#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTRE# Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA ANO DE Lançamento: 22 DE SETEMBRO DE 2003 2.0 -DESENVOLVIMENTO
2.1 -Significado e função do olhar
O olhar é mais do que uma metáfora para exprimir um
modo singular de relação; ele é o que constitui a modalidade específica da
relação eu/outro. Porque o ver, nessa instância, não significa apenas ver, mas
sobretudo ver como. Quando um ser humano olha outro, carrega nesse olhar algo
que define e qualifica o outro em vários níveis. Isso é parte da negação
interna, base da relação de alteridade.
Não apenas o outro aparece como aquele outro que me
olha, mas também como aquele que, ao olhar-me, vê-me de uma certa forma. Essa
qualificação eu a recebo do olhar de outro inevitavelmente porque seu olhar me
submete e me fixa. Sou naquele momento aaquilo que, ao me olhar, ele me
atribui. Ser visto é receber uma qualificação. Assim, o olhar do outro
inelutavelmente me concerne e me incomoda, porque pelo seu olhar passo a ser
para ele, mas não só para ele, aquilo que ele apreende de mim.
Condição sine qua non para a compreensão e
entendimento do significado e função do olhar é que a consciência não encontra
o ser somente na estranha, opaca (e, assim, inatingível) forma da realidade das
coisas. Encontra-o encarnado na realidade do “outro” da “outra” consciência.
Reacende-se a esperança do sujeito de sair da sua
própria solidão e da sua própria falta e de instituir uma relação finalmente
positiva e “completante” com o ser. Protagonistas de uma série “de relações
dialéticas”, o Eu e o outro atuam e relacionam-se, de fato, num tempo e num
espaço absolutos que se subtraem a qualquer fixação ou a qualquer condicionamento
de natureza histórico-social e material.
O sujeito não tem mais perenidade. Ele é, agora,
porque visa a esta coisa. Naquele momento, porque se voltou para aquela coisa.
Mas imaginemos que não vise nem esta, nem aquel, nem qualquer outra. Ou, ainda,
imaginemos, mais verossímil, que vise uma coisa, porém frouxamente, sem a força
nem a vivacidade que tinha, ainda há pouco, com relação á coisa precedente.
Pois bem, no primeiro caso, não há mais sujeito
algum: sou sujeito neste minuto, não o era no precedente, não o serei no
próximo, jamais o serei – a subjetividade se me apagou como uma lâmpada de
abajur queimada. No segundo caso, há um sujeito, mas fraco, quase exangue: sou
mais ou menos sujeito; não o sou a toda hora, com as mesmas forças nem
insistência; não o sou inteiramente – uma parte de mim o pode ser, a outra não
o é mais, ou não o é ainda. Há um desenvolvimento desigual do ser sujeito. Há,
de acordo com a intensidade da intenção, de acordo com a intenção do sujeito,
uma espécie de escala móvel da subjetivação.
A impossibilidade de que o sujeito venha a pensar
outro sujeito a não ser como objeto deriva de que a consciência subjetiva só
poderia pensar fora dela o objeto. A universalização do sujeito como forma
transcendental não resolve o problema porque dilui o ato concreto de
subjetivação na possibilidade lógica de apreensão sintética do que não é
sujeito. Tudo isso parece indicar que os limites da representação não permitem
a experiência do outro a não ser traduzindo a sua subjetividade em objeto,
porque a estrutura do conhecimento tem de corresponder á relação
sujeito/objeto.
A partir da Crítica da razão dialética, a
subjetividade sartreana embrenha-se em novas veredas, a tônica acentua outros
contextos, a liberdade tal como a entende o primeiro Sartre é toda feita de uma
peça só, ao passo que agora tudo se desdobra no interior da ambigüidade radical
do conceito de vivência, do “silêncio” de quem sou à luz de “minha janela”, a
chama da vela do lado de fora num dos cantos. Ainda que sempre alérgico a
qualquer forma de homogeneidade atribuível á categora do objeto – no sujeito
lhe é irredutível -, digamos que, a partir da Crítica. Sartre tornou-se mais
“positivo”.
