#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO II - PARTE I


Primeira manhã de minha chegada à Fazenda dos Bois. Saíra da caverna, vendo alguém, homem, encostado à grade de madeira da varanda de sua fazenda. Havia terminado de tomar o café da manhã, esperaria um pouco para ir até à fazenda de amigos, alguns negócios a serem resolvidos.


Olhou-me. Percebeu que havia asno diferente em suas terras; com certeza, fugira de algum lugar das redondezas. Achou-me diferente, não dera atenção a isto. Lembrou-se da senhora para quem levara as malas desde a rodoviária à sua residência, sendo convidado para almoçar. Fora bastante afetiva com ele, estava com fome. Não se perguntou o porquê de haver lembrado disto tão logo me visto, não tinha qualquer relação, a senhora faz parte de um passado longínquo, eu estou no presente, bem asnado na sua terra.


Ratto Neves é homem íntegro, cumpridor dos deveres, bom pai e marido. Fornece leite para Lágrima dos Insanos, pequena cidade do interior, não mais que vinte e cinco mil habitantes, do lado direito do Rio das Pulgas, Itajaí, do lado esquerdo, Lágrima dos Insanos. As mães que, porventura, dessem a luz na ponte que separa as cidades, sendo de Lágrimas dos Insanos, registra o filho no cartório desta; o mesmo acontecendo com Itajaí.


Às vezes, enquanto fuma, olha o pasto cheio de gado, olha-me trigueiro: “Não sei, este asno tem alguma coisa de diferente... Como é que veio parar nestas terras? Parece que pensa? É asno pensador. Gosto muito dele”. Não só gosta, não me deixa trabalhar, enfim já estou velho, a qualquer momento caio com as pernas para o ar, barriga para cima. Assim quero morrer. Ri de tudo e de todos, inclusive de mim próprio por estar com idéia fixa de ser asno pensador. Irá enterrar-me.


Não teria a mínima paciência com as discussões de cátedras, as explanações deste ou daquele assunto, as explicações dos brios e calafrios. Não teria. Não tem hora que agradeço a Deus por não ter o dom da fala, agradeço sempre. Iriam requisitar-me muito para saber disto e daquilo, do amor e da compaixão, dor e sofrimento. Penso de mim para mim. Já não é o suficiente?


Por que espero que alguém me enterre? Quem sabe a razão seja de haver sido ridicularizado desde a eternidade, ninguém gostar de mim, referir-se a mim como o animal mais tapado e ridículo de todo o reino animal!? Esperava que Lúcio Ferreira o fizesse, imaginei que mandasse esculpir homenagem: “Fui sempre generoso com o meu asno”. Já espero que Ratto Neves o faça. Acredito que Lúcio Ferreira não o fizesse. Gastar das economias com pedaço de terra, mausoléu, epitáfio. Data de nascimento não teria, mas a da morte.


Sei lá quanto tempo depois, havendo historiador interessado na história, havia ouvido bastante falar de mim, resolvera escrevê-la, resgatar os valores que foram sendo perdidos ao longo do tempo e das situações humanas, ter de deixar a vida em suspenso devido à data e local de nascimento; melhor seria dizer, então, para afastar a sensação de trabalho mal terminado, que nascera no mundo, por isto pôde vivenciar e experienciar o que é isto. Acredito que Ratto Neves o fará com todas as pompas. Não precisará comprar terra, só mesmo a construção do mausoléu, o epitáfio. Ninharia para ele.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 08 DE SETEMBRO DE 2018)


Comentários