DÁDIVAS DE ESPÍRITOS LIVRES QUE MORAM NA ILHA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA



Lá fora, a noite tão longínqua!
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Sonho e de por trás da minha atenção sonha comigo alguém... E eu, que pela manhã da distância, da lonjura que vai o dia, as suas situações complicadas, difíceis, riscos de morte a todo instante, violência desmesurada, quase a esqueço, é ao lembrar-me dela que sinto em mim desejos os mais excêntricos, os mais inusitados de num recanto afastado da sabedoria o ritmo íntimo das vozes que ouço a dizer-me próximo à alma do auto silêncio; sinto em mim o espanto que as horas de desassossego, para além da linha externa das ilhas são hábitos de estilo, costume de formas, e para além dessa não há nada...
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Os olhos não são escuros, mas claros, e é apenas a sombra das longas pestanas que os escurece. Penso poderia estar alhures. De mim já se afastaram a última esperança, os derradeiros últimos sonhos, fantasias, ilusões. Acaso a natureza ou nobre alma agora um bálsamo não tem, que me traga bonança? Por vezes, não sinto limites no corpo. Con-templo ora o sorriso cínico e irônico, revelando rebeldia e meditação acerca de o cristianismo con-templar a morte e não a vida, dizendo-me da melancolia e nostalgia, sobretudo desta por ser a lembrança do calor do ninho, a lembrança do amor acalentado pelo "calidum innatum". Ponho em nível de suas sensações as extremidades algo longínquas das mais nobres emoções. Imagino estar algures.
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Hesito, agora, em continuar a idéia que se me revelou na mente. Não há muito que, encostando-me ao parapeito da janela, após a estiada da chuva, olhando à distância a neblina, e agora, tudo se me afigura um sonho, um devaneio dos mais insolentes e frágeis. O coração bate descompassado, não estou nem um pouco consciente da emoção que se me revelou a ponto de o coração bater descompassado, para isto, para o fazer bater descompassadamente, há-de ser algo emocionante, inusitado. Em princípio, ouço com um sorriso calmo e paciente, que raras vezes me abandona: "Olha que nem a morte é absoluta, se pensarmos e investigarmos as dimensões das coisas, o modo e estilo da expressão"; mas, pouco a pouco, uma expressão de espanto e, em seguida, de medo transparecem e se me fixa no olhar. O sorriso não desaparece de todo; mas, por momentos, parece vacilar.
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Noutro dia, andando pelas ruas de cidade já pisada certa vez, nada sentira de especial, mas senti desta vez o que para mim era aquilo de andar por entre os homens, e de imediato a este sentimento, entrava numa papelaria para adquirir um caderno e caneta, sou exigente com o objeto de meu uso assíduo, a caneta que me peculiar, não adianta a esposa dizer disso, uma chatice, mui bem atendido pelo vendedor, perguntara à mocinha do caixa se naquela papelaria tinha de dar a nota pelo atendimento, rira, dissera eu "coloque aí nota dez para aquele rapaz... excelente", e algo mui peculiar cambiocosava as pré-fundas da alma, era preciso colocar suave calor obscuro, inscrito em todas as filosofias do ser. Andava e o calor daquela cidade niteroizava-me os devaneios, pensava na serpente surda ser a última, outrora, a possuir o fogo, que guardava escondido no interior de seu corpo, niteroizava-me, niteroizava-me, entrando e saindo de estabelecimentos comerciais... a esposa fazia as suas compras peculiares, codimentos e outras cositas mais, o filho centrava-se nos seus perfumes...., o caderno e a caneta foram adquiridos, tudo de bom tamanho.
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Na neblina da montanha, chovera por quase três dias seguidos, pela manhã de hoje estava toda encoberta, já vislumbro e vejo as musas passarem dançando, depois desta visão, descansando quieto no equilíbrio da alma matinal de por baixo de alguma árvore, encostado ao seu tronco, dessas copas e ramagens me sejam lançadas coisas novas, inusitadas, excêntricas e claras, dádivas de espíritos livres que moram no mar, nas ilhas, na montanha, no bosque e na solidão... - a luz brinca e ri na superfície das coisas, mas só o calor penetra.
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Tudo aquilo, das coisas, que pode andar, caminhar, não deve já, uma vez, ter percorrido esta vereda da ilha? Tudo aquilo das coisas, que pode suceder, acontecer, não deve já, uma vez, ter acontecido, passado, trans-corrido, de-corrido na Baía de Guanabara?
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E se tudo já existiu? Lá, onde o olhar não chega, o invisível, onde a mão não entra, o calor se insinua, é dádiva do espírito livre.


#riodejaneiro#, 01 de setembro de 2019#

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