#ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO


DEUS ESTÁ MORTO - CAPÍTULO XXIII......


Por outro lado, a vontade de potência manifesta-se também na força reativa. Se a vida é vontade de potência, segundo a análise genealógica, mesmo ela se manifestando como uma reação, ou mais precisamente, munida de fraqueza, negação, isto é, quando exprime uma vontade de nada, um niilismo, mesmo assim, é uma vontade de potência. Assim, afirma a Genealogia da moral:


[...] esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o modo de felicidade e de beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio, tudo isto significa ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!... o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer... .
Apesar de ser uma afirmação negativa, muitas coisas são avaliadas de forma mais elevada que a própria vida; mas, mesmo assim, a vontade de potência é que prevalece.


Segundo Nietzsche, em qualquer ser vivo há uma vontade de potência, até mesmo na vontade do servo, existe uma vontade de se tornar senhor. Todavia, Nietzsche não concebe a idéia de que uma maioria medíocre, a supremacia do rebanho, venha dominar indivíduos fortes e de livre arbítrio.


Nietzsche até reconhece a moral como uma vontade de potência, porém ela não representa uma vontade forte, que exceda, pelo contrário, uma vontade fraca que deseja uma potência que não tem, uma potência imaginária, uma representação.


Assim, percebem na idéia ascética; outrora advinda desta moral, não só uma vontade, mas também uma forma de conservar a vida: “O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência” .


Todavia, esses ideais de conservação, defesa, adequação são objetivos de uma vontade fraca, decadente, pobre e vulgar, que utiliza desse ideal ascético para permanecer vivendo.


Tendo essa moral como um meio astuto de conservação da vida e não de difusão da mesma, se nesta há uma batalha da vida contra a morte, não existirá um desejo de criação, esta vida não terá um caráter intenso, não será forte, nem mesmo terá vigor, será uma vida vulgar, digna de escravo.


A partir do momento em que a moral se apresenta como vontade negativa de potência, podemos afirmar que não há nenhuma relação de harmonia com a vida, ou melhor, a moral é nociva às forças que possibilitam a auto-expansão da vida, isto é, a vontade afirmativa de potência.


Nietzsche se propõe a proclamar com exuberância contra a forma de moralidade regente em nossa sociedade, preservando no homem moral, isto é, admitindo que sua moral não o faz melhor, mas o conserva fraco, negativo e reativo, revertendo a força em fraqueza, enfraquecendo a vida.


Por isso, faz-se necessário aniquilar a moral para que a vida possa ser libertada e que livre das ilusões projetadas pela moral, o homem possa se situar para “além do bem e do mal”, num gesto de afirmação à vida, num “sim”, como reconhecimento de si mesmo e de sua condição aqui na terra, uma vontade de sim.


Dentro desta etapa de transmutação, é de um valor imensurável lembrar que o homem, segundo Nietzsche, sempre se definiu em relação à divindade, isto é, sempre se definiu como criatura diante do criador, numa total relação “dicotômica” , como foi possível analisar anteriormente. Todavia, esse Deus morreu, esse ser supremo e criador foi eliminado, está morto; e o homem precisa deixar de ser criatura.


Se afirmarmos que “Deus morreu”, também o homem deverá morrer juntamente com ele, não numa perspectiva existencial, mas enquanto criatura, pois era assim que se definia. Assim sendo, o homem é um ser que, agora, precisa ser superado, juntamente consigo a dicotomia também precisa ser suprimida.


É por isso que Nietzsche emprega o termo super-homem, que muitos acabam confundindo com um herói de histórias em quadrinhos ou até mesmo com a raça ariana, um tipo biologicamente superior, equívoco do Nazismo.


O super-homem, do alemão Übermensch, talvez seria mais bem traduzido por “ultra-homem”, apesar de que alguns tradutores preferem usar o termo “além do homem” no intuito de safar dos equívocos e supostas relações do mesmo com uma categoria totalmente irreconciliável de homens, que é o caso do Nazismo, e outras suposições vistas anteriormente.


A idéia de super-homem constitui o tema central da obra nietzscheana Assim falou Zaratustra, embora este termo tenha aparecido outras vezes em obras posteriores, porém de maneira bem irrelevante. É nesta presente obra sobretudo, e nas posteriores, que o termo vai ganhar uma ênfase, aliás, constituirá um dos marcos centrais.


