#SENÁCULO DE PANGARÉS# - II TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO XII - ESTRÍDULOS SONS DE NAVALHAS - V PARTE
Não seria isto que está em discussão, a minha vida, pouco me importando
se o que é dito e escrito sobre a História desta comunidade é de direito e
merecimento, se não é, se há inúmeras lendas, preconceitos, mitos, a verdade
está ainda por ser dita, esclarecida, ocasionando a falta de identidade, de
liberdade.
Sou quem não sou e não sou quem sou, quem sabe podendo traduzir estas
palavras por “tudo o que trago em mim dentro é aparência”, assim não tendo mais
respostas a dar a ninguém, condenado a ouvir sempre estas palavras em quaisquer
situações. O que estaria esperando? Devo, então, procurar modos de superar os
problemas inúmeros ao invés de estar dizendo a comunidade ser ainda escrava, as
algemas estão ainda mais presentes.
Numa moeda não há apenas duas faces, há inúmeras, quem sabe abrindo
assim possibilidade de apresentar uma flexibilidade das palavras, deixando aos
outros a interpretação, o que está realmente em discussão.
Fazia a caminhada triste e desconsolado. Não era a falta do relógio que
me pungia sobremodo, acostumei-me a trazê-lo no braço desde toda a eternidade.
De madrugada, tirei-o, pois que, em abraçando a esposa, iria machuca-la. Aliás,
nunca deixa ela de comentar o seu não entendimento de porque dormir de relógio,
nu e de relógio, estranho isto. Enfiei-o de por baixo do colchão de mola.
O que me pungia eram algumas lembranças que surgiram no espírito, após
ter passado na porta de uma barbearia, estando o barbeiro agachado na calçada
afiando a navalha, o som estrídulo penetrou-me por inteiro, indo fixar-se no
mais íntimo de mim, suscitando memórias e lembranças.
A janela aberta do quarto de dormir deixava entrar o vento de inverno,
que sacudia frouxamente as cortinas, e eu ficava a olhar para as cortinas, do
outro lado da rua um imenso pé de manga com uma fresta, abrindo imagens para o
horizonte.
Bispava, ao longe, uma vida nova, repleta de realizações, alegrias,
contentamentos, um mundo criado por mim, através de meu esforço e dedicação,
entrega e contemplação, um mundo meu, em que não havia nem casamento, nem
moral, nem pessoas indesejáveis e inconsequentes, nem nenhum outro liame, que
me tolhesse a expansão dos mais profundos desejos e vontades, a abertura dos
mais fundos sonhos e utopias.
A idéia disto embriagava-me; aliás, estando sempre com o aparelho de som
ligado, dirigia-me a ele, escolhendo uma música muito querida, que seria
responsável por uma alegria mais acentuada, causando-me quase lágrimas aos
olhos. Eliminadas, assim, as angústias e tristezas, com a presença da música,
dos sonhos que me tomavam por inteiro, esquecia-me de todo. Esquecia-me de que
era o canto em que costumava repousar de todas as sensações más, de todos os
augúrios, de todos os sentimentos tristes, de tudo o que era enfadonho ou até
doloroso de apenas imaginar.
Por pouco tempo, devo isto ressaltar, a menos que não tenha o desejo
incólume de ser autêntico comigo mesmo, e isto é uma virtude que deve ser
identificada a todo instante, pois que em nada havia uma breve lembrança de
vida nova, repleta de realizações, alegrias, contentamentos. Seguia a vida aos
trancos e barrancos, como se é costume dizer de modo vulgar, angústias
incrustadas no peito e, não por inércia ou preguiça, medo ou hesitação de dar
outro rumo na existência, mas que não surgia nenhuma possibilidade de uma
transformação, eu já cria que seria assim por todo o sempre.
Continuando a caminhada, agora já podendo dizer que não apenas bispo, ao
longe, uma vida nova, mas me esforcei muito para a construir, em pouco tempo,
um ano e meio, consegui já alguns reconhecimentos e saudações, perguntava-me o
porque de não conseguir libertar-me das situações e circunstâncias tristes de
minha existência anterior.
Tinha necessidade de me esquecer do passado, viver unicamente o
presente, criar novas possibilidades de intensificar e realizar a vida, as
conquistas.
O sentido desta dor que me perpassava a alma, não conseguindo
desvencilhar-me das desolações, tristezas, angústias, não é muito preciso, mas
à falta de um outro mais próprio, tomo a liberdade de dizer que me sentia, com
efeito, um escrófula da vida, um andrajo do passado.
Talvez por uma fuga de estar a encarar-me frente a frente, comecei de
pensar que tudo isto, todas as lembranças do vivido, está relacionado com o
fato de ser véspera de meu quadragésimo-sexto ano, isto é, não passa do inferno
astral, que acontece sempre antes, na véspera, do aniversário. E isto, tenho a
consciência, sempre aconteceu. Todos os anos, próximo ao aniversário, a mente
enche-se de sensações estranhas, esquisitas.
Sim. É verdade. Mas, em princípio, pois que, desde que as mudanças
começaram a se realizar, não há um momento em que não me lembre das
dificuldades passadas. Encontro-me sobremaneira dividido entre o fracasso
passado e as conquistas presentes, e não sei se isto pode dar algum fruto,
aliás, não creio seja possível, o de que necessito é projetar-me ao futuro.
Com os dedos da mão direita a cofiar a barba, calado, em silêncio,
respirando de modo comedido, deixo-me ficar a olhar para este escrito, com os
olhos pequenos e negros, que dão a sensação singular de luz remota; deixo-me
estar a ver-me, a bispar alguma solução para estes sentimentos todos que me
perpassam a alma, o espírito.
Muito embora tenha a consciência esclarecida de que esta fase de inferno
astral ainda durará por algum tempo, por volta de uns vinte dias, ainda assim
não estou disposto em hipótese alguma a rubricar estas laudas escritas sobre a
caminhada feita, após haver passado à porta da barbearia, estando o barbeiro a
afiar sua navalha, com torrentes de lágrimas quentes e sofridas, creio que
ainda não cheguei a julgar-me vítima do mundo. Quisera-me ver a miséria digna.
Não posso deixar de comparar outra vez o homem que sou agora com o de outrora,
entristecer-me e encarar o abismo que separa as esperanças e sonhos de um tempo
da realidade de outro tempo.
Dou uma tapa bem forte no pulso e acho o relógio que ontem deixei de por
baixo do colchão de mola, sendo ele o objeto fundamental das reflexões que
deixo aqui impressas. Eis a última e derradeira ilusão: o relógio no pulso
evita que muitas sensações e sentimentos desagradáveis me tomem por inteiro.
Manoel Ferreira Neto
(JUNHO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 06 DE SETEMBRO DE 2018)
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