#SUDÁRIO DE MISTÉRIOS E ENIGMAS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA




Solidão não é problema,
Aliás,
Solene e suntuosa,
Liberdade
Sentir e pensar o destino;
Solidão é liberdade...
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... Porque venho com freqüência mergulhando no silêncio, conversando com alguém, dizendo de minhas emoções e sentimentos e sensações mais ardentes, a eternidade se faz com a fé e a esperança, sobretudo com as chamas da liberdade e do nada, enquanto cofio o bigode, amarelado pela nicotina, aparento muito mais velho do que sou, já me deram oitenta anos, quando tenho cinquenta e nove, há instantes cinéreos, alguns poucos dias antes de ir residir no Rio de Janeiro, viver um grande amor, muito tempo já se passou, o que resta ainda que sejam longos anos será muito pouco, sentado num banco de pracinha pública, não me refiro aos muitos cabelos brancos por isto não ser do início da velhice, da senilidade, mas o que mais importa se a calvície e os cabelos brancos foram-me legados devido a tantas inquietudes e indecisões.
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Ergo os olhos para mim com uma sabedoria compadecida. Olhar apaixonado que projecta um desejo e um amor onde potências anímicas formam matizes de uma ternura? Posso sentir obscuramente uma presença, uma “pessoa”. Quando distingue os meus passos, alvoroça-se, murmura palavras com a voz rouca, em tom baixo. Aproximando-me, ergue-se, levanta a cabeça, acaba por se deitar com os braços em cima do travesseiro, a cabeça enfiada neles, a respiração comedida.
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Ampliando as emoções, olhos umedecidos tornam-se difusos, adquirindo nítidos sintomas de opúsculo, findadas as preces e os tributos, as reverências e diplomacias, matracas e rituais, odes e homenagens, puxa-saquismo e tudo termina em pizza, renuncio às cátedras, aos cargos, às funções, e parto à procura de novos horizontes.
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Pretendo evitar constrangimentos maiores, preferindo ir desacompanhado à estação rodoviária, porém todos apelos se tornam inúteis, querem acompanhar-me até a imagem do ônibus desaparecer no horizonte. A única nota destoante deste episódio é ver quem não gosta de mim exibir semblante abatido, está se libertando de um estorvo, os instantes cinéreos seriam até o fim, demonstrando aparência de saudades, quando é que estarei de volta, quando venho dizer do silêncio. Todavia, respeito os desígnios, dons e talentos, faço jus de incorporar-lhes, o silêncio se mostra inteligível e uma sabedoria; e também ao fogo, labaredas, chamas a que me tenho referido sobremaneira é que este contacto com o fogo traz-me o devaneio em sua dimensão mais pura, e assim incorporo-lhe, alfim acende-me desejos...
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Não tenho coragem de entender a morte ser o vazio, se antes não me sentir excitado a completar, a dizer que o vazio é a calma eterna. Tanta vez, inúmeras, em verdade, desde toda a eternidade, ouço alguém se referir a alguém íntimo, saudoso, que descanse em paz. Quiçá dissesse: "Descanse em paz todos com quem houve alguma relação, trocamos algumas palavrinhas... compartilhamos pitis e mazelas", mas que sentido isso teria? Quaisquer. Descansar com júbilo e esplendor é só possível com a calma eterna. São palavras que arranco de mim, enfio a mão no interior, encontravam-se em seus cantos. A distância das palavras e dos sentimentos. Compreendo.
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Vivo horas cheias de uma imperfeição vazia e tão perfeitas, por isso mesmo tão diagonais à certeza retangular da vida, tão obtusas às dúvidas triangulares das contingências, tão oblíquas as moléstias psíquicas. São horas caídas nesse mundo de outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias.
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Se venho pensando com ardência, pensamentos florando desejos intensos, a vontade de abusar, transgredir, a consciência do poder nada clara seria. Não seria o caso de um fogo sem chamas nem cinzas, que levará o nada ao próprio coração do Ser, onde habita o Sublime?
