sempre espera agradar com a remoção dele, contudo, aquando o conspirador só pode avançar ofendendo o povo, ele não terá coragem de seguir adiante, assume que usa calças curtas, pois as dificuldades que os conspiradores tem de enfrentar são infinitas.
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Deve-se sempre preservar na memória – essa a conclusão ímpia a que chego eu – que, além das insídias, ódios, temores, de todos os males a que o príncipe se acha exposto a cada momento por parte dos súditos, deverá ele apresentar-se perante o Tribunal do Rei dos reis, no qual serão pedidas contas exatas, específicas de todos os seus atos menores, sendo ele julgado com rigor proporcional à extensão de seu domínio.
RIO DE JANEIRO(RJ), 20 DE JANEIRO DE 2021, 06:30 a.m.

 

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