#ALDEIA DE LÁGRIMAS DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO I - PARTE III


A empatia da senhora fora inesperada. Convidou-lhe para almoçar com ela, o trivial, se não se importasse. A empregada cozinha razoavelmente bem, há quando coloca o mínimo de sal, a comida fica aquela “xangana”. Adora comida bem quentinha, saborosa, viemos ao mundo para viver, comer, saciar a sede, o resto é silêncio.


Olhava Ratto Neves a senhora, não podia compreender e entender o porquê, não considerando a alegria e felicidade por ser avó, a netinha tinha nascido, mas soltar a língua sem dó e piedade, dor de ouvido não é muito comum. Viver, comer, saciar a fome, comida quentinha... Não parecia que estava discriminando; se o fosse, iria à frente, Ratto Neves atrás empurrando o carrinho. Na rodoviária entabulou conversa com a maior espontaneidade. Estando ou sendo feliz, todo o resto é futilidade? Só não tinha com quem conversar até chegar a casa, ninguém a esperava, alguns a cumprimentaram. O peito arfava, comum que tivesse de exteriorizar, extravasar, deixar sentimentos fluírem, água límpida no rio sem margem.


- Senhora, muito obrigado... Vai chegar outro ônibus na rodoviária ao meio dia e quinze, preciso fazer outras corridas com o carrinho. A senhora sabe: sou rapazinho pobre, assim ganho a vida, posso ajudar mamãe. Falta de educação comer depressa, sair apressado, é visita. Fica até parecendo que queria só comer, o “papa-de-graça”. Por haver chegado segundos, deixei de ganhar de um freguês cem cruzeiros. O meu colega ganhou, por carregar duas malas, muito pesadas em verdade. A senhora entende estas coisas. Vai querer conversar, servindo o café. Fico atrasado. Perderei a corrida. De outra vez, não tendo ônibus que vai chegar, almoço junto com a senhora. A comida deve ser boa, senhora. É porque está acostumada. Se pudesse, tenho certeza de que gostava.


A senhora observava a ladainha de Ratto Neves, estava dizendo tudo aquilo por querer aceitar o almoço. Está esperando completar a quantia para comprar os retalhos de carne, pacote de açúcar e feijão. Só depois disso, com o restante pagará o “prato feito”. Estava com vergonha de aceitar; em verdade, estava com fome. Quem fala tanto após receber convite para almoçar? Agradece. Sim ou não. Senso, digamos assim.


Desde que o vira aproximando-se dela para oferecer levar as malas, sentiu que o iria convidar para o almoço. Difícil ver rapazinho com as roupas sujas, rasgadas, pés descalços, passando muitas dificuldades na vida. Tem pena é destes que trabalham, lutam pela vida, fazendo isto ou aquilo, podendo sobreviver, ajudando a família. Dos que só pedem, ela não dá esmola. Se ela houvesse vivido nesta miséria toda, agora que é vovó sentiria mais as dificuldades, vendo o netinho sofrendo. Praticaria esta ação, agradecendo a Deus por tudo, pelo netinho tão lindo, vivo, por seus dons e esperanças, tudo sonhos atrás de outros sonhos, atrás de outros sonhos...


Lembrou-se de outro rapazinho, dez anos atrás, quando era professora de História. Conhecera um aluno muito pobre, miserável, inteligente, sensível... Chamava-o para estudar em sua casa, iria ensinar-lhe História. Apaixonou-se. Tinha duas filhas. Vivia com o marido, mas não havia amor entre eles. Não podia entregar-se assim, rapazinho de quatorze anos. Houve desavença entre eles, embora não se recorde o que motivara. Separaram-se. Vendo Ratto Neves revelou-se-lhe a lembrança de Dayrel Pimenta.
- Não. Você vai almoçar comigo.


- Obrigado, senhora. Vou ficar satisfeito. A senhora vai desculpar, isso é verdade, como muito. Fazer corrida cansa, gasta energia. Se a senhora não se importar com o que mamãe chama de gula, muitas vezes até dizendo: “Mais fácil tratar de burro a capim do que você só de arroz e feijão”.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 08 DE SETEMBRO DE 2018)


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