MEMÓRIAS DE UM RATO PARA TROÇAS REMOTAS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA @@@@


Culinária é arte, das mais complexas, vale ressaltar, exige bastante criatividade na feitura dos pratos, o mais difícil é agradar a todos os gostos e paladares. Há gostos para tudo, se não gostos, com efeito são diplomacias para todos os pratos, entradas esclusivíssimas, comidas divinas. Come-se até por diplomacia, mas, digamos sinceramente, há aqueles que viram o estômago, “chamar o Juca” é daqui para ali.

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Tudo depende da criatividade do cozinheiro, muita sensibilidade, intuição, percepção, na boca, no paladar, no senso de prazer e felicidade de todos com o “gostinho delicioso” da comida. Não sou cozinheiro, mas algumas pessoas que freqüentavam a minha residência apreciavam bastante o bife que lhes preparei, preparo a cada momento, diziam ser um primor, o tempero no ponto, nem mais nem menos, a quantidade de gordura, o tempo de fritura. São as qualidades do meu cozinheiro.

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Exclusivíssimos os seus pratos, tudo perfeito, então quando está com o espírito de cinismos, ironia, sarcasmo, mostrando os seus verdadeiros sentimentos diante das situações e circunstâncias, brinca com todo prazer com os temperos, quem realmente degusta um bom prato não se contêm de um sentimento de “dever cumprido”.

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Bem... Necessário dizer que minha esposa tem ciúmes de um mosquito que se aproxima de mim, assenta-me, a sua vontade é de se jogar em cima. Não admite empregada dentro de casa, de forma alguma, o seu casamento é intocável, nenhuma mulher. Contratara ela um cozinheiro. Trabalha em nossa residência há uns quinze anos. Talvez esclarecer esta questão não tenha sido a atitude adequada, poderia haver sido descartada. Ninguém é obrigado a assimilar este parágrafo, deixe-o passar serena e tranquilamente.   

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Há dias o meu cozinheiro, estando sentado à poltrona da cozinha, fumando, esperando a pizza de catupiri assar no fogão, vira um rato grande, gordo, uma barriga daquelas – fosse um homem, teria de desabotoar a camisa até no peito, a fim de poder respirar normalmente -, saindo de debaixo da geladeira, correndo para debaixo do fogão. Nada esperou, pôs-se a capturar o bicho, o que não foi difícil. Matou, abriu. Arranjou um prato inusitado, costelinha de rato à banana.

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Chamou-me no escritório para degustar a sua nova criatividade na culinária, o que o censurei asperamente, desde quando se come rato, e que sandice era aquela de banana frita ao redor da costelinha, por acaso havia ficado doido, maluco, louco varrido. Sorria cheio de piedade. E disse-me, com um tom que jamais me há de esquecer: - Você fala mal deste prato, porque não conhece a contribuição política na culinária.

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Não acudi para qualquer ironia, cinismo, sarcasmo, estava “esfolando o bichinho”. Houve quando percebi logo um tom de “segura peão”, a pimenta hoje está bastante caprichada, com os seus pratos ridículos e esquisitos, escalafobéticos mesmo. Mas sempre enquanto degustávamos, a mulher e eu, contávamos o que o havia inspirado, se houvesse quem pudesse saber das críticas a alguém, sinceramente não daria mais a cara nas ruas, exilava-se dentro de casa. Felizmente, a pessoa não ficava sabendo, nada dizíamos a ninguém.

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Espantado, perguntei o que era isto de “contribuição política na culinária”. Explicou-me com todas as letras os últimos acontecimentos políticos, como a banana foi parar na emissora de rádio, tempestade daquelas, pela primeira vez em nossa comunidade a enxurrada levou carros, o político descascava os pepinos, destilava os venenos, numa entrevista das mais polêmicas, quem pôde ouvir caiu o queixo; por causa desta entrevista, o locutor fora mandado embora, puxou mais do que devia a língua do entrevistado – correra ao seu aposento, trazendo-me um “pedacito” de jornal com uma matéria intitulada Banana à moda de Machado de Assis, que um cronista fizera questão de escrever acerca deste fato, o que não pude conter, caindo na gargalhada -, como o político se viu envolvido numa teia de aranha inextrincável com um discurso na tribuna envolvendo o rato. Não ficou nem a beleza do discurso, apareceram os inconvenientes, a palavra “rato” fora censurada na Ata por determinação da autoridade superior daquela egrégia casa.

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Após a reunião dos parlamentares, o político fora sentar-se numa banco no hall de entrada, onde se achava sentado  um digno velho. Era calvo, com quatro ou cinco fios de cabelo no topo da cabeça, desdentado, e mastigando em vão. Tinha as peles do pescoço babas, as mãos ossudas; os ossos do joelho rasgavam as calças, pelas mangas fora saíam dois palitos, à laia de pulsos.