Se é verdade que a expressão “vontade de potência” entra em cena pela primeira vez no Zaratustra, não parece ser menos certo que o conceito de vontade tem sua introdução facilmente justificável no plano da análise psicológica, visto que as fórmulas que Nietzsche utilizara antes já a continham implicitamente.


Assim, Aurora falava em “impulsão” e outros textos abusarão da fórmula “aspirar a”, termos que já exprimem as idéias de esforço e de tensão, exatamente o que a noção de “vontade” sublinhará. E são esses mesmos termos que voltarão à cena na Genealogia da moral, quer dizer, depois de forjada a expressão “vontade de potência”. Todo animal, diz Nietzsche ali, “aspira instintivamente a um optimum de condições favoráveis em que possa expandir sua força e alcançar seu máximo de sentimento de potência” .


Sendo assim, se nos situamos no terreno da experiência psicológica, parece que podemos considerar a fórmula “vontade de potência” como a expressão abreviada de “vontade de sentimento de potência”.


Em Assim falou Zaratustra, é delineada a vida do herói Zaratustra que, aos seus trinta anos resolvera deixar a sua terra natal, recolhendo-se numa caverna no alto das montanhas por dez anos, na companhia de uma serpente e uma águia que, outrora, os tinham por amigos. Passados os dez anos de solidão, apresenta-se aos homens para com eles partilhar toda a sua sabedoria. Todavia, não encontra muito sucesso em princípio, pois as suas idéias eram demasiadas controversas para aquelas pobres mentes. Logo no início de sua “aventura” Zaratustra, aproveitando uma multidão reunida numa praça, volta-se para as mesmas dizendo: “Anuncio-vos o super homem. O homem é qualquer coisa que tem de ser ultrapassada” .


Nietzsche fala algumas vezes que a raça humana, tal como a conhecemos, tem que ser superada e tem que ceder o espaço a uma raça de super-homens, por vezes, ele parece se contradizer quando afirma que o número de personalidades excepcionais tem de ser mais ou menos limitada. Todavia, esses termos não se contradizem, uma vez que podem ser tomados como se referindo a uma realização concreta de processos diferentes, sendo simplesmente uma espécie de ideal orientador, ao passo que o outro se refere diretamente a uma possibilidade concretamente realizável.


Uma questão que surge em se tratando do Übermensch é se ele refere ou mantém relação com a livre e nobre aristocracia ; se é um outro nome para o bom aristocrata ou se é esta aristocracia uma preparação para o super-homem, perceber-se que o übermensch do Zaratustra é o ideal nietzscheano, todavia isento dos defeitos que ele encontrou nos homens excepcionais da história, mas não inteiramente heterogêneo em relação àqueles homens superiores que tem aparecido efetivamente, destinada a pôr em voga o contraste entre o homem insignificante e fraco concebido experimentalmente por Nietzsche e o homem ideal.
Assim, a não lineabilidade exata do Übermensch de Zaratustra, deve-se precisamente ao fato de seu ideal nunca haver realizado; todavia, aparece vagamente no alvorecer do futuro, como uma figura para ser desejada e à luz da qual se deve avaliar a insuficiência não só dos homens vulgares, mas também daqueles que se aproximam do ideal, sem o atingir.


Nestes parâmetros, o ideal a ser atingido com Übermensch ultrapassa os limites do homem; este “é uma corda estendida entre o animal e o super homem: uma corda sobre o abismo” . A partir desse ideal do super-homem, Nietzsche quer nos levar a perceber e apreender que o ideal que devemos desejar e pelo qual devemos trabalhar é, muito maior do que qualquer coisa de que tenhamos tido experiência, isto é, uma nova categoria de homens imensamente distantes dos homens atuais pela sua nobreza e criatividade .


Desta perspectiva, os super-homens serão os realizadores dos projetos dos homens aristocráticos. Estes, tidos como os homens superiores, os nobres, conservam em si muitos aspectos do homem fraco e plebeu; pesam sobre si a carga e recordações desses pequenos.


Eles não são belos nem fortes o bastante, há neles muitas imperfeições, deformações insanáveis. Eles são quase que uma espécie de passaporte, anunciadores, sinais de outros homens mais altos, fortes, vitoriosos, que exalam supremacia.