O elemento motivador da dialética hegeliana reside
na contradição; e o escopo do processo pretende a subida ao fundamento – toda a
Metafísica consiste nesse esforço de ascensão á unidade, de busca da verdade
total; isso porque, na medida em que se diz o fundamento, acede-se também à
verdade do mundo ôntico. Hegele persegue “a verdade, a realidade e a certeza do
trono do Espírito absoluto, e sem o calvário da contradição do Espírito seria
apenas “o solitário sem vida””.
Em Sartre, o fundamento se transforma justamente
nessa solidão radical, o em-sei não passa de um “solitário sem vida”. Hegel
assevera que o “processo [dialético] não pode ser tomado como um deslizar de um
outro para um outro” ; em Sartre não se verifica sequer esse deslizar, há
apenas uma tentativa, sempre frustrada, de fazê-lo. O processo dialético
torna-se processo precisamente através da mútua penetração de cada um dos
momentos que o compõem: a contradição se revela sempre interna, e tudo depende
de seu cultivo desde a intimidade dos momentos; há como que uma contaturalidade
desses momentos, que permite vender a alteridade.
Para Sartre, o ser é rigorosamente exterior a si
próprio; maciço e sem segredos, impede qualquer movimento para que dele se
participe. Só resta a possibilidade de auscultar a contradição da realidade
humana, e isso à medida que o para-si oferece-se como habitado pelo nada, em
que se determina como outro que não o ser. O processo dialético seria assim
como que unipolar, isto é, resolve-se como antidialético.
Quando Sartre diz, por exemplo, contra Hegel, que
“o enunciado correto do problema do outro torna impossível a passagem ao
universal” , tal assertiva só se justifica, a rigor, porque se tornou
impossível pensar o para si em função de seu fundamento. Se o “olhar o negativo
nos olhos”, de Hegel, termina apenas relativo porque não leva a contradição
realmente a sério, em Sartre, ao contrário, o conservar-se no negativo torna-se
absoluto, o para-si está definitivamente instalado numa separação que se sabe
inexpugnável. Explica-se que o processo dialético deva tropeçar em si mesmo.
Sem dúvida, a consciência ntende ao em-sei, o para-si tende à síntese; a
realidade humana se definie como constitutivamente intencional. Tudo em Sartre
gira em torno do próprio ato de tender, mergulhado inapelavelmente no elemento
contraditório da separação.
O homem velho, cabelos grisalhos, de óculos
escuros, que vejo sentado à mesa, à porta do bar, o velho Zazá, fazendo
palavra-cruzada, no jornal diário, visto exteriormente, aparece-me como um
objeto, uma coisa, lembrando que o olhar coisifica, objetiva, a “objetividade”,
“objectité”, na linguagem de Sartre, O ser e o nada, constitui um dos modos
como o outro pode ser-me presente. Tal presença não passa de um dado puramente
exterior, sendo “infinitamente provável” que o velho que vejo sentado à mesa do
bar seja mais que uma marionete aperfeiçoada.
Alguém se sentiria corajoso ou covarde, radical ou
flexível, forte ou frágil, generoso ou mesquinho, se existisse só no mundo? Não
é o juízo dos outros, a maneira como eles me vêem, que reflui sobre mim e
interfere na minha maneira de ser e de apreender o que sou?