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Observara sim, explicou-me o cozinheiro que, nalguns momentos, ele fixava os olhos neste senhor no meio dos presentes naquela sessão, mostrava-se duvidoso, quem era ele. Disse-lhe o velho, que cansado da vida pública, recolhera-se à vida privada; queria morrer obscuro e tranqüilo, satisfazendo as vaidades da esposa amada, comprando-lhe as roupas mais caras das lojas, uma perfeita “bonequinha.”  As agitações parlamentares não eram mais para ele. Outrora, ainda idealista, sonhador, fazia grandes discursos, estupidificava a opinião pública, não tinha papas na língua, agora isto não era mais para ele. Levasse consigo umas palavras: a imortalidade, eternidade se constrói e institui com atitudes dignas de respeito e consideração, aquele seu caminho iria dar em nada, ainda pensasse bastante com estar sentado numa cadeira indevida, para ser imortal, preservar o orgulho de uma família, isto era ridículo.

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O político ouvia sem nada poder pronunciar, como aquele homem sabia tanto de si, quem era ele. Era um turista em nossa comunidade, estava retornando para sua casa, passara aqui para conhecer, ficara sabendo da reunião, queria ver a quantas iam as idéias políticas da nossa comunidade, a personalidade e caráter dos políticos. O velho se despedira, o acompanhante o tomou pelo braço e foram embora. O político permaneceu no banco do hall da câmara distraído, disperso. Não esperava por aquilo. Toda aquela empáfia, orgulho, poder dissolveram-se de imediato. Levantou-se, apanhou de sua pasta, indo embora.

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Devido a esta matéria, alguns acreditaram que o político iria tomar as suas providências, ignorante como é, seria capaz de espancar o cronista, Deus não quisesse, poderia dar-lhe um tiro. Por três dias, houve tensão na comunidade. O cronista andava normalmente pelas ruas, tomava a sua cerveja no bar, passeava, ia para a redação. Nada houve. Esperaram então que o político pedisse “direito de resposta”. Neste sentido, quando há este pedido, o cronista receberia em mão uma cópia da res-posta para que ele pudesse também responder, ambas publicadas em paralelo. “Conforme a resposta do político, o cronista vai entrar em méritos os mais escondidos a sete chaves, de modo sarcástico, crítico, irônico, o cronista vai lavar a alma do político”. Nada aconteceu. Ninguém entendeu porque nada aconteceu, o político não é daqueles que levam desaforo para casa.

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 Alguns chegaram à conclusão de que o político pensara duas vezes, antes que muita gente fosse envolvida no escândalo. A verdade fora dita, qualquer resposta seria puramente justificativa, o renome seria destronado vez por todas. O cronista continua andando pelas ruas da cidade, escrevendo suas matérias, descascando os pepinos, denunciando as esquisitices e estranhices, pitis, orgulhos, sua especialidade é cortar os brios.

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Na noite daquele discurso na câmara, contou-me o cozinheiro, que tivera um sonho – aliás, estava pensando nele, enquanto esperava a pizza assar, fumando, quando o rato surgiu de imediato, correndo para debaixo do fogão. Sonhara que viu descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, a nova Jerusalém, como uma esposa ornada para o esposo. Ao mesmo tempo, ouviu do trono uma grande voz que dizia: “Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens”. Fora naquele instante em que pensava nesta fala, o rato entrou debaixo do fogão. 

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Por falar em discurso, na câmara, o orador refere-se a documentos que traz, e, se lhe não convém lê-los, declara com esta simplicidade: - Não os leio, para não fatigar a câmara, mas incluí-los-ei no meu discurso. No discurso feito, o orador não pensou ser inconveniente dizer a palavra rato: “Espero que as pessoas não saiam correndo daqui como ratos”. A boa regra é que o discurso de um orador pertence-lhe; que ele pode fazer dele o que melhor lhe apetecer, o que quiser, trocá-lo, ampliá-lo ou amenizá-lo. Lá pode meter o que quiser, documento, cem documentos, cartas particulares, cartões-postais de aniversário, de amigos e íntimos, o Apocalipse, ou as belezas arquitetônicas da Grécia. Se a constituição garante a propriedade das minhas calças, que estão fora de mim, como não há de garantir a propriedade do meu pensamento, a minha liberdade de expressão? Não é que seja mau ter um lugar na câmara. Tomara eu lá estar. Não posso; não entram ali caixeiros-viajantes. Poetas entram, com a condição de deixar a poesia. Votar ou poetar.

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Vota-se em prosa, qualquer que seja, prosa simples, ruim prosa, prosa filosófica-teológica, boa prosa, bela prosa, magnífica prosa, e até sem prosa nenhuma. O político não trocou, ampliou ou amenizou, achou por bem rasgar os verbos, soltar as frangas, sem qualquer pejo ou senso ético e moral. 

