#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO VIII - PARTE III


- O senhor... Então, o remédio deu resultado...


- Deu... Veja... – tirou a faixa e jogou aquela coisa no chão, enorme...


- Meu Deus... Mas o que aconteceu?


- Doutor, a mulher reclamava muito, o resultado estava demorando, tomei duas cartelas de quinze...


- Meu Deus!... Mas espere um instante, e o resto?


- Vem aí atrás numa carroça de boi.


A piada. Fato é que Pedro Quatro Olhos tinha filho todos os anos. Aquando decidira ir ao médico, já estava no décimo. Homem pobre, vivia de vender bilhete de loteria, fazer jogo de bicho. Não podia continuar a ter filhos. Fora ao médico. Dr. Viana receitou-lhe anticoncepcional, não explicando como deveria ser usado. Ao invés de a mulher tomar os comprimidos, fora Pedro Quatro Olhos a fazê-lo. Ano depois, retornou ao médico, dizendo que os remédios não deram qualquer resultado. Dr. Viana quis saber o que acontecera, anticoncepcional dá seus resultados, um ou outro caso pode passar. Pedro Quatro Olhos havia tomado os comprimidos.
A visão continuava bem nítida na memória, se é que isto possa ser entendido pelos lacrimenses dos insanos, o asno Incitatus tem memória, e são estas memórias justamente as responsáveis por... Bem. O fato é que a visão estava me intrigando bastante: enfim, era mesmo homem que se encontrava sentado à pedra, fumando cigarro de palha? Não saberia dizer se era homem, pois somente reconheceu a forma de algo que se parecia com alguém. Por que estas visões?


À noite, já recolhido na caverna, tendo inclusive Ratto Neves colocado coxo onde sempre manda o vaqueiro colocar feno para Incitatus, pus-me a refletir sobre os acontecimentos.


Quem sabe esta caridade, este instinto de compaixão com a velhice do asno que trabalhou a vida inteira, puxando carroça pelas ruas de alguma cidade, não é a oportunidade de superar a vergonha que sente, levando-lhe a debulhar as espigas de culpas, completa vítima da vida e do destino.


Alguns homens acolheram intimamente as prostitutas em casa; ele acolhera o asno. Quem sabe não seja o próprio asno que nalguma circunstância não lhe faça sentir-se envergonhado, des-gra-çando a confessar os envolvimentos, ajoelhando às patas e quem sabe até pedindo perdão a Incitatus por tudo, batendo a mão fechada no peito esquerdo: “Mea culpa. Mea máxima culpa”. Daí em diante, outra vez não se sentiria assim. Não é coisa fácil.


O que as prostitutas fizeram para envergonhar os maridos não há quem de imediato não desconverse, não passe as mãos nos cabelos, resfolegam de tristeza e desamparo. Algo sobremodo envergonhoso, não se pode dizer a respeito, não querem esta mácula aos olhos da humanidade, isto tornaria Lágrima dos Insanos patrimônio da humanidade, seriam os habitantes transformados em pedra, habitada de homens tornados pedras. Ninguém diz. Não me fora ainda dado mergulhar fundo nas falas para estabelecer ângulo de visão.
Pensava tudo isso, enquanto olhava a lua e estrelas no céu de Lágrima dos Insanos. À época de namoro, os casais que só podiam namorar diante do focinho dos pais, noites de lua cheia, céu repleto de estrelas, ficavam à janela, olhando-as, imaginavam a felicidade no paraíso terrestre – o real paraíso lhes pareceria insípido diante do terreno, a felicidade está na terra mesma - pediam-lhes que os iluminassem nos caminhos da vida. Os pais perderam estes costumes, liam jornais, jogavam “pif-paf”, buraco, canastra, assistiam à televisão, enquanto os filhos sonhavam, aos domingos, deitados à sombra de árvore frondosa, os cestinhos de iguarias, desfrutando os prazeres da vida conjugal.


A lua, voltada para mim, ilumina-se toda, branca e solene. Como olhar gravado de cansaço, as estrelas velam o ossuário da terra, o profundo silencia o que me submerge. Calado, ouço o que me segreda a água – aquela que segue o rio lá fora, regando nalguns lugares os jardins de rosas brancas.


Em dias de chuva, dirigindo-se às bocas-de-lobo, seguindo o destino, tudo se destina a algo, não tenho comigo nada que contrarie esta verdade, deixando-as lavadas de todo o lixo que os transeuntes deixam nelas, enquanto andam daqui para ali, com afazeres e obrigações, [jardins de rosas brancas, vermelhas, amarelas], neste segundo em que de costa, deitado na caverna, esperando o sono chegar...
Palavras de solidão e sombras.


Quem sabe devesse tecer algumas considerações que penso e sinto serem primordiais no sentido de tornar lúcido o que dentro trago em mim, o paradoxo, que, por vezes não encontro modo algum de definir, as situações indecorosas e inconseqüentes em que me envolvo, muitas vezes tendo de calar-me, nada dizendo, deixando-me exposto a todos os ventos e sibilos deles. Há quando penso comigo que questiono a natureza das palavras que uso para expressar o que dentro carrego em mim, expressá-la de modo exemplar e único, num estilo muito particular e singular, tendo então de carregar a tinta no que há de contraditório, sem senso, quem sabe assim atingindo o efeito pretendido, o que requer submissão às constantes análises sobre as minhas posturas. A idéia assume o papel de um motor que faz as circunstâncias e situações.


Digo, ou seria melhor dizer que procuro, principalmente, por emoções que provocam não somente sentimentos puros, mas também sensação nova, intrigante, complexa, multifacetada, dilacerada, ambígua, e, ao mesmo tempo, tênue -, sem documentos, sem material que me ajude a recordar. Há na vida acontecimentos que me estão sobremodo presentes como se acabassem de acontecer; mas há lacunas e vácuos que só posso preencher com o auxílio de histórias tão estranhas quanto a lembrança que delas me ficou.


Deixara o pregador na varanda da casa, falando sozinho. Saíra logo, querendo dissimular, simular que não estivera na Fazenda dos Bois, olhando para todos os lados para se certificar de que ninguém o observava às espreitas, enfim ouvira a voz alta e em bom tom que fosse pentear macaco com toda categoria. Teve vontade de dizer “pentear asno”, mas ainda dera desconto, seria algo muito humilhante para pregador a idéia de pentear asno. Pentear macaco era-lhe aceitável porque, enfim, para Darwin dele advém os homens. Asno não lhe era: quem alguma vez dissera que o homem advém do asno?


Ademais, seria insulto e blasfêmia relacionar Incitatus com imbecil de grife. Usara macaco por ser expressão mais popular. Jamais ouvira alguém dizer “vá pentear asno...”. Percebendo o ridículo que cometera – até seria melhor relinchar “gafe” – mandando o outro pentear asno, completaria com “Vá pentear asno, seu macaco”. Seria até engraçado macaco penteando asno. Felizmente não há quem troque as bolas com a expressão. Pode ser que alguém o faça algum dia, mas pode ter a certeza de que isto jamais será esquecido. Fora a maior manifestação de presença de espírito: mandar alguém pentear asno.
Manoel Ferreira Neto
(OUTUBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 17 DE SETEMBRO DE 2018)


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