#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO II - PARTE IV


Se era verdade que o asno pensava, sabia as coisas dos humanos, gostaria muito de saber o porquê de ele não poder fazer o mesmo que o pai fazia com a mãe, deixara a porta semi-aberta, num domingo, pensaram que não estivesse em casa. A mãe estava nua e tudo acontecendo. “Gosto de você nua. Corpo delicioso. A menina é um doce de pêssego”, dizendo estas palavras. Ela estava feliz, dava gritinhos, resfolegava muito, passando a língua nos lábios. Será que eu pudesse responder?


- Mas como, não é verdade? Não conheço a língua dos asnos. A minha não sei aprender. Fica difícil.


Se tenho alguma resposta para isto... Ora, se tenho. Pudesse Fomá Fomitch conseguir entender os beiços, trejeitos, poderia saber o que penso de tudo isso. Seria até oportunidade de aprender a língua, não estaria aprendendo a do asno, mas a própria. Afortunadamente, não lhe fora dado este dom, o de ler nos beiços de asno. Seria muitíssimo interessante, não seria? Seria interessante se os leitores não lessem as palavras, mas a história nos lábios do narrador? Se for o asno o narrador? Seria complicado, após ter contado a história que lera e admirara desde a primeira até à ultima letra, dizer que o asno lhe despertou interesse pela Língua Portuguesa. Comentário geral: “Teve lição de língua com asno”. Fomá Fomitch Neves teve com a empregada. Assim dizem as línguas ferinas, mas não atinam com o que dizem: querem ridicularizar, mas são as ridicularizadas com a fala. E não percebem.


Creio que Myriam Donata, a jovem mais escrota, de cinismo sem contas, iria dizer com todas as letras: “Aprendeu a Língua Portuguesa com asno. Está faltando professor em Lágrima dos Insanos. Não seria o caso de ser contratado para lecionar em nossas escolas?”. Critica Deus e Mefistófeles. Seria comentado por todos na cidade. Que vergonha!... O asno era mais inteligente que ele. E o pior: tornou-se asno; o aluno não é sempre influenciado pelos professores?


Fosse comigo o que dissera a alguém na fazenda, estavam sentados à sombra de uma árvore, devido a uma pergunta em verdade capciosa a Myriam Donata, que lhe teria mostrado o que é descascar o digníssimo pepino com toda a pompa e ironias. Coitado do rapaz, ficou branco, os lábios tremiam, os olhos soltavam faíscas de tanta vergonha, sentiu-se onde ela o colocou, abaixo dos seres inferiores milhas de distância.
Como é possível viver num lugar desse? Pelo menos se a fazenda fosse distante da cidade. Mas não. Um quilômetro e meio. Todos sabem da vida e das picuinhas de todos. Comentam atrás dos coxos, ridicularizam, verdadeiro hospício de palhaços. Gostaria muito que houvesse um, iria fazer visita, assistir às palhaçadas dos insanos. Não lhes consternaria verem-se traspassado de dores, mil golpes cruéis da Desventura, porque os insanos sabem que a frágil criatura raramente é errada num mundo feliz. Não chora a liberdade que, enleada, tem em férreas prisões, e a paz ditosa que voa de sua alma atribulada.


Não sou asno de rebanho, não vejo qualquer necessidade de se comentar sobre a vida alheia, quem muito vê a dos outros, passa a desconhecer a própria, e isto é de uma seriedade sem limites. Pensar não é proibido. “Pense o que quiser, desde que pense em mim...”, não é assim que as pessoas dizem? Dizer é que não se deve, de modo algum, isto ajuda a conservar os brios.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 08 DE SETEMBRO DE 2018)


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