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Talvez houvesse sido melhor disparar um desaforo deslavado do que usar essa palavra tão negativa, depreciativa. Um parlamentar de espingarda na mão, há alguns que têm soco-inglês na pasta, ninguém ainda o concebe nem admite. Tome o meu conselho, leitor, caso você seja também político: “Dispare uns documentos, lidos de fio a pavio, mas guarde a palavra “rato” para outras ocasiões mais convenientes; guarde a espingarda para caçar no mato, ou atirar à-toa, no fundo do sítio, da fazenda, da chácara; não carregue soco-inglês na pasta, é proibido por lei. Assim, você será mui considerado por todos, um político de fibra e brios”.  

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Explicava-me ipsis litteris, sério, circunspecto, e eu não pude conter-me, ria a bandeiras soltas, gargalhava a cada palavra, pois sabia bem o que havia por trás de cada idéia e pensamento seu, enquanto contava-me, explicava, entrava nos méritos de modo não é mais preciso dizer, mas com aquele ar de “desta vez, eu depeno você até na última pena, deixo-lhe pelado.” Meu Deus, como pode ser tão cínico o meu cozinheiro. Tem tiradas, às vezes, de arrepiar a alma, o espírito com as suas frases de efeito e tudo mais. No ponto. 

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Não estava sabendo destes episódios, quase não paro em casa, sou caixeiro-viajante. Fora deste episódio que ninguém haverá de esquecer em nossa comunidade que ele tirou a idéia do prato. Não sou pessoa que negligencie, negue, recuse a verdade das coisas - em termos de contar a verdade das coisas, o meu cozinheiro é realmente sincero e honesto –, quando as vejo bem ajustadas. Com efeito, o prato de meu cozinheiro estava mesmo bem ajustado à patetice do político, não poderia ele ser mais criativo.

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Não na superfície, assim, mais uma atitude esquisita de um cozinheiro sem juízo algum, um paspalhão, que, nos surtos de raiva, ódio, asco, nojo de uma situação, faz pratos malucos, e todos batem palmas. Mas quem pudesse ter estado em minha residência diria que o cinismo é mais profundo, necessário conhecer antes as “pré-fundas”. Então, o seu sonho, perguntei-lhe se acaso já tinha lido a Bíblia, res-pondendo que ainda não tinha lido a Bíblia, apenas passara os olhos nalgumas passagens. Se já havia lido o Apocalipse. Não, ali ele não tocaria os olhos de modo algum, tinha medo. Não era possível.

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Não vos consterne o fato de interromper a carreira do meu cozinheiro, vós não comeis estes pratos, são privilégios dos humanos, isto é, a crítica ao político era ferina, mostrada na feitura de prato tão delicioso, esta não poderia ficar apenas em nossa residência, é preciso que fosse publicada. Há limites para todas as coisas, não se pode também deixar as águas rolarem à vontade.

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Sentamo-nos à mesa, comemos saltitantes e risonhos a cada dentada na carne do rato, na banana. Estava delicioso; vá cozinhar bem assim lá nas curvas do sertão ou à beira do córrego na rua Soares dos Santos. Enquanto comia, pensava num título bastante apimentado para uma crônica, conversaria com algum editor no sentido de publicar, pagaria o quanto fosse, mas não podia de jeito algum deixar de contribuir com a culinária literária, um artigo que seria lido por toda a comunidade, artigo que chegaria à posteridade com a frescura da própria cor do orador, quando pronunciara a palavra “rato”, vermelho como as chamas do inferno, como o fizera o meu cozinheiro no prato. Memórias de um rato para troças remotas, era muito comprido, não alcançaria os meus projetos.

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Passamos a tarde inteira, meu cozinheiro e eu, conversando, trocando idéias sobre a matéria que tinha em mente escrever. Chegamos a anotar numa folha de papel ofício uns vinte títulos. Escolhemos este Memórias de um Rato para Troças Remotas, apesar de grande, por estar bem ajustado às circunstâncias e situações, às mensagens filosóficas e políticas a todos aqueles que pleiteiam um assento bem confortável nalguma cadeira da câmara ou da prefeitura, livre para DUNGAR à vontade das próprias caguinchices do caráter e personalidade.

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Assim escrito, obviamente que ele dera a sua imensa contribuição, revisando o que escrevia, dando idéias, contribuindo mais e mais com o mistério daquele seu prato especial, deixasse o ouvinte pangaré viajando nas nuvens, buscando instintivar a imagem de  um prato assim, costelinha de rato à banana, que gosto teria, agora quando é a costelinha de porco, vós podeis imaginar, já ouvistes os seus proprietários dizendo serem deliciosas, mas deste eles nunca disseram.

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E, reparando bem, nesta altura do artigo escrito, tendo levado já quarenta minutos, está aqui o remédio a um dos males que afligem o regime parlamentar: o abuso da palavra, do poder. Não é fácil, mas é possível.

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Sou assim; não gosto de ver abusos da palavra, do poder, censuras injustas e prefiro os métodos científicos.

RIO DE JANEIRO(RJ), 12 DE ABRIL DE 2021, 08:01 a.m.

     

 

 


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