#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO X - PARTE II


Durante a conversa delas, Ratto Neves não abriu a boca. Silêncio sepulcral. Contaram tantas coisas esdrúxulas da vida alheia que não podia nem abrir a boca que haveria réplica: “Escuta só o resto... É do balacobaco”. Mas por todo o tempo que estiveram na Fazenda dos Ímpios não trocara palavra. Coisa mais ridícula da parte dele! Não conversar com as pessoas. Tinha aprendido com Fomá Fomitch? Ele é que se recusou a comer a comida árabe dos amigos.


Não se pode entender isto como espelho de todas as conversas dos presentes ao aniversário de Teóforo Ímpio; havia mulheres discutindo o verdadeiro papel delas na sociedade lacrimense dos insanos, as posturas religiosas e cristãs da comunidade. Havia conversas de alto nível na Fazenda dos Ímpios.


- Você foi criado por asnos ou por gente, Ratto Neves.


- Não tinha nada para dizer. Fiquei calado. Disse a mim mesmo o que estava desejando dizer a todos os homens da face da terra.


- Isto é falta de educação.


Não era por falta de educação que Ragozina estava enfurecida. A razão era asnicamente outra.


- Lembra-se que Hermínia cochichou no meu ouvido. Não preciso nem perguntar. Já começo afirmando, pois não tirou os olhos de mim como se pudesse dizer-lhe através do olhar o que estava sendo segredado. Disse-me Hermínia que você já havia se tornado asno, olha, olha, e só Deus sabe o que está pensando. Sabe o que isso significa, Ratto Neves? Estou casada com asno. Com a hospedagem de Incitatus em nossas terras, as imaginações vão criar coisas: altas horas da madrugada, fujo de nossa alcova, indo dormir com ele. As pessoas não gostam de alguém que não conversa perto delas por acharem que estão sendo criticadas, não há qualquer movimento que não passe pelo crivo da crítica. Isso é desagradável.


- Ragozina, deixe de ser exagerada, mulher... Quem vai imaginar tal disparate? Deixar de dormir comigo para dormir com Incitatus? Ninguém vai imaginar. Pode ficar tranqüila – imagine-se Ragozina nas patas de Incitatus, ele beijando-lhe seguidas vezes a testa, cabelos.


Estava ela com a sombrinha em mão. Faça chuva ou faça sol sai com ela aberta. Vestia vestido solto, roxo-cheguei, brincos grandes, argolas, espécie de leque dependurado, cabelos presos à “ninho de guaxo”, sapatos de bico fino, amarelos, saltinho de agulha pequeno. Até eu me assustei com aquilo na frente. Estava vendo fantasma em época de carnaval? Saiu dando de sombrinha nas costas de Ratto Neves por causa da atitude de silêncio sepulcral na festa de aniversário em casa dos Ímpios.


Se Ratto Neves pudesse entender os pensamentos, o que iria pensar? Com efeito, diria que sou perfeitamente destrambelhado. O que teria haver a perda de chaves com ociosidade que não é flagelo social menor do que a solidão? Teria de gastar ásnica lábia para lhe persuadir de que tem tudo sentido, serve perfeitamente. Até explicar com todos os detalhes...


Esta palavra “detalhes”. Que ridículo passara na infância! Época de Dia das Mães, a professora já havia pedido que os alunos escrevessem mensagem, o porque de amarem as mães. Se não fosse esperto, tomaria surra. Se escrevesse o que não devia, em verdade... Escrevera que amava sua mãe por ela limpar o buxo de boi para as refeições com todo zelo e dedicação, as mãos sujas de merda, o cheiro na casa inteira; por ela lavar roupas no Rio das Pulgas, enquanto desfia o terço de todos os fracassos, frustrações, a pobreza, às vezes sem condições de ajudar alguém, emprestava dinheiro nas horas difíceis, não recebia; por ela pregar botões na roupa, fazer barra da calça, remendar algumas que podiam muito bem ser usadas por mais tempo ainda. Dizia isto em detalhes na composição. Houve verdadeiros poemas. Pais pediram aos poetas para escrever mensagem, fosse em nível do entendimento das crianças, usando a linguagem delas.


Alguns chegaram a pagar pouca quantia, café com bolacha na padaria, para escrever a mensagem. Foi oportunidade de saberem o que é isto de se alimentar bem com o fruto das letras. Até mesmo as próprias mães escreveram para as crianças. Só duas ou três redações foram escritas pelos alunos mesmos. Uma delas era a de Ratto Neves, embora tenha sido coisa muito vulgar, pareceu que Ratto Neves estava debulhando o terço de ladainhas das dificuldades da vida e morte num lugar pequeno. Não houve quem não caísse na gargalhada. As crianças acharam graça por os motivos do amor serem apenas lavar, passar, cozinhar, costurar, limpar buxos. Algumas crianças susceptíveis a imaginações sentiram o cheiro da coisa, passando o dedo no nariz. Por que tinha de falar de merda numa composição sobre o Dia das Mães? Isso é que pareceu estranho à criançada.
Manoel Ferreira Neto
(OUTUBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 23 DE SETEMBRO DE 2018)


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