#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO IX - PARTE I


Ragozina Leandro Neves estava sentada à mesa da cozinha. Estava com a Bíblia aberta, lia o Ato dos Apóstolos. Religiosa aos extremos. Reza dois terços à noite antes de dormir; pela manhã, reza várias orações. Freqüenta assiduamente a missa das sete, encontro de grupos de oração. Pede a Deus que ilumine o marido, sabe perfeitamente que a vergonha que lhe acompanhou por toda a vida fá-lo sofrer e muito. Se não houver qualquer modo da vergonha ser extinta, que ele aprenda a rir dela até se perder nas curvas de estradas tortuosas e sinuosas, quando lhe descem lágrimas quentes e densas.


- Ratto Neves, leia para mim este Ato.


- Agora, Ragozina? Acabei de mandar o pregador pentear macaco com as ladainhas. Cada vez mais acredito que os pregadores fazem o papel de Mefistófeles, conquistar as almas. Disse-lhe que era católico. Católico praticante não porque não freqüento a igreja aos domingos, não tenho qualquer participação junto à igreja. Só muito poucas vezes ajoelhei-me e rezei Ave-Maria e Pai Nosso. Mas não deixo de mandar a contribuição todos os meses. Sacos de milho para as galinhas que alguns da comunidade criam para botarem ovos, dentre outras coisas claro. Contudo, à noite, antes de dormir, faço as orações. Você me pede para ler o início do Ato dos Apóstolos.


Na infância, algumas vezes Josefina-tomba-homem levava os filhos à missa das seis horas no domingo no Santuário de São Paulo Rütten. Numa das três entradas, frente ao centro da cidade – a outra igreja, igreja de São Antônio da Estrada, o fundo dela é de frente para o centro, o paráclito e a Cruz de Cristo estão de costas para o centro - há a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, nela está crucificado. Abaixo dos pés de Cristo, há mostruário com os cravos – dizem que são os originais, os com que Jesus Cristo fora crucificado. Ratto Neves quis algumas vezes tocar no vidro do mostruário, dizendo-lhe a mãe: “Deus castiga quem põe a mão aí”. À noite, tinha pesadelos com o cravo, mostruário, cruz de Cristo. Adolescente, a mãe não podia levá-lo à missa, não lhe dizia para ir, pedir a Deus para abençoar a família. Perdera o incentivo de ir à missa por a mãe dizer que quem tocasse no mostruário dos cravos seria castigado por Deus.
- Você lê de modo bem diferente – o diferente é que procurava pronunciar as palavras corretamente, senti-las na ponta da língua, acompanhadas de musicalidade – Você sente o que lê. Não custa nada. Se houvesse continuado os estudos, Ratto Neves, com certeza seria ótimo professor. Mas teve de trabalhar para ajudar sua mãe, sobreviver. Faltou-lhe os estudos, mas não lhe faltou a condição financeira privilegiada, não lhe faltou espiritualidade com a vida, a esperança.


Aceitou ler três ou quatro páginas. Não tropeçou nalguma palavra um segundo sequer, lera de fôlego só. Já ouvira leitores dizerem em Atenas Atéia haver certos escritores que não conseguem criar linguagem que não os faça tropeçar – se calçados, poderiam jogar os sapatos fora de tanto tropeção; se descalços, os dedos estariam inchados. De tanto tropeçarem preferem abandonar a leitura. Há outros que não, lê-se-lhes as palavras como se estivessem tomando bebida muitíssimo agradável. Talvez estes tenham se inspirado na Bíblia Sagrada.


- Interessante, há sim linguagem poética, musicalidade na Bíblia.


- Já ouvi o padre dizendo sobre isso. Se os fiéis pudessem sentir profundo as palavras da Bíblia por sentirem as palavras sendo pronunciadas nos lábios, os trejeitos dos lábios... Não. Lêem a Bíblia sem qualquer sentimento. É de se imaginar que não estão com o espírito bíblico, mas com o espírito de bulas de remédio.


Ragozina estava esperando o horário de ir à reunião de moradores para discutir os problemas inúmeros na comunidade lacrimense dos insanos. Teria ele de levá-la de carro, embora a distância não fosse tão grande. Caminhada tranqüila e lenta, caminhada de quem anda sem rumo e destino, espairecendo as idéias; enfim, são tantos os problemas quotidianos.
Manoel Ferreira Neto
(NOVEMBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 19 DE SETEMBRO DE 2018)


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