#SENÁCULO DE PANGARÉS - II TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreir Neto: ROMANCE



CAPÍTULO XII - ESTRÍDULOS SONS DE NAVALHAS - PARTE IV


Creio ser uma ótima inspiração esta, servindo-me da moça, filha de prezado amigo, quem pensa o que sente e sente o que pensa. Não que lhe inveje a atitude, ação, pois que não a invejo. Tenho lá outro caráter bem diferente, apesar de também dizer o que penso e sinto.


Às vezes, pára, um dedo de prosa, dizer de seu pai, as coisas estranhas que o velho é capaz de fazer, mas sempre com originalidade e estilo inéditos. Há muito adoecera, fora internado, submetera-se a operações. Ficara por uns tempos, convalescendo-se, noutra cidade. Passara Síria Quimérica, vestindo cores estapafúrdias, amarela a saia, de bicos, num feitio inusitado; roxa a blusa, para cima do umbigo, decote “V”, com estes detalhes todos por a mamãe haver sido costureira, aprendendo os termos de tanto os ouvir por todo o dia. Uma gargantilha de seda cor de rosa.


Perguntara por seu pai, respondendo que já está bem, chegaram no carnaval da cidade vizinha. Ainda não está saindo de casa. Comentara sobre uma de nossas personalidades, quem estivera na cidade, sabendo do falecimento de um amigo, homenageou-lhe com um texto na rádio local. Se já houvera ouvido falar nisto? Respondi-lhe que nada ouvira, difícil esta homem sair de casa, badalar. Muito fechado, mas, se isto é real mesmo, julgar ser uma atitude de grande valor.


Dissera-lhe, então, que, ao surgir uma oportunidade, iria visitar o seu pai. Tivesse a certeza de que estava muito satisfeito com a volta dele, estava fazendo falta. Para acrescentar, esperando que caísse na gargalhada, referi-me a duas coisas nos mineiros que sempre me chamaram atenção aguçada, a sua característica de acreditar desacreditando, vice-versa, além desta que já se tornou comum no métier dos doutos pangarés, de se referir às coisas como “trem”, tudo para mineiro é “trem”, chegando a dizer sobre uma mulher linda e maravilhosa e muito vistosa, ser “que treinzão”, deixando a dúvida se horrível, feia, ultrapassando e muito a decência dos olhares, se linda, maravilhosa, gostosa.


O ato amoroso é um assassinato mútulo simbólico. E é por isso que a sua paz final se investe da imagem da morte. No instante máximo, no instante único, uma chama vazia e intensa destrói toda a realidade. O amor carnal verdadeiro e autêntico é a necessidade de satisfazer os instintos, se negá-lo na caminhada para a espiritualidade comete-se um dos erros mais indecentes que conheço, como já vos disse a respeito noutro capítulo de meus discursos, o que entendo por erro indecente, que, aliás, fizera-vos relinchar a todos os pulmões e línguas para fora, as minhas jeguices mais originais.


Voltando aos pangarés frios, dizia a respeito do ato amoroso. Como no sono, como numa anestesia, esse final é inimaginável e in-analisável, porque nada nele existe verificável e real. Como se uma vida nova que aí nasça exigisse precisamente o aniquilamento integral de nós próprios, a dádiva absoluta de nós, para que nada de nós reste que se não transmita. Gerar e transfundirmo-nos em tudo aquilo que temos. Uma vida nova exige a nossa morte, para que nada de nós se subtraia à dádiva do futuro.
Mas assim mesmo compreendemos que se tente instaurar aí um valor metafísico, que numa figuração do Todo tentemos reabsorver e justificar a aniquilação amorosa. Ela é com efeito, aparentemente absurda, para lá do prazer sensual. Porque para lá desse prazer, há todo um mundo complexo de múltiplos sentimentos que em nada se justificam.
Se me disserem que “o branco é preto, em verdade...”, acredito, não sei se passando a divulgar entre os homens da comunidade, incluindo as mulheres, são da raça humana, comigo, entretanto, assumo o branco ser preto, em verdade.


Concluindo o dito, “... embora o preto não seja branco, em verdade”. Diria a todos os ventos o que me convenceram, mostraram-me a face verdadeira, e comigo amaria o novo em mim, “o branco é preto, em verdade; embora o preto não seja branco, em verdade”.


O prazer estético é o irrecusável comprazimento com a nossa verdade profunda, ou simplesmente com a verdade do homem, do indivíduo, da pessoa, com o que há de inseparável da sua condição. Sentir “prazer” na arte, reconhecer nela a expressão da liberdade, fora o tema que me pedira com aquele amigo com quem fui parar num restaurante à luz de jeguices, falar sobre a arte para os pangarés, é ainda uma dimensão que a ciência ainda não conseguira se explicar direito, porque os pangarés não se dedicaram à arte.


Mostrando-me a partir de argumentos os mais racionais, com estratégias de linguagem e estilo, não em palestras ou entrevistas, mas no trocar de dedos de prosa, os mais plausíveis, inteligentes – oh, como a raça humana progrediu e se desenvolveu na mentalidade!... Não acreditaria nisto de liberdade nesta comunidade, apesar de que é o berço de lutas e angústias pela liberdade, berço da arte e da música... Isto só um imbecil, imbecil de rabichas jeguéticas, destes que apresentam o cartão em todas as suas conversas, íntimos, cúmplices, dizendo “sou um imbecil; não compreendo as coisas sérias”, não iria acreditar nesta História.


Por que não acredito ser esta comunidade livre, esta terra livre? Pergunta óbvia, analisando em todos os ângulos a inteligência e a sabedoria . Outra não seria de modo algum plausível, até desconfiando da inteligência, não havendo o cartão, mas a realidade óbvia diante dos olhos.


Não estou colocando isto em discussão, as idéias claras acompanhadas de intenções as mais sinceras e responsáveis, por não ser de minha alçada travar colóquios estilizados e cristalizados acerca da verdade e responsabilidade histórica de uma comunidade não sendo nascido, não sendo o objeto de meus conhecimentos profundos. Aliás, muito pouco conheço, e, dizendo em verdade, tenho sérias dúvidas do que conheço.
Não me cabe discutir este assunto. Deverei, com certeza, pesquisar a fundo a História desta comunidade. De bom senso inclusive, antes de afirmar algo sério, comprometedor. Pouco tempo de residência e domicílio não permite a ninguém conhecer a fundo a cultura de um lugar.
Sim. Assumo esta realidade, reconheço nada saber da história, nem informações precisas devo conhecer. Questionaria: “Se posso dizer estar nas condições normais de sanidade, sem a identidade, como pode haver a liberdade? Passado é passado, a História não pára. Onde está a identidade de um povo que não conhece o seu presente?”.
Assunto muito complexo, a intenção não é de modo algum, em verdade, de discutir, de causar polêmica, ser aclamado, rejeitado, odiado, a moeda só tem duas faces, não é verdade?


Ando meditando profundamente no tangente à identidade, a partir da infância até agora com quase cinqüenta anos, o que construí, em que nível amadureci, desenvolvi, podendo dizer sou homem livre. As experiências e vivências trouxeram-me até aqui, há um curriculum vitae, conheço algumas coisas de mim, outras des-conheço, e só com este encontro do mistério é que me posso revelar.
Manoel Ferreira Neto
(JUNHO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 06 DE SETEMBRO DE 2018)


Comentários