CAPÍTULO XXIII – A RELIGIÃO CRISTÃ COADUNA-SE COM A LOUCURA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@@


Não é de meu conhecimento que as portas do céu estejam fechadas para os loucos, o que merecem sem queixumes é penarem no fogo do inferno. Creio não haver Juízo Final para estes espíritos por mim iluminados; assim que desembarcam no céu, São Pedro já diz: “Podeis entrar!”, com aquele sorriso misericordioso e compassivo. Que pecados podem cometer no mundo? Nenhum – não é verdade?

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Não seria lícito silenciar-me no tangente ao sumo crédito de que desfruto e gozo no céu, pois aí se obtém o perdão com o meu nome, ao passo que não é favorável  à sabedoria – irra!, um louco sábio! Pecou um homem com conhecimento de causa? Peço-vos a finesse e o obséquio de não pensardes que procure alegar suas luzes, pois pode alegar-se feliz aquando é dado cobrir-se com o sudário da loucura.

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Lembrai-vos de Adão, no Livro XII dos Números, talvez esteja eu equivocada, querendo rogar o perdão para si e para sua mulher: “Rogo-vos, Senhor, que não nos condeneis por esse pecado que totalmente cometemos.” Saul também age da mesma forma, para se desculpar com Davi: “Logo se vê que agi como um louco!” O próprio Davi procurando evitar a vingança divina, exclamou: “Senhor! Suplico-vos que canceleis a iniqüidade da parte de vosso servo, pois agimos como loucos.” Bem vedes que não esperava ser favorecido, se não aduzisse como desculpa a sua tolice e ignorância.

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De todas as provas, a que corta a cabeça do touro é a prece do Salvador na cruz pelos seus crucificadores: “Perdoai-lhes, Pai, - disse ele, e o Deus moribundo não aduziu em favor deles outra desculpa senão a da loucura, acrescentando: “... porque não sabem o que fazem.” Disse São Paulo a Timóteo: “Deus usou de misericórdia para comigo por haver sido a minha incredulidade efeito de minha ignorância.” Perguntais vós, pergunta efetivamente lícita: “Que significa essa ignorância?” Não significará mais estultice que malícia? “Qual o sentido dessas palavras: “Deus usou para comigo de misericórdia, porque, etc.?” Não seria a de demonstrar com clareza que, sem o crédito e a recomendação da Loucura, São Paulo não teria recebido qualquer misericórdia?

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O místico salmista mostrou-se do meu ponto de vista, tendo eu olvidado colocar no seu lugar: “Dignai-vos, Senhor, esquecer os delitos de minha juventude e das minhas ignorâncias.” Este divino cantor escusa-se por dois títulos: em primeva instância, pela juventude, idade de que sou a leal e inseparável companheira; a segunda, pela ignorância, e notai vós que expressa a sua ignorância no plural, o que demonstra a força imensa da sua loucura.

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Tantas citações, hein, Senhores, não é isto aquilo de gastar lábia infinita para puxar a farinha para o meu saco, nada disso ser verdade, mas a lábia persuade, ademais utilizo-me da força da oratória? As citações estão escritas na Bíblia. A “intenção fundamental” é a de vos fazerdes ver, em linguagem e estilo sucinto, que a religião cristã coaduna-se com perfeição com a loucura e não possui a menor relação com a sabedoria. Como essa proposição pareça um verdadeiro paradoxo – não vos esqueçais de que o paradoxo é o responsável pela felicidade e estética -, não serei tão irrazoável que intencione me acrediteis baseados apenas em minha boa fé.

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Impossível encontrar loucos mais extravagantes que os que se abandonam inteiramente à ardência da fé cristã – lembrando-vos de uma lenda australiana: “A serpente surda era a única, outrora, a possuir o fogo, que guardava escondido no interior de seu corpo.” Desprezam as injúrias, deixam-se enganar, não vêem diferença entre amigos e inimigos, sentem horror pela volúpia: as abstinências, a vigília,  as lágrimas, os padecimentos, os ultrajes, eis as suas deliciosíssimas delícias, odeiam a vida, desejam a morte, ao ponto de parecerem privados do senso comum, não passando de corpos sem alma e sem sentimento? Que nome lhes daremos, se o de loucos não lhes fica bom?

RIO DE JANEIRO(RJ), 21 DE JANEIRO DE 2021, 20:29 p.m.             

 

 


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