LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO IV - II PARTE - PILHA DO COISA

Descendo a escadaria da residência, viera-lhe a idéia de que o carroceiro queria demonstrar ser o seu asno pensante. Se conseguisse modo e estilo de criar as situações, com engenho e perspicácia, a idéia lhe traria alguns frutos importantes, quem sabe conhecer o fio tênue que separa o homem do asno, coisa que a pós-contemporaneidade necessita começar a pensar a respeito. E se ao invés de a origem do homem ser do macaco, não seja do asno? Já que as idéias de Darwin não deram em nada, quem sabe esta origem mais recente não seja a solução do mistério do homem?

Contaram-me de problema com Lúcifer Pernóstico. Por algumas semanas dera de arregaçar a boca e gesticular o focinho. Um veterinário indicou um remédio supimpa para este problema, significava que o asno quer falar como os homens, esta pilha corta isto dele, está no instinto, o "instinto da linguagem". Não havia de se preocupar. Tomasse o maior cuidado: lavasse a mão três vezes com sabão de barra, qualquer porcãozita na boca deste remédio causa a perda da fala por completo, o resto da vida mudo. Cortou-lhe apenas o arregaçar a boca e gesticular o focinho sonho se estivesse conversando, aguçou-lhe o conhecimento das coisas do mundo, sobretudo a sabedoria dos homens. Tornou-se intelectual. A pilha se chama Pilha do Coisa.

Sendo assim, tinha de suscitar nos homens o questionamento desta verdade, fazer-lhes espremer os miolos. Óbvio que, tendo percebido a verdade, alguns a tenha aceite, não sem angústia. Não iriam dizer o carroceiro tinha sido mentor intelectual da verdade, o responsável por lhes mostrá-la.
A gafe: sabe ser “lhas mostrar”; não é um asno, muito embora só muito poucas vezes admite que consulta milhares de vezes o dicionário, a gramática. A sua neurose de perfeição é asnicamente sublime. Se alguém tivesse de ser indicado como quem a descobriu, encontrariam cientista famoso, filósofo da hora, alguém de importância. É para chamar a atenção para o fato de que o meu dono só conversa com os companheiros de ponto o que é essencial, após isto não diz única palavra.

Chamou-lhe a atenção isso: e se dissesse “lhas mostrar”, e, relendo, pensando nas regras e normas da construção, não teve a mínima segurança, preferindo até, a título de uma pós-correção, por conservar o erro, e assim enfatizando, “... o responsável por mostrar os homens a verdade”. Não teria de ficar pensando nas coisas da gramática para escrever a história de Lúcifer Pernóstico, a partir de sua prática de levar e trazer fretes, desembestado pelas ruas da cidade.

Humilhante um carroceiro ser o descobridor de verdades. Existem homens próprios para as descobertas. Não estava preocupado em figurar nos anais da história como quem fizera os homens assumirem a inutilidade da condição humana.

Os homens corremos atrás de um possível que nosso trajeto faz aparecer, não passando de trajeto e, por isso mesmo, define-se como fora de alcance. Corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais pode se alcançar.

De tal maneira turbara-me a cor da vida, que pensando
naquelas fúrias ou bruxas da noite passada, o bocado de pão que mordera, embora muito pequeno, atravessou-me no gargalo, que não podia ir abaixo nem tornar acima, e também crescia-me o medo, porque ninguém passava pelo caminho. Quem poderia acreditar que de dois companheiros, fosse morto o um, sem dano do outro? Mas Sócrates, de que muito comera, começou a ter grande sede, porque comera boa parte de queijo. Perto das raízes do plátano corria um rio mansamente, que parecia lago muito plano e a água clara como um prato ou vidro.

Encontrara a idéia primordial que desejava desenvolver e elaborar em sua história, o testemunho do que acontece em nossa velha, mais velha que os tempos imemoriais, Atenas Atéia. 

Quem sabe o carroceiro não tenha tido a idéia de fazer com que o asno não mais empacasse, tornasse-se asno eficiente, e sim mostrar aos homens as empáfias e orgulhos, bens materiais sofisticados, saldos bancários “rechonchudos”, não tinham menor sentido, por sermos o ser que jamais pode se alcançar.

A título de ironia, cinismo, sarcasmo comungados, Credólio Cruzilis seria capaz de questionar o que o defunto leva para a sepultura. Dizem que não leva nada de material, dinheiro, propriedades, bens; há quem o diga, estando em perfeita concordância, que se leva o grande amor da vida – disto, não tem dúvidas ele. Levará consigo o amor que nutre profundo por sua doce-companheira-e-esposa Hécuba Cruzilis.  Mas deixemos de subjetivismo e pensemos um pouco. Não se joga o defunto na sepultura, terra por cima. O defunto leva o caixão junto consigo, de ambos nada restará ao longo da eternidade.

Se fora esta a intenção, não se sabe, pois não dissera, quem sabe para evitar situações constrangedoras. Causar-lhe-ia contratempos. Não que ninguém fosse aceitar ter sido quem mostrara a verdade, poderia ter sido qualquer um, mas esta verdade iria insatisfazer a todos, deixar os homens revoltados, alguns suicídios e loucuras. Werther de Goethe causara suicídios na Alemanha. Seria crucificado. Os homens não estão preparados para verdade alguma.

O fato é que a carroça continua pelas ruas da cidade.
Manoel Ferreira Neto
(Março de 2005)

(#RIODEJANEIRO#, 29 DE AGOSTO DE 2018)

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