#AFORISMO 99/O DESEJO DE AMOR SÓ VIVE DE ENTREGA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Epígrafe:


“... porque a sabedoria abriu a boca aos mudos, e tornou eloqüente a língua das crianças”
(Sabedoria, 10,21)


Maria maria os verbos da vida. Maria maria as sendas do ser. Maria maria as veredas do amor. Maria maria os abismos na montanha. Maria maria o silvestre da natureza na floresta. Maria maria as águas dos rios em direção ao mar. Maria maria a cintilância das estrelas que velam o ossuário da terra. Maria maria o brilho da lua que inspira o boêmio na sua serenata ao amor de seu coração. Maria maria as regências da esperança e sonhos. Maria maria os caminhos do campo...


A face da serra, voltada para mim, ilumina-se agora toda, branca e solene.Como um olhar gravado de cansaço, as estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia o que me submerge. Calado, ouço o que me segreda a água – esta que cai a todo instante lá fora, regando os jardins de rosas brancas, descendo as ruas seguindo o seu destino, tudo se destina a algo, não tenho comigo nada que contrarie esta verdade, deixando-as lavadas de todo o lixo que os transeuntes deixam nelas, enquanto andam daqui para ali, com seus afazeres e obrigações, [jardins de rosas brancas, vermelhas, amarelas], neste segundo em que de costa, sentado em minha cadeira de balanço, busco escrever este momento.


Letras de solidão e sombras.


Quem sabe devesse eu tecer algumas considerações que penso e sinto serem primordiais no sentido de tornar lúcido o que dentro trago em mim, o paradoxo, que, por vezes não encontro modo algum de definir, as situações indecorosas e inconseqüentes em que me envolvo, muitas vezes tendo de calar-me, nada dizendo, deixando-me exposto a todos os ventos e sibilos deles de entre as serras e montanhas. Há quando penso comigo que questiono a natureza da arte, expressá-la de modo exemplar e único, num estilo muito particular e singular, tendo então de carregar a tinta no que há de contraditório, sem senso, quem sabe assim atingindo o efeito pretendido, o que requer submissão às constantes análises sobre a própria produção.


A idéia assume o papel de um motor que faz a arte.


Escrevo absolutamente de memória, - procuro, principalmente, por emoções que provocam não somente sentimentos puros, mas também os que buscam uma sensação nova, intrigante, complexa, multifacetada, dilacerada, ambígua, prolixa, hermética e, ao mesmo tempo, tênue, frágil -, sem documentos, sem material que me ajude a recordar. Há na minha vida acontecimentos que me estão sobremodo presentes como se acabassem de acontecer; mas há lacunas e vácuos que só posso preencher com o auxílio de histórias tão estranhas quanto a lembrança que delas me ficou.


E, em me referindo ao ambíguo, não posso deixar de registrar, ainda que penso não devesse estar tecendo tais considerações, para que irão servir, pergunto-me, angustiando-me, pois que não saberia responder por elas. O ambíguo se me apresenta num campo aberto de sentidos, revelando ou sugerindo diversos significados, às vezes até opostos, sem confirmá-los jamais, se o fizesse, creio, perderia a sua originalidade, autenticidade, pois que intencionam ser uma imagem do mistério, contra-luz do sinistro. Como o objeto ambíguo aponta aspectos e valores múltiplos, perpetua-se o equívoco, que não se extingue, mesmo quando, por um instante, penso que encontrei o sentido verdadeiro.
Na minha opinião, a ociosidade não é um flagelo social menor do que a solidão. Nada diminui tanto o espírito, nada engendra tantas ninharias perniciosas, intrigas, aborrecimentos, mentiras do que viverem pessoas eternamente fechadas umas defronte das outras numa sala, reduzidas, como único ofício, à necessidade de tagarelar constantemente.


A fenomenologia do ser humano, isto é, a descrição de como se manifesta e de como funciona o ser humano, reside em revelar que ele é um ser em si, mas que se abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que se abre à totalidade. Esta é a condição humana básica. Mas ele se recusa a aceitar que esta abertura tenha um objeto.


Um colóquio mantido desde há dias, cuja aparência ou cujo destino, sempre que a água me confia uma boa nova, entreolhamo-nos ambos, assim, com pensamentos id-ênticos, contentes de termos recebido a mesma resposta à mesma pergunta, e nem sabemos em palavras dizer. Tenho de prosseguir trabalhando o fio tênue de água que escorre na vidraça, tecendo sempre mais de teia na obra, esse fiozinho frágil, único, todo dia, toda hora, perdendo e retomando o fluxo de sonhos, idéias, lembranças, para adensá-la enfim numa suave melodia, em que, ao final, as horas tristes e compridas são agora leves e prazerosas; os olhos não tiveram de desaprender de chorar, se porventura choravam antes, vertiam lágrimas de desejos de outros sonhos. O tempo desata de imediato todas as saudades e ressurreições. Diminuir-se-ia a emoção, decerto se anularia, se as idéias visassem a uma demonstração.


O mais não digo para não dar a esta página um aspecto misterioso, místico, enigmático, mas posso imaginar, na dobra do lençol sinto os dedos leves tocarem-me como tocava o piano, tu tocavas “Canção Agalopada”, e te sentias volúvel e susceptível, tu tocavas para ti e para mim. A alegria sutil e perspicaz desde o fundo da madrugada, desde o silêncio que projeta as imagens até ao limiar de sua evid-ência e também de sua contingência.Como um olhar gravado de cansaço, as estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia o que me submerge.


Estendo-me ao longo do que dentro trago em mim. Amável faceirice substitui a ternura. Acho que nunca me esforcei tanto por desejar e querer a vida, senti-la-sendo em mim, ouvi-la, dizendo suas palavras de sabedoria e conhecimento; por agradar–me nem nunca fiquei tão contente comigo mesmo. Posso ocultar-me na luz de um abat-jour aceso e fazer de mim, de minhas próprias desgraças, infortúnios, infelicidades, e alguns momentos de alegria, júbilo e glória, um modo de descobrir-me, revelar-me, enfim, de ser-me. Posso expressar-me com empáfia e sabedoria, posso oferecer a Éblis uma gota de lágrima por estar feliz e contente com o conhecimento adquirido de quem sou, e pela indiferença da oferta o demônio imundo não irá se insatisfazer.


O desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e a redenção, cujos frutos são os sonhos que alimentamos e AFAGAMOS, e quem a outrem, que en-vela e re-vela, não poderá, Senhor, alguma vez, desalgemar de mim as mãos rápidas de gestos, deixando-me-ser aos olhos e ouvidos atentos e á minha nítida simplicidade de Alma?


(**RIO DE JANEIRO**, 15 DE AGOSTO DE 2017)


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