#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO IX - PARTE II


A caminho Ratto Neves teve a idéia de mandar fazer carroça, conhecia ótimo carroceiro, com alguma lábia extra conseguiria preço camarada. Colocar-me-ia na carroça. Teria de dar dinheiro extra ao vaqueiro para levar Fomá Fomitch até a casa da professora particular. Quem sabe aos domingos não pudessem ele e Ragozina dar passeio pelo campo de carroça. Fazerem pic-nic nalgum lugar mais distante da fazenda. Quanta vez sente pena dela: trabalha dia inteiro, lavando, passando, dando restos de comida aos porcos, fazendo biscoitos; não tem minuto de folga. Estava precisando de divertimento. Deitariam à sombra de alguma árvore, contariam histórias, diriam sobre os sentimentos mais íntimos que alimentam um pelo outro, discutiriam sobre as coisas da vida e morte, lembrar-se-iam de quando os filhos nasceram, as preocupações, sonhos.


- Ragozina, quem sabe no trajeto de nossa fazenda até lá Fomá Fomitch não tenha alguma revelação divina, podendo sentir na carne e nos ossos o que passa de pensamento e idéias na “cachola” do asno. Imagino que o Português seja elevado; isto pela imponência de olhar as pessoas, olhar de soslaio. Asno vesgo. Nasceu lá com problema de vesguice. De repente, sem mesmo saber o que está acontecendo, Fomá Fomitch não venha aprender a língua. Aprendera com o asno. Claro, a professora preparara os caminhos. O asno não terá tantas dificuldades assim. E sabe: esta idéia vem a calhar. Gasolina está cada dia ficando mais cara. Estou precisando de deixar do hábito de só sair de carro. Até para ir à vendinha do Gustavo Capanema que não fica a duzentos metros de distância tenho de ir de carro. Estou até pensando em ir até ao centro da cidade resolver negócios montado no Relâmpago da Chapada. Você sabia porque os habitantes de cidades grandes estão andando de guarda-chuva e para-raio? Não. Para evitar seqüestros relâmpagos. Ih...ih...ih... Vejo tantos animais amarrados nos pedaços de ferro espalhados aqui e ali, havendo três ou quatro à porta da Prefeitura. O que você acha da idéia? Poderíamos aos domingos ir passear na carroça.


Coisas esquisitíssimas acontecem aqui na Fazenda dos Bois. Relâmpago da Chapada é o seu cavalo de estimação, gasta soma alta com veterinários, rações. Há muita inveja, muitos interesses. O que ele fez? Para mim, atitude extremamente sem senso, algo fútil e ridículo. Fez testamento, passando Relâmpago da Chapada para o filho após sua morte. O homem vive muito mais que o cavalo, o asno, juntos. Obviamente o cavalo vai primeiro que ele. Depois da morte do cavalo, o que o filho vai receber de herança? Os ossos? As cinzas? Pensa a mulher que ele estava desejando morrer. Andava angustiado e deprimido naquela época.


- E criança gosta muito destas aventuras. Ratto Neves, você foi iluminado. Esta idéia é excelente. Só não sei se Incitatus vai mesmo conseguir através de transmissão de pensamentos ensinar o nosso filho. Ah, rezo tanto, pedindo a Deus que ampare o nosso filho, não pode continuar sendo o imbecil da língua. É assim que é chamado pelos colegas, e por toda a cidade. Há quem não sabe mais o nome. Mande sim fazer a carroça. Se não posso passear numa carruagem, de carroça é que não vou. Deixe de lado o sentimentalismo ridículo. Ratto Neves, não somos mais adolescentes ingênuos; somos pessoas marcadas com o ferro da vida.


Até a carroça pronta ainda teria de levar a mulher de carro para os encontros, compras e tudo o mais que fazia na cidade. Conhecida por todos como a vedete de Lágrima dos Insanos, as roupas mais estranhas e esquisitas. Veste-se com cores e modelos tão escalabrosos que nalguns grupos, passando à porta, nas esquinas, logo é reconhecida como a “Bonequinha de Ratto Neves”.


Algumas crianças inocentes, não compreendendo a extensão do epíteto que Ragozina recebeu da comunidade, saindo das escolas costumam dizer: “Imagine só Ratto Neves brincando de bonequinha com Ragozina. Fazendo guisado para o aniversário dela”. Ninguém era capaz de “passar sabão” nelas, lavar-lhes a alma por ridicularizarem a vida alheia, por brincarem com coisas sérias e específicas. Ninguém tinha coragem. Crianças pobres... era a diversão delas.
Levou-a. Parara o carro num estacionamento próximo à Prefeitura, seguindo-a até à casa de Helena Vergalho. Logicamente este não é o sobrenome, mas epíteto que recebera por lhe ser o prato preferido vergalho de boi, não há semana que não encomende ao açougueiro. Ainda hoje há quem diga que, se faltava em casa, só podia encontrar no boi, via açougueiro. A caminho Ragozina insistira bastante para que entrasse na igreja, Fomá Fomitch estava tendo sangramento no lábio superior. Não sentiu dor alguma para dizer que se machucara com osso de costela, com garfo. Não tinha jeito. Não gostava de usar a faca para cortar. Segurava o pedaço de carne com o dente, enfiava o garfo rasgando. Pediria a Deus para curar.
Manoel Ferreira Neto
(NOVEMBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 19 DE SETEMBRO DE 2018)


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