Sartre dá o exemplo de alguém que observa outras
pessoas sem ser visto, por exemplo pelo orifício da fechadura. Enquanto estou
observando, não sou um voyeur; simplesmente existo (em) minha conduta sem
tematizá-la. Mas surge alguém e me vê vendo, isto é, me fixa como voyeur. O
domínio que eu antes possuía da situação se inverte; agora me submeto ao juízo
do olhar do outro; sou o que ele acha que sou. Envergonho-me e mostro minha
vergonha. O outro a vê no meun rubor e no meu constrangimento, na minha
justificativa ou no meu disfarce. E porque ele a vê eu também a vejo, por meio
dele. Agora sou um voyeur para mi mesmo; sou alguém envergonhado e só me
apreendo assim por via do outro. E ao fato de ter sido descoberto pelo olhar do
outro se acrescenta o fato, igualmente constrangedor, do segredo que ficará com
ele, algo de mim que nunca saberei. Assim, se tomo consciência do que sou pelo
olhar que me é lançado, tomo consciência ao mesmo tempo de que isso que
descobri sobre mim na descoberta do outro a meu respeito não é tudo que ele
sabe de mim, e é como se uma parte do que sou ficasse guardada com ele e
inacessível a mim.
A percepção exterior do outro não poderia resultar
no mero reconhecimento de qualquer coisa como solidão original. Sartre se
empenha em mostrar que entre o “eu” e o “outro” há uma “ligação fundamental”, e
que nela se manifesta uma modalidade de presença do outro irredutível ao
conhecimento que tenho de um objeto.
A experiência decisiva é que o outro me vê: ele não
poderia olhar como quem olha uma coisa. “O outro é, por princípio, aquele que
me olha” . O “ser-visto-pelo-outro” impõe-se como uma experiência irredutível,
rebelde a qualquer tentativa de sedução. Se o outro existe, a existência do
homem está ligada ao pensamento, ao julgamento que o outro faz de si. Como ser
pensante e pensado, ao mesmo tempo sujeito e objeto, o homem desfruta do
privilégio difícil e angustiante de assumir suas responsabilidades e escolher
livremente seus atos.
A todo instante, o outro me olha, e esse olhar não
pode ser elucidado com o auxílio da categoria do objeto; de fato, quando
apreendo o olhar, cesso de perceber aos olhos que me vêem.
O objetivo de Sartre com esta análise do
significado e função do olhar é a superação da interpretação solipsista do
sujeito, na qual havia já pensado na época de La transcendence de l´ego. As
conclusões negativas da relação cognitiva entre Eu e o Mundo e a permanente
solidão do Eu parecem ter dado razão ao solipsismo, ao qual, direta ou
indiretamente, tinham aderido tantos filósofos, alguns bastante caros a Sartre.
A reiteração do solipsismo na modernidade tem sido
amplamente notada, a ponto de ter sido considerada inevitável como uma
característica congênita. Há-de se levar em conta, mno entanto, as dificuldades
imensas derivadas da primazia do sujeito como ego cogito e da hegemonia da
representação, ou seja, da dualidade fundamental sujeito/objeto que constitui o
eixo da relação da consciência com o que não é ela mesma.
Quando Descartes se dá conta de que, enquanto
duvida, não pode deixar de existir, o que lhe aparece é que todo o processo de
dúvida já se encontrava desde sempre sob o signo da existência do eu que
duvida. A vinculação reflexiva que aí se produz constata o eu pensante e o
reitera como fundamento do processo, no qual estaria então implícita a
compreensão pré-reflexiva do meu próprio eu. Essa é a razão pela qual o cogito
não é provado a partir de uma hipótese, nem é descoberto de forma absoluta. Ele
emerge da reflexão como aquilo que desde sempre a sustentou. É o que se chama
de compreensão pré-ontologica à qual a reflexão vem dar uma forma objetiva,
clarificando-a sem, no entanto, instituir a realidade que aín é encontrada.
O ser-para-outro do para-si não nos será revelado
como estrutura forma e a priori de relação, mas como índice de existência da
qual não cabe duvidar, ainda que não me seja possível provar ou conhecer no
plano da sua irredutibilidade. De alguma maneira, é necessário transformar as
dificuldades inerentes ao solipsismon em maneiras de apreender o outro,
superando no plano pré-reflexivo os impedimentos provenientes da estrutura
sujeito/objeto. Será, também aqui, no nível da conduta do para-si, que o mo0do
de ser para-outro deverá aparecer.