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Se pudesse ser sarcástico a ponto de me imaginar rindo, riria, sem dúvida, de me imaginar vivo, de me conceituar "ser humano". Vivo horas impossíveis , cheias de ser eu... e isto porque sei, com toda a carne de minha carne, que não sou uma realidade.
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Que horas, ó companheiro de minha solidão, que horas de desassossego feliz, horas de cinza de espírito, horas de nada da alma, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa.
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Nada vale a pena, ó meu amor, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena, que as vozes simuladas em quimeras merecem o olhar aberto, os ouvidos atentos às coisas que existem. Não sabes tu que tenho aprendido sobremodo sobre quando queremos povoar o imenso vazio, o terrível caos, com figuras e adornar artisticamente o espaço inóspito, surgem no nosso interior o fogo, as chamas, as labaredas, fogo de poesias, e o Amor não é sempre inspiração da Poesia.
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Definir solidão
Para quê?
Vive-se-lhe, sente-se-lhe.
Quem nasce por mim?
Quem vive por mim?
Quem morre por mim?
Sou quem!...
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Por medo de enlaçar uma figura fugidia, acompanho o travo da ausência. Quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é a infinitesimal aparição, é a plenitude, a pura necessidade de ser. Um só é perfeição, só se realiza até aos tímidos abanos de mãos mútuos, aparentando ares decepcionados com a distância, registram constrangimentos. Prouvesse as fontes ressoassem, acredito deixar-me-iam mergulhar em suas águas, quiçá em suas profundezas patenteasse o espanto. Num evidente contraste com o ideal da limpidez, da translucidez, da trans-parência das formas desenhadas em nitidez e equilíbrio sobre o fundo da luminosa profundidade onde se desenvolvem os mais puros sentimentos, emoções, inauditos, mistérios, enigmas. Sonho a profundidade que contém um devir e o que é sublime na vivência, experiência do devir, os tesouros sem fim. Oh, ousadia simples de um mortal que se atreve a prosseguir viagem, jornada nada e vazio adentros, a liberdade, o conhecimento objetivo, a consciência. Varro dos olhos o profundo sono e ponho-me de pé, o ônibus começa a partir...
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Que a férula se me não sustente nas mãos frágeis e singelas!... Acredito, agora inteirado destas aflições pessoais, tenha aquilatado a dimensão do dilema. O certo é: o inconsciente não consegue libertar de suas teias sinuosas, libertar-se da insana idéia fixa de desejar a sua libertação, de se revelar em sua pureza, sem estratégias, sem atalhos, supunha, caso incorresse na ousadia de dizer alguma coisa muito íntima, verdadeira, seria obrigado a traduzi-lo ou mesmo elaborar as devidas digníssimas senhoras dúvidas, as devidas correções, relevações. Sendo assim, espero, tenha compreendido a razão de atitudes intempestivas.
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Deveras arrependido, abjurando a estupidez cometida, repriso os apelos de escusas: "Desculpe-me, se cometi algum despautério que lhe tenha insatisfeito. Perdoe-me as mazelas e pitis... Não acredito venhamos a nos encontrar outra vez na vida. Nada é eterno, não é verdade?" Se é que se possa dizer tais palavras sejam de todo verdadeiras, se o toque sutil nelas não as tenha tornado mais luminosas às raízes da espiritualidade, além do cinismo nelas existentes, tenha aquilatado a dimensão do dilema. Homens se eternizam numa rotatividade de vida perfeita, nascem, crescem, renascem, e há reprises dos apelos de escusas, diante de uma ação ininteligível, tendo-se de se explicar, de se esclarecer, às vezes, tendo de reconhecerem não haver argumentos, o dilema continua em direção a todos os ventos rápidos e suaves, suficientes apenas para suprirem as necessidades básicas da natureza.
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O sol brilha todos os dias. As chuvas acontecem esparsas. Todas as árvores produzem frutos e folhas, as flores do ipê amarelo tapetando as pedras existentes entre os canteiros, o capim que nasce entre as pedras, poeira...

#riodejaneiro#, 02 de setembro de 2019#

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