#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPITULO IV - PARTE III


Não demorara muito, Revaldo Leitão teve crise de epilepsia dentro de sala de aulas, tirou o maior sarro de um dos colegas por haver respondido a pergunta muitíssimo fácil de modo errado. O aluno, mais forte, experiente nas brigas de rua, à porta, as crianças ficaram assustadíssimas com a cena a que assistiam, estrebuchava e babava no chão. Levado às pressas ao hospital. Ficara uma semana sem freqüentar as aulas. Precisava restabelecer-se. Retornando às da escola, na saída, começou a discutir com Revaldo, era imbecil, ele também já tinha dado certas respostas que idiota morto reviraria na sepultura.


A turma da briga, as crianças ficavam eufóricas vendo alguém apanhar, instigaram. Revaldo tomou surra daquelas. Jamais teve capacidade de assumir que a sua prepotência e megalomania eram aparentes, sabia que nascera medíocre e mesquinho – como se diz: “Pau que nasce torto, morre torto”.


Chegara a casa, tendo outro ataque epiléptico, causado pela surra. O pai tocaiara Benedito Ribeiro para lhe dar um tiro. Felizmente, não aconteceu. O empregado do açougue ia levar Revaldo Leitão à escola. Se acontecesse de ver o aluno, dando-lhe tiro, acertando ou não, quem morreria mais tarde era ele próprio, Revaldo Leitão se tornaria arrimo de família.
Acontecera com Guido Neves. Não saberia explicar, não se lembra o que motivou discussão dentro de casa. À porta da escola, houve a briga entre Jaó Costa. Guido já estava apanhando. Outro aluno chegou e deu-lhe um chute na região dos rins. Aí é que apanhou de verdade. Não iria ficar daquele modo. Dizem que a vingança mais bem sucedida é aquela servida fria. Esperou terminar o semestre. Se houvesse dado a resposta de imediato, poderia ser suspenso da escola.


Havia terminado a última prova do semestre. Férias. Foi ouvir músicas à porta de loja de discos, frente ao Hotel Ipiranga. Estava em pé à porta, quando vira Jaó Costa descer de bicicleta, rumo ao correio. Saíra correndo e alcançou a bicicleta, puxando-a pela garupeira. Jaó Costa saíra correndo, conseguindo subir na rampa de uma casa. Guido o puxou pelas costas, dando surra bem dada, chute, murros. Alguém passara na rua e vira aquela surra, gritando: “Não bate mais, você vai acabar matando o rapazinho”. Correu. Puxou Guido Neves.


Pela primeira vez, senti vergonha de minha condição de asno velho, às portas da morte, quem sabe até perdendo a visão. Fosse este um dos sintomas da proximidade da morte, primeiro a perda de visão, daí à morte são poucos os passos. Senti vergonha de os meus olhos não terem visto semelhante coisa, algo com muito trabalho reconhecer-se-ia a forma de homem.


Assim morrera a mãe de Ratto Neves. Contraíra câncer estomacal. Três anos de muitos sofrimentos e dores, o filho podia ajudá-la, fez o que pôde. Antes de morrer, tivera outro problema nas vistas, já havia se submetido a cirurgia de catarata, ficando completamente cega. Fomá Fomitch estava com ano e meio. Levou o filho para ver a mãe no hospital, só por alguns segundos. Ratto Neves tomou a mão de ambos e uniu-as. Reconheceu o netinho. Fora a última vez que Fomá Fomitch a viu. Não guarda recordações dela.


Abaixei a cabeça. Se houvesse alguém que pudesse entender os trejeitos do beiço, podendo assim saber que precisava com urgência de conhecer quais são os sintomas da proximidade da morte, se a cegueira é um deles. Jamais ouvi dizer que o asno fique cego antes de morrer. Podia até ser. Grande número dos cientistas, filósofos, escritores, personalidades, artistas, ficaram cegos de tanto ler. Fiquei cego de tanto pensar. Não pode ser. Deus não iria legar-me dons tão estritamente humanos, do intelecto e dos problemas visuais decorrentes dele. Quem sabe não estivesse ficando insano? Também a insanidade não seja indício da morte próxima. Quem sabe a insanidade habite poeticamente a alma humana!? Quem sabe seja da natureza humana? Se os homens e asnos mergulhassem profundo em si mesmos e conhecessem a insanidade: “Graças a Deus, felizmente sou quem sou: asno”, diriam os homens. “Graças a Deus, felizmente sou quem sou: anti-asno par excellence”, diriam os asnos, parodiando-me, libertando-se de suas carroças, andando tranqüilamente pelas ruas de Lágrima dos Insanos. Ouvi dizer, mas não me lembra o país onde vacas e bois andam pelas ruas no meio dos transeuntes.


Questões assim se mostravam nítidas no meu instinto. Se houvesse quem, iria ser necessário muito jeito para perguntar: “Você por acaso sabe se a cegueira é sintoma da morte do asno próxima”. Não tem graça alguma. Dizer, por exemplo: “Não sou asno para saber isto?”. Talvez a mofa esteja em haver alguém que se especialize em asnos, reconhecer-lhe os instintos, sensibilidade. De qualquer maneira que se pense, só o próprio poderia; o especialista tinha de mergulhar muito fundo, correria o risco de se metamorfosear. De doenças, sim, são entendidos. Conforme os sentimentos de Ratto Neto, chamaria com a maior urgência veterinário para tratar de mim.


São os humanos que, de acordo com o conhecimento que adquiriram seja naturalmente, seja academicamente, o primeiro pelas faculdades sensíveis, percepção, intuição, imaginação, reflexão, e tudo o mais que se queira incluir, isto não é uma lista telefônica, o segundo através de pesquisa de laboratório... são os que podem cuidar da saúde humana, dos animais, e são os que escolhem o grau de óculos que todos necessitam usar. Mostrar os beiços para alguém - tenho necessidade de saber se o nublamento das vistas é princípio de cegueira, se a cegueira é sinal de morte próxima.


(#RIODEJANEIRO#, 10 DE SETEMBRO DE 2018)


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