Assim, é ao para si que precisamos pedir que nos
entre o para-outro; é à imanência absoluta que precisamos pedir que nos
arremesse á transcendência absoluta: no mais profundo de mim mesmo devo
encontrar, não razões para crer no outro, mas o próprio outro enquanto aquele
que eu não sou .
Desejando, então, analisar as relações entre o Eu e
o Outro assim como as relações entre o Eu e o Mundo, o pensamento moderno e
contemporâneo não conseguiu evitar as conclusões negativas e de tipo
solipsistas. Na verdade, afirma Sartre, o “Eu não está só”.
O ser-visto como que perturba a pureza da
percepção, suplanta a relação sujeito-objeto; o olhar cai sobre mim sem
distância e, ao mesmo tempo, me mantém à distãncia. Embora se manifeste nos
olhos do outro, o olhar me devolve a mim mesmo, e a experiência absorvente que
passo a ter deriva desse ser visto.
O olhar é, antes de mais nada, um intermediário que
remente de mim a mim mesmo
Se o outro existe verdadeiramente para si, além de
ser para mim, e se somos um para o outro, e não um e outro para Deus, convém
que apareçamos um para o outro, convém que ele tenha e que eu tenha um
exterior, e que haja, além da perspectiva do Para-si – minha visão de mim e a
visão do outro de si mesmo – uma perspectiva do Para-outro -, minha visão do
outro e a visão do Outro de mim. Estas duas perspectivas não podem ser
simplesmente justapostas, pois então não serei eu que o outro veria e não será
ele que eu verei. É necessário que eu seja meu exterior, e que o corpo do outro
seja ele mesmo.
Comentando o caso Flaubert, O idiota da família ,
Sartre fala do eu como de um produto alógeno, um puro efeito de estrutura
induzido pelo olhar do outro, e quando lembra que o único momento de
coincidência consigo, o único momento em que o jovem Flaubert teve o sentimento
de se recompor um pouco, de se reencontrar, de ter uma relação íntima consigo
mesmo e de transpor a ferida, ou a fenda, foi um momento passado em frente...
de seu espelho.
Em O idiota da família, comentando o caso Flaubert,
o tema da irredutibilidade aparece, por um lado, de forma bem mais maleável,
estabelecendo-se um comércio pluridimensional entre as camadas da realidade;
poder-se-ia dizer que tudo está em tudo, e que a dialeticidade interminável de
suas configurações. Esse jogo a um tempo movediço e estruturado da
dialeticidade concentra-se em torno de um eixo central, espécie de pólo de
irradiação: a dicotomia sujeito-objeto.
A dicotomia deve ser entendida em sentido amplo, e
não caberia confundi-la com as formulações gnosiológicas tradicionais e os seus
merecidos impasses; a dicotomia apresenta aqui caráter ontológico e dialético,
e os termos que a compõe em nada se assemelham à secura empobrecida das formas
de conhecimento.
Sartre, ao inverso, complica mais ainda o
dispositivo, quando comenta, em Veneza de minha janela, a inquietante
semelhança de duas margens do Grande Canal, escreve:
[...] imagine que você se aproxima de um espelho,
uma imagem de forma, ali está o seu nariz, os seus olhos, a sua boca, a sua
roupa: é você, deveria ser você; e, no entanto, há algo no reflexo, algo que
não é nem o verde dos olhos,m nem o desenho dos lábios, nem o corte da roupa –
algo que o faz dizer de repente: puseram um outro no espelho no lugar do meu
reflexo .
Sartre ou a hipótese do sujeito. Sartre ou o
primado, apensar de tudo, da “alma”, ou da consciência, sobre todas as coisas.
