CAPÍTULO VI - O EVANGELHO E A CONVERSA PARA BOI DORMIR GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@@



Pergunto-vos, oh humanos, munida de toda empáfia, quem dentre vós havereis visto homens mais atoleimados, “manesados”, melhor dizendo, mais felizes do que os fiéis, aqueles que se ajuízam entrarem no reino paradisíaco, declamando todos os santos dias versículos, sinceramente não é de meu conhecimento quais sejam, dos salmos sagrados, dos cânticos dos cânticos? Contudo, devo confessar com o riste da língua sinto-me relutante em dizê-lo, mas não posso furtar-me a fazê-lo em nome de quem sou, de minha consciência, haver sido um demônio que fizera tão mágica descoberta: demônio apastelado que tinha mais vaidade que dom.
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Até eu que sou a loucura, a mestra da sabedoria, não posso deixar de sentir pejo, vergonha de tantas extravagâncias.
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Sendo que viajo neste instante-já pelos mares teológicos, é surpreendente verificar que cada homem se gaba de ter no céu um protetor, um anjo da guarda. Ora, as graças que os homens rogam aos santos não serão orientados, insinuados por mim? Dizei-me vós, honrada e dignamente, entre tantos votos cristãos de consideração e agradecimento, reconhecimento que enxergais cobrindo in totum as paredes e abóbodas das igrejas, templos, sejais sinceros, já vistes pendurado um único de reconhecimento por cura miraculosa realizada por mim? Óbvio que não: os homens não possuem o hábito de importunar os santos para obterem uma graça deste quilate. Enquanto se vêem, suspensos dos altares, em votos tangentes a toda sorte de graças recebidas, nenhum se encontra que se refira a um caso curado de loucura; alguém que tenha sido condenado à forca como prêmio às suas boas ações e atitudes, graças a algum santo dos larápios, voltasse a surrupiar a carteira cheia de dinheiro! Ora bem, senhores, não há quem tenha dado graças a Deus, à Virgem Maria, ou qualquer santo por ter-se restabelecido da loucura. Possuo tantos atrativos para os homens, sou eu quem se estima como um bem irrevogável.
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Conforme sei, os clérigos não são míopes, cegos. Mas é que, em lugar de purgar o campo do Magnânimo, empreendem-se eles com toda honra em semeá-lo e cultivá-lo de ervas daninhas, com toda devoção, certos de que costumam intensificar-lhes as ganhuças. Imaginai-vos que surgisse odioso moralista que, em tom pontifício fizesse esta patética exortação: “Não basta ter devoção por Santo Antônio, mister viver segundo a Lei divina para encontrar um cônjuge perfeito.. Não basta colocar uma moeda aos pés do santo; sine qua non odiar o mal, mudar de vida, descodificar os comportamentos, praticando o Evangelho.” Cá entre nós, esse moralista não andaria mal professando deste modo, contudo, ao mesmo tempo, tiraria os homens de um estado de felicidade, para lançá-los na dor e na miséria, fazê-los viver à míngua.
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Presenciei no sonho de um jovem estudante de teologia: encontrava-se ele à beira de um abismo, olhando para trás, vislumbrara uma porta aberta. Dirigiu-se a ela. Transpondo-a, sentira as mãos cheias de sementes. Andando, jogava-as no chão. Nascia uma espécie de pé de alface. Quis provar-lhe o sabor. Surgiu do nada um homem dizendo-lhe que não comesse. Desobedeceu, comeu, ainda dizendo ao homem: “Estais equivocado. É delicioso”, o que lhe respondera o homem: “Hoje sim, no tempo vereis o amargo dele”. O estudante de teologia fora expulso do seminário para mostrar o reitor que isto de cuspir logo após comer a hóstia, cospe-se o sangue de Cristo, é simplesmente conversa para boi dormir.
RIO DE JANEIRO(RJ), 13 DE JANEIRO DE 2021, 07:07 a.m.

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