CAPÍTULO XXI – “MALANDRO É MALANDRO E MANÉ É MANÉ” GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: NOVELA @@@


Não deixar pedra sobre pedra, revelando a amplitude de visão da língua sobre as pedras, eis a tarefa árdua, exige fôlego, disposição, pois a língua não tem minuto sequer de sossego, de descanso, exausta-se, mas lhe é impossível parar; requer sobretudo inteligência e engenhosidade para tratar de cada pedra com justeza, mostrar a sua face real, tornando-a angular de posturas medíocres, viperinas, e este angular imergir nas intempestivas considerações dos valores escusos, destilar-lhes o ácido crítico com toda a pujança. Esta intenção tem acompanhado-me desde sempre, no entretanto encontro-me exausta de tanto linguar a minha visão das coisas, não sou capaz de dar-me minuto sequer de trégua, simplesmente desvairar-me à solta.

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Sigo em frente, custe o que custar, contudo deixo-me no mundo, deixo os meus traços evidentes e lúcidos no que concerne ao que avalio das coisas e das contingências, o que observo das futilidades e misérias humanas, hipocrisias, falsidades, farsas, aparências, conseqüências da razão que assolou o mundo, mergulhando-o no perfeito caos, os homens na mais incrédula alienação, nonsense.

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Considero eu que a preservação da vida é o culminante ponto de partida para a concepção da malandragem, para a gestação das tramóias, trambiques. Quero e pretendo ressaltar e sublinhar com os trinques da língua que, além desse fundamento de ulterior importância, a apologia da malandragem aparecera no desenrolar histórico cultural. A exaltação,  o arroubo do tipo esperto – aquele que sempre se dá bem e leva vantagem em tudo, enriquecendo os seus valores, possui o privilégio do dom e talento das trafulhas, e trambiques, do passar a perna tanto nos manés, bocós para enfatizar com esmero o termo, quanto nos mais perspicazes, aqueles são susceptíveis, estes inda podem intuir e perceber o que está acontecendo, mas não conseguem se livrar,  pois que o acume do malandragem não deixa passar batida a sua intenção, seria fenômeno secundário em relação à origem fundadora da malandragem. O tipo esperto é venerado, admirado, laureado como um vitorioso, vencedor na árdua labuta pela vida. Visto como exemplo a ser seguido, referencial para o dever ser, para a conquista do há-de ser, transformando-se numa espécie de  paradigma ético paralelo. Assim, quem teria a pachorra de dizer o contrário, quem contestaria a malandragem na sua raiz, esta converte-se em referência para si própria, a sua face refletida no espelho não deixa dúvida de que é real, uma espécie de categoria ético-metafísica tornando-se, transforma-se em valor moral e passa a ser norteada por si própria. A malandragem se transforma em caráter inerente e distintivo de um tipo humano que desfruta sempre de suas facécias. Observando a cara da moeda, temos a espécie de malandros, a coroa da mesma temos a dos manés. O sambista Bezerra da Silva canta com primor: “Malandro é malandro e Mané é Mané” De acordo com este modo de raciocinar, a filosofia ética da malandragem é uma forma de cogitar essencialista. O senso comum concebe o “tipo malandro” como sendo o espírito de Nascença. Quem pode dizer com franqueza que Macunaíma, de Mário de Andrade, não nasceu malandro, ele é o protótipo da malandragem. O carioca da gema nasce malandro, mas o interessante está que ele diz o mesmo dos mineiros, o mineiro é malandro, não no que diz respeito a trabalhar, mineiro é trabalhador, mas ele possui no sangue os diques de passar a perna nos indivíduos em silêncio.

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Ah, vamos torcer o rabicho da porca do lado contrário, ao inverso, da direita para a esquerda e perguntemos com toda a insolência vossa e minha de que somos capazes, temos pedigree para isto: qual o valor dos valores da ética da malandragem? Conserva e engrandece a vida? Dá-lhe condições essenciais para o prolongamento dos sonhos e esperanças da dignidade e honra?

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Acredito que a malandragem gratuita, a malandragem pela malandragem está conduzindo os homens e o mundo ao caminho oposto à conservação e engrandecimento da vida, está arrasando com os valores e virtudes, a liberdade e a consciência, levando-lhes ao fundo do abismo mais abissal.  

RIO DE JANEIRO(RJ), 20 DE JANEIRO DE 2021, 18:29 p.m.   

 


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