O que é uma coisa?, pergunta. É ter um tempo de atraso em relação à consciência.
O que é existir, para essa coisa? É ter esse estatuto de objeto de consciência
ou de conhecimento. E o que é, então, ser sujeito? É tomar consciência, tomar
conhecimento – sem nunca se confundir com a coisa conhecida ou concebida. Já
que o sujeito não é mais um “ente”, resta a possibilidade de ser uma idéian –
mas uma idéia já é muito! É um princípio! É a regra de uma moral! É um possível
suporte de direitos! É o que faz com que um homem, mesmo não sendo mais a
imagem do Homem, possa ser julgado pelos “direitos do homem!”.
Ou então a célebre aberta de A náusea: uma outra
cena do espelho, outra decomposição de um rosto pego na armadilha do espelho e
que, diante desse espelho, aproximando-se dele a ponto de tocá-lo, ao invés de
se juntar, dissolve-se, “imenso halo pálido que desliza na luz”.
Em Existencial psychoanalysis,
But this movemente of dissolution is fixed by the
fact that the known remains in the same place, indefinitely absorbed, devoured,
and yet indefinitely intact .
Refere-se este excerto à questão do conhecimento.
Conhecer é devorar com os olhos.
O ser e o nada teorizou o olhar como um “objeto a”.
Em Les quatre concepts foundamentaux de la psychoanalise encontra-se uma
saudação a Sartre por Lacan:
O olhar, tal como concebe Sartre, é o olhar pelo
qual sou surpreendido – surpreendido porquanto ele muda todas as perspectivas,
as linhas de força, de um mundo que ele ordena, do ponto de nada onde estou,
numa espécie de reticulação raiada dos organismos .
E mais adiante: “O olhar teria aí tal privilégio
que chegaria até a me fazer a escotomizar, em que olho, o olho daquele que me
olha como objeto”. Em La transcendence de l´ego, aparece, pela primeira vez, a
idéia de um sujeito, clivado, tardiamente advindo à sua unidade, e cuja organicidade
não passa de efeito especular do olhar do outro.
Este paradoxo e esta dialética do Ego e do Alter só
são possíveis se o Ego e o Alter Ego são definidos, por sua situação e não
liberados de qualquer inerência, quer dizer se a filosofia não termina com o
retorno ao eu, e se descubro pela reflexão não somente minha presença em mim
mesmo, mas ainda a possibilidade de um “espectador estranho”, isto é ainda se,
no próprio momento em que minha existência, e até esse nponto extremo da
reflexão, sinto falta ainda desta densidade absoluta que me faria sair do tempo
e descubro em mim uma espécie de fraqueza interna que me impede de ser
absolutamente indivíduo e me expõe ao olhar dos outros como um homem entre os
homens ou pelo menos uma consciência entre as consciências.
Uma estrutura constituinte do meu ser (do ser “para
mim”) remete necessariamente para o meu ser “para-outro”. A dificuldade em nos
apercebermos desta intersubjetividade originária, e em examinar a sua complexa
fenomenologia, está relacionada com o fato de que o Outro não é qualquer coisa
de positivo que possa ser conhecido na sua positividade. O outro é o eu que eu
não sou. Assim é que o encontro entre dois sujeitos se configura desde a sua
origem como uma negação recíproca que compromete o seu próprio ser.
Apenas Hegel se apercebeu da negatividade que
constitui a relação intersubjetiva, tendo-a expresso na sua célebre análise da
dialética do escravo/senhor incluída na Fenomenologia do espírito. À correta
intuição da natureza ontológica desta relação (a negação recíproca entre o
escravo e o senhor investe todo o ser dos dois pólos desta relação dialética).
