#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO IX - PARTE III


Chegara o pregador, não tendo mais retornado ao escritório. Ragozina lhe chamara para ir levá-la para a reunião. Não podia atrasar-se segundo sequer. É desagradável ficar esperando que todos cheguem para começar. Durante todo o trajeto perguntou-se o porquê da chave haver caído da mão e não ter observado, nem sentido a falta do peso delas. Logo depois o pregador chegara e começara a falar na seita, tentando convencer, persuadir que devesse mudar. Qual a relação entre a chave, chegada do pregador, pedido da mulher que lesse o Ato dos Apóstolos, a passada na igreja? Não vislumbrava uma sequer, ficando até preocupado, a inteligência estaria a faltar-lhe?


Descansava na rede, presente de açougueiro de Várzea da Palma, trouxera do Rio Grande do Sul, descansando, enquanto Ragozina fazia biscoito de queijo para o lanche da tarde, após a reunião. Continuava a se perguntar qual a relação. Não conseguia se concentrar, havia algo de estranho, teve sensações que lhe deixaram intrigado. O que estaria acontecendo?


Passara vergonha com Fomá Fomitch. O filho não podia chegar à casa da madrinha de batismo que perguntava se não tinha biscoito de queijo duro. Adora roer pão de queijo duro. Fosse só na casa da madrinha, vá lá, sabia da preferência do afilhado. Mas não... Em qualquer casa que chegasse logo a pergunta sobre pães de queijo duros. Deu-lhe sabão daqueles. Logo de queijo? Quem gosta de queijo é rato. O pai engolia a seco aquilo, sem pensar que o filho estivesse jogando indireta, enfim a cara é igualzinha a de rato? Nada disso. Sentia vergonha. Para ele, era quando as pessoas a quem Fomá Fomitch pedia os pães de queijo duro tinham oportunidade pujante de o observar.


Pastava eu frente à varanda a uns cento e cinqüenta metros, uma plantação de eucaliptos. Olhava-me trigueiro. Teve sensação de que todas aquelas coisas estavam sendo pensadas como pedido de aconselhamento meu. Será que poderia entender os pensamentos dele? Sabia que o asno podia entender tudo; revelam-se-lhe na fonte, fresquinhos, viçosos, não tendo qualquer argumento para contradizer, isto não pensei, em verdade, estava pensando outra coisa bem diferente. Como é que Incitatus chegara a mergulhar fundo na alma humana, conhecendo-lhes as dores e sofrimentos a corroer-lhe o íntimo?


Fosse eu a fazer a pergunta, perguntaria o que me fizera ser tão cínico e irônico com a natureza humana a partir das mazelas e pitis de todos os dias, entra e sai século, milênio. Seria a pergunta mais adequada. Aliás, pudesse articular palavras, agradecer-lhe-ia a deixa para que pudesse esclarecer mais e mais as intenções, desejos, vontades, quando fico todo o tempo a prestar atenção firme e segura nas atitudes dos homens, segredos e mistérios que trazem no coração, dores e sofrimentos que trazem na alma, e as posturas e condutas quando se diz respeito a exercer o mais óbvio entre os humanos da raça, ou seja, a relação humana.


O que iria responder? Quem sabe não teria conselhos que, se seguidos, os resultados são bastante satisfatórios? Será que respondesse estava precisando refletir sobre algumas passagens da vida; se o fizesse, as chaves abririam outras portas.


Dir-se-ia sim na minha ásnica opinião, a ociosidade não é flagelo social menor do que a solidão. Nada diminui tanto o espírito, nada engendra tantas ninharias perniciosas, intrigas, aborrecimentos, mentiras do que viverem pessoas eternamente fechadas umas defronte das outras numa sala, reduzidas, como único ofício, à necessidade de tagarelar constantemente.
Manoel Ferreira Neto
(NOVEMBRO DE 2005)


#RIODEJANEIRO#, 19 DE SETEMBRO DE 2018)


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