CAPÍTULO XVII ARGUMENTO DO QUE NÃO APARECE GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@


Por vezes, surpreende-me com ardência no peito a dispersão, alheamento; contudo,  num instante, voltam-me as cositas,  não explicando isto por não o saber. Entrego-me às cogitações.

@@@

Esqueceu-me cogitar acerca dos “Mistérios.” Não fosse lembrar-me, seria algo imperdoável;  antes agora, porque o ser não me é dado conhecê-lo, legada a dádiva de patenteá-lo.  Não pensais  vós estar eu a instituir mistérios, enigmas. O que justificaria? Nada. Desfrutemos, senhores,  dos  Mistérios.

@@@

Observemo-los,  enfatizo e sublinho,  a seu talante interpretar os ocultos mistérios da salvação – se desde os tempos imemoriais os homens careciam deles, hoje a carência é exultante  -, e por que motivo o mundo foi criado e ordenado.  Por  que vias passou à posteridade a nódoa do pecado original? Simplesmente uma questão da Encarnação e da Eucarístia? Tais mistérios estão mais que batidos,  conceituados como lugar-comum,  dignos apenas de teólogos noviços,  aqueles  mais que  alucinados,  vislumbrados.

@@@

Os paradoxos estóicos, diante da moral esquisita e contraditória, são nada, não possuem qualquer senso plausível de consideração.  Sustentam a ferro e fogo que consertar o sapato de um miserável em dia de domingo é um pecado maior que estrangular mil pessoas.  Preferível, aconselhável  seria o termo mais adequado,  deixar o mundo desembocar no nada de  onde  adviera a proferir a menor mentira. Além disso, contribuem à grande para sutilizar essas sutilíssimas sutilezas todos os diversos subterfúgios,  estratagemas  dos escolásticos,  assim é que seria menos laborioso sair de um labirinto do que desembaraçar-se do embrulho dos realistas, tomistas -, ai de “eu’, esqueceram-me os monistas,  albertistas,  scotistas, senti medo de faltar-me  a respiração,  citando as principais seitas da escola.  Em todas essas facções,  são tão  inúmeras  as erudições e dificuldades,  que,  se os apóstolos  baixassem à terra e fossem impingidos a discutir com os teólogos modernos  a questão das  sublimes matérias,  sou de opinião, seja insolente ou não,  que teriam necessidade de  um novo  espírito in totum diverso  daquele  que , em seu tempo,  dava-lhes a possibilidade de falar.  São  Paulo tinha fé,  mas sobre  ela não  dera definição  bastante magistral  aquando  dissera:  “A    é a substância da  coisa  esperada  e o argumento  do que não  aparece.”   Ardia nele o fogo da caridade,  mas  não se revelou bom lógico ao omitir a definição e divisão dessa virtude na primeira Epístola aos  Coríntios.

@@@  

Os apóstolos consagravam impiamente com devoção e piedade o Sacramento da Eucaristia: se tivesse, no entretanto,  de explicar como Deus  pode passar  de um  lugar  para  outro  por  meio  da  consagração;  como  se    a  transubstanciação;  como  um  mesmo  corpo  pode  encontrar-se  ao  mesmo  tempo  em  vários  lugares;  que  diferença  existe  entre o corpo  de Jesus  Cristo  no  céu  com a Cruz  e na  Eucaristia;  em que  momento se verifica  a  transubstanciação,  uma vez que  a fórmula  sacramental,  sendo  composta  de  sílabas  e  palavras ,  só pode ser  pronunciada  sucessivamente, -  creio eu que,  oh se creio,  se esses  primeiros  teólogos  do Cristianismo  houvesse  de dirimir  tais  dificuldades ,  teriam  necessidade  da perspicácia  dos scotistas  que   são  verdadeiros  Mercúrios  na  arte  de  argumentar  e  definir.

@@@

Os  apóstolos  batizavam  continuamente ,  mas,  apesar  disso,  jamais,  em tempo  algum,   ensinaram  a  causa  formal ,  material,  eficiente  e  formal  do  batismo,  nem  mencionaram  o  caráter  delével  e  indelével  do  mesmo.

@@@

Esses  fundadores  da  Religião  Cristã  adoravam,  veneravam  a  Deus,  mas   a  adoração  apoiava-se  neste  princípio  fundamental  do  Evangelho:  Deus  é  um  espírito  puro  e  é  mister  adorá-lo  em  espírito  e  verdade.

@@@

Concordo  com  Shakespeare,  aquando  diz  haverem  mais  mistérios  entre  o  céu  e  a  terra  que  a própria razão  desconhece  -  seria  de  perguntar  ipsis  verbis: a razão  conhece  alguma  coisa?  Dizem  alguns  que   a razão  inversa  revela  a verdade,  o  verso  verdadeiro,  mas  fundada  em  quê?  Nada  neste  mundo  velho  sem  porteiras  é  capaz  de  desvendar  os  mistérios  de  Deus.  Os teólogos  acreditam  que  a    seja  capaz.  Isto lá  é  com  eles  e não  comigo:  não  acredito  em  Deus.

RIO  DE  JANEIRO(RJ), 19  DE  JANEIRO  DE 2021,  20: 42  p.m.     

 


Comentários