Hegel também compreende a dialética do
escravo/mestre a partir da idéia de luta, de um conflito que gera a angústia e
o medo. Em Sartre, ao contrário, o conflito se apresenta como um absoluto. O
conflito, afirma ele, é o sentido original do ser-para-outro – original,
exclusivo e único. Sartre acusa Hegel de “otimismo epistemológico” e “otimismo
ontológico”. Em reação contra a necessidade dialética, os sonhos do para-si de
um objeto que pode ser inteiramente assimilado por mim, que seria eu, sem
dissolver-me, mas ainda conservar a estrutura do em-si. Hegel observa que é um
fato infeliz que o desejo destrói seu objeto. Neste sentido, diz Hegel, desejo
é o desejo de devorar.
Na Fenomenologia do espírito, Hegel introduz a
idéia de que o outro é mediador: o fato primeiro passa a ser a pluralidade de
consciências, e uma pluralidade que se realiza sob a forma de uma dupla e
recíproca relação de exclusão. Na dialética do mestre e do escravo, este afirma
contra o outro o seu direito de ser uma individualidade, e, assim, o
ser-para-outro aparece como um estágio necessário do desenvolvimento da
autoconsciência; “o caminho da interioridade passa pelo outro” , e o outro é
afirmado como um outro eu, ou melhor, como um eu-objeto indispensável ao
reconhecimento de meu ser.
A intuição genial de Hegel é de me fazer depender
do outro em meu ser. Eu sou, diz ele, um ser para si que não é para si senão
por um outro. É, pois, em meu coração que o outro me penetra .
Acontece que toda a análise de Hegel continua
caudatária da surrada perspectiva do conhecimento-objeto: “Hegel nem concebe
que possa haver um ser-para-outro que não seja redutível a ser-objeto” . Também
para Hegel o outro se apresenta restringido ao problema do conhecimento.
O acesso essencial à intersubjetividade dá-se pela
negação. Nego o outro como aquele que me nega, e pela negação do outro me
reconheço como para-si. O sentido profundo da análise de Sartre é que a relação
sujeito-sujeito não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto.
Se o sentido original da relação intersubjetiva
deriva do conflito, compreende-se a fatalidade da pergunta: “Por que existem
outros?”. O outro é um “acontecimento” primeiro de teor metafísico, e isso quer
dizer que o porquê do outro se justifica pela contingência do ser, pela
gratuidade original e irredutível de tudo o que existe. Noutras palavras, de
Sartre mesmo: “O meu pecado original são os outros”. Toda a metafísica culmina
na intuição desta conting~encia. Se o para-si é para-outro, tudo se passa como
se minha ipseidade em face do outro fosse produzida e mantida por uma
totalidade, por uma espécie de síntese superior – embora Sartre não possa
admitir qualquer coisa como uma totalidade do espírito, uma síntese
transcendental à maneira de um Fichte . Qualquer tentativa de síntese esbarra
nessa negação interna e constitutiva do ser-para-outro.
A análise da intersubjetividade leva Sartre a
desenvolver uma ontologia do corpo. Por que se coloca, e só agora, em função da
intersubjetividade, o problema do corpo?
Pode-se elucidar este tema através de duas
perspectivas. Primeira, negativa, surge do próprio seio da contingência
fundamental e da impossibilidade de resolver a pluralidade de consciência numa
síntese totalizadora. Segunda, positiva, brota do outro enquanto considerado
ser-objeto.
Um dos pressupostos histórico-metafísicos do
pensamento de Sartre reside na dicotomia cartesiana do sujeito-objeto. Em
Descartes, estabelecido o cogito, o discurso filosófico progride até alcançar,
através do argumento ontológico, a existência de Deus; e, caso o tema houvesse
sido ventido por Descartes, Deus seria o fundamento da intersubjetividade,
assim como o é da ligação entre a res cogitans e a res extensa.
Penso, logo sou? Não. Posso pensar sem ser: minha
consciência pode ser atravessada por pensamentos, por relâmpagos de idéias e de
reflexões, e nem por isso me é dada essa inteoridade, essa estabilidade, essa
identidade, essa perenidade, que são os atributos do ser – é a lição a ser
tirada de Infância de um chefe , que diz literalmente, “cogito ergo non sum”.
