NO REINO DE ALÉM-TÚMULO MEMÓRIAS PÓSTUMAS FOTO: GRAÇA FONTIS Manoel Ferreira Neto: MINI-ENSAIO @@@



(...) não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço
Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
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O enredo é sempre excelente começo para leitura de uma obra. Brás Cubas conta a sua história trivial de menino mimado de uma família abastada e conservadora com fumos de aristocracia – um Cubas! O caráter estragado desde a infância e a adolescência, os estudos de Direito feitos à matroca em Coimbra, as viagens de recreio pela velha e antiquíssima Europa, as aventuras eróticas precoces, uma paixão adulterina tecida de exaltações, tédios e saciedade, a sede de nomeada, que vai do projeto malogrado de inventar um emplasto anti-hipocondríaco à conquista de uma cadeira de deputado, enfim a solidão da velhice... uma trajetória movimentada mas banal enquanto típica de um certo segmento da burguesia no lapso da história do Brasil que cobre o primeiro e parte do segundo reinado.
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O enredo põe, como lei de movimento e alternância entre agitação e melancolia, sofreguidão e inapetência, pólos sem peripécia, indiferentes à finalidade da ação concreta: fica o indivíduo dispensado de sua função normativa, de portador do sentido da vida histórica. O romance não busca fixar a contradição, e muito menos a transformação, mas o progressivo desgaste no entusiasmo com que um parasita abocanha a sua parte nas vantagens da iniquidade social, cujo limite não está à vista.
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A moldura narrativa de Brás Cubas é resolutamente fantástica, isto é “inverossímil”, a começar pelo fato de o romance ser apresentado como relato feito por um defunto. A fusão de humorismo filosófico e fantástico nos permite atinar com o verdadeiro gênero do romance; com efeito, Brás Cubas é um representante moderno do gênero cômico-fantástico.
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Segundo Alfredo Bosi, o estilo de memorialista poderia ser interpretado como um procedimento retórico escolhido para conferir verossimilhança ao relato, supondo-se que o narrador, ao assumir-se como “sujeito do enunciado”, seja a testemunha mais idônea para contar a sua própria história. Em princípio, o eu fala só do que viu e do que sabe ou lhe parece e, nesse sentido, a sua percepção seria mais realista que a do narrador onisciente que afeta conhecer tudo o que se passa fora e dentro das personagens.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
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O narrador hesita entre dois modos de abrir as suas memórias, se pelo princípio, se pelo fim, disjunção formulada na mesma frase uma segunda vez, em forma paralela (se pelo nascimento, se pela morte), só que agora em termos de despropósito, realçado pela repetição. Se algum tempo Brás vacilou, é que agora não vacila mais; e a dúvida quanto ao “primeiro lugar” acarreta outra, quanto ao segundo. À hesitação da primeira frase segue-se na subseqüente: a opção se faz contra o “uso vulgar” e a favor de outro “método”, sendo comandada por “considerações” (também duas), o que acentua a pretensão ilustrada do narrador. A primeira destas “considerações” retoma o disparate, despautério, da frase inicial, para amplificá-lo numa adversativa conceituosa (“não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”, duplicada por sua vez na antítese entre a “campa” e o “berço”. Sob pena de quebrar o paralelismo, a segunda consideração devia ela também comportar figuras de linguagem e pensamento, e sobretudo manifestar andamento binário. Mas não: sem retórica e singelamente ela anuncia a vontade de agradar.
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Na construção de Brás Cubas, porém, a conquista de certo grau de verossimilhança é bifocal, pois mira dois horizontes diferentes. De um lado, fala o narrador que atesta, a cada lance, a sua presença física aos acontecimentos em que esteve envolvido, e cuja interpretação é confiada ao seu olhar sem a presunção da certeza universal suposta no historiador em terceira pessoa. De outro lado, Machado engendrou a ficção do defunto autor, um expediente aparentemente irrealista escolhido para facultar a exibição – até o limite do descaramento – dos sentimentos todos de um ego que a condição post-mortem permitiria desnudar.
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Junto ao verossímil da testemunha ocular haveria um lance de inverossimilhança? Na verdade, um falso inverossímil, porque se faz autoanálise joco-séria. É a verdade do humor que, sob as aparências da morte, é vida pensada. As conseqüências desse duplo jogo de presença e distanciamento do eu são tangíveis a cada passo e acabaram definindo a dicção singular das Memórias póstumas de Brás Cubas.
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O que marca a singularidade das Memórias póstumas, o seu salto qualitativo, é o modo pelo qual a presença do narrador junto aos fatos dobra-se em autoconsciência.
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A análise psicológica e moral é favorecida pela distância que medeia entre o testemunho direto e o gesto reflexivo potenciado pelo expediente do defunto autor.
RIO DE JANEIRO(RJ), 08 DE ABRIL DE 2021, 20:41 p.m.

 

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