#ALDEIA DE LAGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO IV - PARTE II


Quando abri os olhos, vi algo sentado numa pedra debaixo de abacateiro. Sentia os olhos nublados. Não podia usar qualquer das patas dianteiras, como os homens fazem nalgumas circunstâncias e situações de suas vidas, para desanuviar as vistas. Assim é que começa a cerimônia do adeus de asno, as vistas começam a ficar nubladas, não enxergando palmo à frente do focinho. Era esperar que as vistas retornassem ao normal.


Era algo onde com muito trabalho reconhecer-se-ia a forma de homem, algo inexprimível. Reconheceria a cara-de-rato de Ratto Neves. Se à distância, reconheceria ser ele devido a puxar a perna esquerda.


Tomara talho. Contou para a mulher que a mãe houvera lhe mandado buscar o buxo no açougue. O açougueiro tinha matado no mato. Houve qualquer discussão entre Ratto Neves e o filho do açougueiro. Não se lembra da razão da discussão. Coisas de criança. Revaldo Leitão – apelido dado por ser gordo, cara-de-leitão “vira-lata” - dissera sem quê nem porquê a mãe era prostituta. Outra coisa senão murro bem dado nas fuças. Caiu. Debaixo do balcão, estava sentado no caixa encostado nele, encontrou faca. Dera golpe certeiro. Abrira talho enorme na perna, cortando-lhe um dos nervos, tornando-se coxo.


Com medo de chegar a casa, apanhar por haver brigado na rua, dissera à mãe que havia valeta na rua, descuidou-se, caindo, na queda cortou-se num arame farpado na terra. Antes de chegar a casa, olhou a valeta, felizmente a mentira que iria pregar, colaria mui bien. Como fora pensar na falta de arame, talho daqueles tinha de ter motivo viável, razoável. Josefina-do-buxo fora até ao lugar para averiguar se estava dizendo a verdade, se havia mesmo arame farpado. Constava sim. Era verdade. Jamais soubera a verdade da coisa.


Estavam só eles dois no açougue. Era a palavra de um contra a do outro. Só Revaldo Leitão sabe disto, pois não dissera nada à família a respeito do ocorrido. Fora levado ao pronto socorro, dado pontos. Para o médico, Ratto Neves disse a verdade.


- Este corte não é de arame farpado... É de faca...


- Doutor, não diga para a minha mãe. Isso vai dar confusão e das bravas. O senhor não sabe de que mamãe é capaz. Por favor, não diga nada... Desculpe-me, doutor, mas quando não a chamam de Josefina-do-buxo, chamam de Josefina-tomba-homem.
- Tudo bem... Não digo... E por que foi isto?


- O filho do açougueiro chamou a mamãe de prostituta, dei um murro nas fuças dele. Não sei doutor, isto acontece comigo. Acontece algo que não sei explicar. Este arame, como é que foi aparecer dentro da terra? Os trabalhadores tinham tirado, podia machucar um deles. Não. Estava lá. Apareceu do nada. Assim pude evitar tragédia. Mamãe era capaz de estripar o Revaldo Leitão. Não sei se é verdade. Aconteceu antes de eu nascer. Mamãe estava andando armada, trinta e oito dentro de sua bolsa de couro. Passava na porta do Bar do Boa, quando alguém dirigiu uma gracinha “Isto é que é trubufu”. O Bar do Boa vivia cheio de jogadores. Mamãe tirou o revólver dando tiro no meio de suas pernas, pegou no pé esquerdo. Fora presa por três dias.


O médico conhecia algumas histórias do lugar. Havia sim pessoas muito insensíveis, violentas. Numa feira de domingo, na Praça dos Amores, assim chamada por muitos casais haverem se conhecido nela, apaixonaram-se, casaram-se, tiveram filhos – e sempre quando podem ficam sentados ao banco, lembrando dos bons velhos tempos, os filhos brincando de pegador, esconde-esconde -, um cachorro entrou na barraca de açougueiro, roubando manta de carne salgada. Vendo, abrira a barriga do animal com facada. O dono do cachorro, sendo já seu inimigo por razões inúmeras, entrou armado na barraca e foi atirando. Dois tiros na região do rim. Ficara sem ele. Anos mais tarde, a mulher do estripador-de-cachorro, não suportando tantos sofrimentos com verdadeiras surras, suicidou-se; o filho, que não mais residia em Lágrima dos Insanos, e sim em Itabira, soube do suicídio da mãe, colocando fuzil debaixo do queixo, tirando a catraca da arma, amarrando o dedo do pé direito num cordão e no gatilho, apertando, os miolos foram parar no teto.


- Digo para o senhor: muitas vezes as coisas me ajudam. Posso me livrar de apanhar e muito. Por isto, estou pedindo para não contar para mamãe.


- Já disse, não vou dar com a língua nos dentes... Ratto Neves, isto é caso de polícia. A família do rapaz pode ser responsabilizada. Mas se é assim não vou dizer. Vai apanhar de qualquer modo.


- Obrigado, doutor...


(#RIODEJANEIRO#, 10 DE SETEMBRO DE 2018)


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