CADÁVER DA LITERATURA MODERNA E CONTEMPORÂNEA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: POEMA SATÍRICO @@@


O cadáver sobre a mesa,

Tristeza e lágrimas,

Clima denso, pesado,

Esse fúnebre cardápio

Recheado de mistério,

Ornamentado de enigmas,

Requintado de segredos,

Silêncios,

Congelado em pergunta,

Rezas e velas,

Sussurros ao pé do ouvido,

Olhares perdidos no paletó de madeira,

No cadáver inerte,

Suspiros profundos.

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Compulsória serenidade

Ímpar figura na sala

O cadáver sobre a mesa

Foi de todos boa amiga,

Tolerante, compreensiva,

Humana, prestativa,

Solidária, compassiva,

Justa,

Mãe exemplar, esposa,

Amantíssima fiel,

Boa pagadora, religiosa,

Excelente contadora de causos,

Egrégia declamadora de poemas,

Mestra das dimensões Moral e Ética,

Lugar garantido no Olimpo

mas por hora é cadáver

em postura circunspecta, introspectiva,

frias mãos entrelaçadas

lábios cerrados, pálidos,

olhos fechados,

vestido azul,

rigor do traje completo

talvez use calcinha cinza de renda,

Soutien branco de bolinhas pretas.

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É como um violoncelo

afinado para a festa

nos amplos salões da terra.

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Em volta o tempo trabalha

A fisionomia das almas

Dos comensais taciturnos

Que à força de algumas lágrimas,

Apertos de mãos, palavras,

Tapinhas mudos nas costas,

Se conforma com a perda:

“a coitada descansou”,

“pois é, parou de sofrer”,

“tinha toda a eternidade para viver”,

"foi o melhor para ela, estava muito doente,

“pior é a gente que fica”

"estará sempre na memória de todos",

“pra morrer basta estar vivo”,

"a vida é tão curta, tão passageira."

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Alguns instantes depois

Das palavras clericais, encomendando a alma,

Dos passos lentos na rua seguindo o esquife

Dos panos quentes dos pêsames

À soleira da tumba,

Do pano cobrindo a peça retirado

Resta o tédio do cadáver

Ao término dessa comédia

Moderna, contemporânea...

#RIO DE JANEIRO, 21 DE ABRIL DE 2020, 09;15 a.m.@

 


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