#BRUMAS DE PRATA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: SINOPSE DE PEÇA DE TEATRO


ANÁLISE: 16 DE JUNHO DE 1989


I ATO


O sentimento de ser feliz vem surgindo tímido, discreto, resguardando-se a todo instante de uma simples ameaça à sua inteireza. Deveria sentir-me angustiado, mas a angústia significa ora apenas uma idéia destilada e desenxabida. Anos a fio, num processo de ir e vir, buscando entender a estrutura das emoções, terminaram por dizer a mim mesmo ser uma fuga de elaborar a autenticidade, burilar o bem-estar, delinear o amor e afeição.
Censurei-me em todos os níveis - as dimensões puras e nítidas nem são percebidas a olhos nus por estarem unicamente servindo de justificativas e fugas aos medos e resistências. Não abandono e nem negligencio as emoções: sinto-as a partir de um outro ângulo das atitudes e autenticidades.
Um brilho todo especial sinto nos meus olhos. Um vento surge ininterrupto, processando-se. A atitude de um outro em mim. A volúpia que dela emana esgota-se e renova-se a todo instante. Sei, no instante de agora, nem um pouco estou em condições de ir ao fundo de meus sentimentos, pois a mim afigura-se uma estratégia e subterfúgio sutil de não assumir quem sou, mas sei posso fazê-lo, mostrando-me. Meu ato, sem dúvida, necessita estar harmonizado com os meus desejos. Crio novos sentidos para os sentimentos, desejo abarcar o mais fundo em mim. As próprias delícias fazem-me sentir poderia dormir ao contacto do sopro mais fresco.
Demônios ociosos das sepulturas. Nestes longos e quase intermináveis anos, pensando estar a enterrar as arbitrariedades, construindo um homem, estive por todos os níveis buscando enterrar o homem, aflorando as arbitrariedades inteiras e plenas. Nefasta escuridão do homem no mundo. Os desejos nunca estiveram de acordo com os meus atos. Buscava, por vezes, uma explicação plausível e sincera de desejar ser o mais autêntico e ilegal possível, e a farsa era da autenticidade e legalidade. Não me é sabido imprimir justificativa, nem registrar explicações. Contudo, criando margem a contradicções de toda ordem, ambiguidades de toda natureza, sinto-me exigir de mim um comportamento, uma atitude. Bem fácil desejar a inautenticidade com a intenção única de justificar e explanar as gratuidades: não há o dever de ser autêntico.
Peregrino em direção às ruínas dos templos: lá encontro a beleza,que é o encontro com o sentido de mim. Acaso posso mesmo dizer com convicção ser a beleza, pois ela passou pelas perquirições, indagações, visão de forma, conteúdo, estilo - em suma, foi racionalizada e intelectualizada? Acaso posso mesmo dizer ser o sentido de mim, pois crio fantasias a fim de envelar as censuras? Cumpre conscientizar-me da própria tristeza e fazer virtude de toda manifestação do espírito. Coloco ordens frente a mim, com a intenção de vivê-las inteiramente, mas sei serem apenas uma obra que vislumbro e estudo, a fim de perceber-lhe o fundo. Fossem estas ordens vividas com sinceridade, permitindo-me cada vez mais ir ao fundo de mim. Jamais sou sincero comigo. Todas as emoções vividas, pensadas, entendidas, aconteciam e fluíam sempre nos labirintos da censura. Compreendi, enfim, as dores manifestas, as angústias mais contundentes serem as censuras mais ferozes e agressivas. E hoje sinto em mim um desejo enorme de desvencilhar-me delas, viver lúcido e consciente a afetividade e amor mais puros. Contudo, nem sei ser verdade este desejo, pois possuo o engenho e a arte de transferir a dor íntima para a dor da superfície, e neste instante necessito de anestesias.
Faz um longo tempo evito dizer: "Possuo um super-ego mais que aguçado: é feroz." Digo a mim ir dificultar aos leitores essa linguagem analítica. Dizia a mim o meu superego haver sido formado aos seis meses de útero materno, aquando comecei a sentir os primeiros indícios da rejeição. É verdade. Sinto. Não queria em absoluto acreditar e assumir, pois que no mundo busquei viver todas as inautenticidades para não mostrar rejeitava a mim mesmo. E mais: a fim de não assumir frente a mim haver sido rejeitado. Dói imenso. Faço um enorme esforço e digo.
Não basta ser sensível para permitir a autenticidade. Como teria amado seguir-me os passos e saber para onde estava indo!... Como teria gostado de abordar-me, mas me não permitia fazê-lo, a fim de me não ferir o orgulho, a vaidade!... Causar-me-ia maior desamparo com as necessidades de superação, entendimento, compreensão. Ultrapasso a linearidade com a simples intenção de, a cada instante, o coração sem vínculo algum, indistintamente, através de todas as coisas, ser o viver do bem-estar, da paz. Providas de significação e significado, estas palavras tecem a mim com luxo e requinte. A superfície da beleza envela o sentido, o vivido, e mesmo que hajam o engenho e arte de encontrar nela o que há de mais real e verdadeiro, permanece inda opaco e destilado. Não digo haja a beleza real e verdadeira, mas ela nasce sempre de atitudes coerentes e sinceras. Expressei estas palavras, mas não nasceram de atitudes e sim de gestos. Não são belas, nem constituem beleza. Vou terminar à beira do limiar do infinito, onde também terminam os horizontes.
Até ao último limite... A construção de todas as censuras, a partir dos medos, resistências, fugas, trouxeram-me ao envelamento do mundo inteiro, abrindo-me as portas para todos os infernos - e as vaidades das palavras deliciam-me com a descrição escultural e artesanal delas.
Devasto os mares e rios de mim, o meu ser visita os mais recônditos e longínquos sítios da verdade - quando serei uma presença? Busco o solo profundo onde fixar raízes - quando serei verdadeiro? Ou melhor: onde fixar raízes, o profundo solo busco - quando serei a minha verdade? A absurda desgraça: a autoflagelação apresentar-se-me nítida e límpida, admiti-la como um estilo de imergir nas profundezas tumultuosas...


(**RIO DE JANEIRO**, 05 DE AGOSTO DE 2017)


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