No existencialismo, o outro se nos dá através de
uma apreensão direta, que não perturba o caráter de facticidade do encontro
intersubjetivo; e o critério de certeza, aqui, se pretende tão indubitável
quanto a apreensão do cogito por meu próprio pensamento. Não se trata de provar
a existência do outro; toda prova cede a palma da vitória do solipsismo, e
relega a questão ao plano da probabilidade.
Portanto, o ponto de partida deve ser o cogito
cartesiano. Há qualquer coisa como um cogito da existência do outro que se
confunde com o meu próprio cogito. Não preciso crer no outro, pois eu o
descubro em mim como aquele que não sou. E a presença em mim desse outro não conseguiria
ser degradada à condição de objeto, que eu poderia ou não, a posteriori,
conhecer; o outro pertence em certo sentido à minha própria facticidade. O que
determina a relação intersubjetiva ressai da negação: o outro aparece ao cogito
como não sendo eu. A presença do outro se manifesta, concomitantemente, como
“recusa radical do outro”.
Cogito sem ego. Ego sem cogito. Sartre, entendamaos
bem, não renunciou ao sujeito. À dissolução total do sujeito ele opõe a
hipótese de um sujeito que deveria fazer, em princípio, com que os homens nunca
fossem tratados como animais ou como coisas .
O recurso a Deus, em Sartre, torna-se impossível, o
Absoluto não poderia funcionar como fundamento. A razão alegada se resume no
seguinte: Se Deus é consciência, não se entende como possa fugir do ato
nadificador que define o próprio ser da consciência; e então, “se Deus existe,
Ele é contingente” . Ou ainda: “Se Deus é consciência, integra-se à totalidade”
. Assim Deus se definiria como um impossível para-si, que terminaria sendo o
que não é e não sendo o que é; seria uma totalidade destotalizada e, portanto,
um não absoluto . Sartre de A náusea e Entre quatro paredes é um apóstolo de um
ateísmo “bem suspeito”, de que um católico poderia, “sem mudar muita coisa”,
ratificar a maior parte dos dogmas: humanidade desossada, mas sofredora,
desamparada, mas nostálgica, abandonada por Deus e só pensando no Céu .
A segunda perspectiva para justificar uma ontologia
do corpo deriva do outro como ser-objeto, e esclarece o que acabamos de dizer.
O outro pode existir para nós sob duas formas: se
eu o sinto com evidência, não chego a conhecê-lo; se eu o conheço e ajo sobre
ele, só atinjo seu ser-objeto e sua existência provável no meio do mundo:
nenhuma síntese dessas duas fórmulas é possível .
O conflito não se consegue sobrepor à alternativa;
ou bem sou objeto para o outro, ou então o outro se faz objeto para mim; a
reificação do para-si não pode ser evitada. Acontece que esse tornar objeto o
para-si implica a manifestação do outro como corpo, impondo, assim, como
ineludível o problema do corpo. Tudo se passa como se o corpo fosse o empecilho
à comunicação plena das consciências.
O que é o meu corpo? O que é o corpo do outro?
Sartre indica três dimensões ontológicas do corpo.
O corpo como ser-para-si define a primeira: o que é
meu corpo para mim? Seria falso considera-lo como um objeto que se acrescenta à
consciência; ele não está unido à consciência como se pressupusesse um
dualismo. Em verdade, o ser-para-si é todo inteiro consciência. Não se trata de
entender o corpo como um em-si presente no para-si. Pelo corpo, temos acesso à
facticidade radical que caracteriza o para-si, facticidade que resulta de minha
contingência. Sabemos que a realidade humana é necessariamente contingente. Que
o para-si seja, é uma contingência, que ele seja tal, é igualmente contingente.