Os super-homens serão homens retos, que terão o risco como a própria vida e farão do perigo a própria missão, como o exemplo daquele equilibrista que caminhava sobre uma corda estendida entre duas torres e, de repente, num salto, foi superado pelo seu rival, perde a cabeça, larga a corda e atira-se no abismo, num turbilhão de braços e pernas .


Esses super-homens devem ser aqueles que passam pelo crivo das três metamorfoses, adquirindo o aspecto de homens criadores de novos valores, que não só saberão opor ao “tu deves” do homem camelo e ao “eu quero” do homem leão , mas, como criança, representarão “a inocência e esquecimento, um recomeço, um jogo, uma roda que se move por si mesma, um primeiro movimento, um sim sagrado.”


Quando Nietzsche fala de Übermensch é difícil estabelecer que ele desejasse, de fato, uma espécie literalmente nova. É certo que ele não se simpatiza muito com o aspecto humano de indivíduo servil; todavia, o seu super-homem necessitava do homem comum como um ponto de apoio. Isso não nos leva à conclusão de que a espécie humana iria ceder o seu espaço ao super-homem, ou que o homem plebeu representaria uma diferença específica, como a existente entre o homem e o macaco.


O super-homem representa simplesmente o modelo ideal de homem para Nietzsche. Assim, o super-homem representará a expressão máxima da vontade de potência, onde, liberto das amarras da moralidade, partirá para uma nova proposta engendrada a partir de sua olímpica arrogância, de sua incessante superação de si mesmo, de sua altivez de águia e seu caráter astuto como uma serpente.
Sua morada será a montanha, acompanhado pela águia e pela serpente, completamente fora dos alcances da moralidade e do cristianismo, pois ele será legislador de si mesmo, autor de suas próprias e exclusivas regras.


O super-homem não é o homem superior, nem a conclusão do crescimento do homem superior que é, no máximo, sua aproximação, seu esforço.


O super-homem também não pode ser o senhor dos tempos pré-históricos, das famosas “bestas louras” descritas na primeira parte da Genealogia da moral sob um duplo aspecto: entre pares em sua própria comunidade, capazes de domínio de si, de fidelidade, de amizade, mas capazes de todas as ferocidades para com os estranhos.


São as raças aristocráticas que deixaram atrás delas o conceito de bárbaro, por toda parte que passaram e deixaram traços .


Que Nietzsche coloque em questão a passagem do animal selvagem ao animal doméstico, dos povos bárbaros aos povos civilizados, que ele se interrogue sobre o sentido da “cultura” e do “progresso” implicado nesta passagem, isto não significa absolutamente que ele tenha identificado o super-homem com o bárbaro. O autor do Nascimento da tragédia não poderia ter esquecido que foi na cidade grega e contra os impérios bárbaros que se realizou historicamente o tipo humano mais elevado.


Em suma, o super-homem será a nova concepção que o homem terá de si, não mais vivendo com base no além, mas valorizando cada momento da existência aqui na terra como sendo o único e, tendo a vida como valor e ideal máximo de sua proliferação e exuberância; por fim, desperta um tremendo amor por todos aqueles que são valentes, corajosos, os que manifestam um gesto de afirmação à vida, os que não se prendem aos limites e não temem o desconhecido.


Chegando ao término de nossa investigação sobre o tema A morte de Deus em Nietzsche, pudemos averiguar em larga escala o desenrolar do pensamento nietzscheano que, a nosso ver, manifesta-se de maneira ousada e robusta. Podemos dizer que a sua filosofia, ou a sua crítica, possui duas faces; de um lado, encontramos a crítica dos valores que se desencadeia com a “morte de Deus”, e de outro, um processo de transvaloração de todos os valores.


Nietzsche, ao tratar a morte de Deus, não só ousa declarar um acontecimento já ocorrido antes mesmo do seu nascimento, mas também abre a porta para o alvorecer de uma nova humanidade, de um novo tempo do homem.


Após Nietzsche, sobretudo com a declaração da morte de Deus, a humanidade não é a mesma. Vivemos em uma época onde os valores parecem não se fundamentar em um porto seguro e este é o semblante da pós-modernidade. Não existe mais uma verdade onde todos possam se fundamentar, visto que tudo é posto em critério de evidência. Vivemos em uma total fragmentação da verdade, onde a razão foi completamente aniquilada, cedendo lugar a infinitas interrogações que se duplicam à medida que tentamos achar um porto seguro para nossas questões básicas do quotidiano. Desta maneira, tudo existe sob suspeita, sem uma resposta una e última.


Quando apresentamos, por meio deste, a “morte de Deus”, como um acontecimento cultural, de fato, queremos voltar nosso olhar para essa realidade que perpassa, onde o homem, após superar aquilo que ele julgava ser fruto de suas próprias manifestações e ilusões, pretende criar a sua própria condição de existência sem nenhum referencial, senão o seu próprio esforço e dedicação.


Percebemos em todo o corpo desta introdução uma crítica ferrenha de Nietzsche à metafísica tradicional, culminando na negação de Deus como objeto desta metafísica. Todavia, não nos limitamos aqui a provar ou não o ateísmo em Nietzsche, pois percebemos em seus escritos um ataque refutante ao Deus da metafísica, tido como princípio e fundamento de verdade.


De fato, a filosofia nietzscheana é um convite àqueles que vivem num além, voltarem os olhos para a sua realidade aqui na terra, e não viver com base em “promessas promíscuas”, mas na certeza de que o verdadeiro valor da existência se funda nas práticas de vida, tornando cada suspiro existencial uma perene valoração da vida.


É de valor imensurável perceber que essa dupla face da crítica nietzscheana onde, de um lado se propõe desconstruir o que foi mal planejado, e, de outro, edificar para uma vida melhor; não apresenta soluções precisas para nos safarmos dos problemas do momento presente. Todavia, essa desconstrução desencadeada com a morte de Deus, na verdade, levou o mundo a perceber que aquelas formas únicas, projetadas pelo homem em vista de produzir fontes seguras de atingir a verdade (aliás, era a própria verdade), foram rebaixadas, e isto foi preciso para que o homem pudesse se realizar livremente.


A morte de Deus, a nosso ver, foi um acontecimento preciso (não nos limitando a suprir a idéia de Deus), pois, a partir do momento que o homem não encontrou mais algo que o apoiasse, tal como ele almejava ser, voltou para a sua própria realidade e passou a ter então a vida como a instância a partir de que se podem realizar critérios de avaliação. A responsabilidade, agora, volta-se para o próprio sujeito que, a partir de sua vontade livre, opta em querer afirmar ou negar a vida – a afirmação da vida, reconhecimento de nossas origens, de nossos pro-jetos e utopias, leva-nos em busca do “espírito subterrâneo”, o que nos habita e nos encaminha nas trilhas da busca de eternidade e sublimidade, a busca de nossa “eidos” humana.
Como vimos, esta vontade, ao afirmar a vida, afirma conseqüentemente cada instante no interior do devir, sem restrições, sem quaisquer reservas; admitindo cada instante da vida por mais insignificante e cruel que seja como plenos em si mesmos, aderindo a ele um fator de eternidade.


Com a morte de Deus, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer valor eficiente onde as idéias não são mais vistas como verdades ou falsidades, mas como sinais. Assim, Nietzsche restringe toda existência na aparência, e seu reverso não é mais o ser, o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é a sua interpretação.


Para suprir o vazio que ficou com a morte de Deus, Nietzsche propôs uma nova escala de valores onde o homem é criador e vê neles algo de transcendente, eterno e verdadeiro. Todavia, aqui encontramos uma leve contradição na crítica levantada por Nietzsche em sua época. Uma vez que Nietzsche atém a proclamar a descoberta de novos valores, superiores aos demais, ele acaba sendo vítima de suas próprias colocações.


Mesmo não nos atendo a certas afirmações do pensamento nietzscheano, tais como nos aparecem, também não podemos concordar com afirmações de certas pessoas que enxergam a sua filosofia como um amontoado de afirmações insignificantes, de um indivíduo munido de perturbações mentais (neurótico).


Pelo contrário, admiramos a beleza de seus escritos e julgamos ser muito importante o contato com o seu pensamento, procurando apreender tudo de válido e bom que nos for aparecendo.


Por fim, observamos em Nietzsche mais um exemplo de alguém que, indignado com o modelo tradicional da fé, ecoa um forte murmúrio no vazio existencial, na procura de porquês que venham dar um sentido novo e salutar às questões que tangem toda e qualquer perspectiva existencial no humano.


(**RIO DE JANEIRO**, 03 DE JULHO DE 2017)


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