A facticidade resulta do entrelaçamento dessas duas contingências. O corpo pode
ser definido precisamente como “a forma contingente que toma a necessidade de
minha contingência” .
Sartre explicita o corpo a partir das estruturas
próprias do para-si. Uma coisa é o corpo enquanto ele é para-mim. A realidade
corpórea revela ainda outros planos de existência, outras dimensões
ontológicas. Tal como o para-si, o corpo também existe para o outro. Visto que
não sou o outro, o corpo do outro, como Sartre o apresenta em O ser e o nada,
se impõe como radicalmente diferente do meu corpo-para-mim: originalmente, ele
se manifesta a mim com um certo coeficiente objetivo de utilidade e de
adversidade.
A terceira dimensão ontológica do corpo deriva da
analise do olhar; existo para mim como conhecido por outro. Com a aparição do
olhar do outro, tenho a revelação do meu ser-objeto, sou conhecido pelo outro
como corpo. O olhar faz com que se revele para mim a existência de meu corpo
como um exterior, como um em-si para o outro; minha facticidade é objetivada,
meu corpo é alienado.
Segundo o habitual procedimento fenomenológico,
qual é o “significado” de tudo isto para o sujeito? Responder a esta indação
não é difícil.
O olhar que o Outro me dirige não se limita a
objetivar-me: ele descobre-me também, conhecendo-me mais e melhor do que eu
conseguiria por mim mesmo. Descoberto a espreitar pelo buraco da fechadura,
sinto o meu ser fixado e objetivado como eu nunca teria conseguido fazer. E
sinto que este meu ser está a ser desse modo descoberto e conhecido como uma
impiedosa verdade. Esse é precisamente o sentimento resultante do olhar do
Outro: “Eu sou aquele eu que um Outro conhece”.
Sinto ainda, em segunda instãncia, que não sou mais
uma absoluta, mas uma solipsista transcendência, que não sou mais uma absoluta,
mas sim uma solipsista liberdade. Sinto que um Outro, pelo simples fato de
olhar-me, objetiva-me, aliena-me das minhas próprias possibilidades,
transcende-me: “Com o olhar de outrem [...] deixo de ser senhor da situação” .
Sob o olhar do outro, sinto-me tornar “escravo”, “objeto de valores” que não
foram por mim elaborados, que não foram por mim assumidos, “instrumento de
possibilidades que não são as minhas possibilidades”
A última frase de As palavras “Todo um homem, feito
de todos os homens, que os vale todos e a quem vale não importa quem” Sartre
igual a “não importa quem”? Sim. Parte dele o crê. Parte dele sonha com isso.
Essa parte dele continua a pensar, como Gide, que todo homem “nasce para
testemunhar” e que, mesmo que o hmem nada valha, um nada vale por outro nada e
toda vida, ínfima que seja, ou infame, tem sua grandeza e dignidade. Elogio do
homem comum. Apologia do sujeito fora do sujeito, de quem Spinoza teria dito “à
sua maneira, nada lhe falta; ele é, com toda realidade individual, perfeito;
igual, pois, em dignidade, as outras realidades”.
Dizendo Sartre “um homem feito de todos os homens”,
ele quer dizer duas coisas e é nesse duplo sentido que pode ser considerado
ainda humanista. Em cada homem, a gama completa do humano; nos piores canalhas,
súcias, caguinchos, fulgores de santidade; no mais anto dos santos, traços de
malignidade. E também igualdade entre sujeitos; igual acesso a esse
devir-sujeito que veremos ser, para os sujeitos concretos, a mais arricada
aventura, a mais aleatória, mas também a mais apaixonante; em cada um, um
possível passe para a verdade; em cada homem, a possibilidade, pelo menos uma
vez, de se conduzir como sujeito.
Manoel Ferreira Neto
(22 DE SETEMBRO DE 2003)
(#RIODEJANEIRO#, 08 DE AGOSTO DE 2018)
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