#LÚCIFER PERNÓSTICO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto; ROMANCE



CAPÍTULO XIV - PARTE II - ENFIM, POR QUEM ME TOMA?


Os quartos do boi estavam sendo entregues no açougue, só se via homens com sacos de aninhagem ao ombro, carregando os quartos, que não são leves, boi magro ou gordo, não importa. Ouvi este comentário, o que me deixou de orelhas em pé, querendo ouvir os mínimos detalhes.


Então, alguém que se ostentava um dos grandes escritores da nossa comunidade de repente é chamado de ignaro. Bem, há muitos estilos, individualidades, características, problemas patológicos, psicológicos de artistas e gênios, mas jamais ouvi alguém dizer que são ignaros. Sem dúvida, isto deixa marcas profundas. Talvez o epíteto de “ignaro” tenha solidificado a importância: o único escritor ignaro da humanidade desde tempos imemoriais.


Fosse comigo, se alguém dissesse que sou um equus asinus estúpido e grosseiro, não me sentiria nem um pouco satisfeito, aliás, muitíssimo magoado e ressentido. Ainda mais, como muitos já disseram que só me faltava falar, sempre havendo dúvidas se já não penso. Será que ele realmente ressentiu? – se há possibilidades de o fazer.


Quanto a este senhor há muito a ser relinchado, quanto ao que já ouvi dizer a respeito dele. Estive presente nesta ou naquela ocasião. Enquanto meu dono termina o serviço, fico a ouvir o que se é comentado. Esta é a nossa grande diferença. Puxo a carroça, mas como neste mundo tudo é compensação me foi dado ouvir as conversas enquanto o serviço está sendo terminado por meu dono. Situação confortável, bem o sei, mas nada posso fazer neste sentido, a menos que deixe de ser Lúcifer Pernóstico, o asno, para ter nome importante de ser humano. Não é isto que pretendo.


Sei que alguém comentara que numa conversa alguém dissera respeitar a linguagem e estilo de outro escritor, de nossa comunidade, mas não se era possível entender bulhufas do que estava dizendo, o que mesmo estava querendo expressar. Então, amigo deste escritor dissera ao editor-chefe que entender o que seu amigo diz seria necessário conhecer a sua linhagem. Perguntou-lhe, então, o que significava “linhagem”. Nunca tinha ouvido falar neste termo. Constaria no dicionário? Alguns caíram na risada, e ele próprio não teve qualquer possibilidade de resposta.


- Por que riem? Há dicionários que não têm alguns termos, mesmo os mais modernos e atualizados – olharam-se todos de soslaio, a defesa realçou mais a dúvida de seus conhecimentos tão profundos. Há quem pense que intelectuais têm a obrigação celeste de tudo saber. Mas convenhamos: nem Dr. Fausto conseguiu o que desejava com todos os seus conhecimentos!...


Agora, está ele à porta de uma farmácia, enquanto a chuva está começando nesta manhã, olhando-me de soslaio, um ar cínico e irônico. Olho-o e não compreendo a sua atitude. O que justifica um ser humano olhar para um asno de soslaio? O que pode explicar? A não ser que já esteja sabendo da correspondência-resposta enviada ao senhor-autoridade. O olhar não denota isto. Denota antes: “Que presunção!... Então se julga mais importante que eu? Julga-se mais inteligente e culto que eu? Julga-se um intelectual? Isto é que é uma pretensão deslavada...”.


Sendo muito amigos, não diria íntimos, não lhes conheço as cumplicidades, conquistas juntos, mas pode ser que com ele haja comentado sobre a correspondência, até acreditando que a tenha mostrado, ainda comentando: “Agora um asno resolve ser a personalidade mais importante, interferindo, melhor dizendo, tendo a ilusão de interferir nas questões dos homens em nome da História. Dar atenção para um asno”.


O que a mim importa se ele esteja dizendo para si mesmo: “Dar atenção para um asno. Ora lá, se nos vale...”, dando a esta expressão um enorme valor, um estilo jamais encontrável em qualquer obra de toda a humanidade. Não estou nas tintas para o que pensa, deixou de pensar... Ainda que achincalhe que a atitude do meu dono de construir a espécie de varal a minha frente, numa distância tal que não me seja possível comê-la, já mostra claramente que sou um asno, um ignaro quadrúpede. Ora, se me vale dar importância a este tipo de tentativa de achincalhamento, mas em verdade a mim não me fora dado o pensamento, a razão.


Talvez até esteja imaginando, se é que seja possível um asno pensar, saber o que está acontecendo, analisar, interpretar, ser capaz de discernir os benefícios e prejuízos, os ganhos e perdas, o que estaria eu pensando a seu respeito. Mas não se digna a vir perguntar-me: “Enfim, por quem me toma?”. Se o fizer, não haverá quem nas redondezas que, assistindo à cena, não vá ridicularizar. “Está ficando pior a cada dia que passa...” Perguntar a um asno por quem é tomado, isto só cabe aos insanos.


Também qual a resposta que receberia se rompesse com os preconceitos, discriminações a ponto e natureza, perguntando-me. Não sendo um especialista em mostrações dos dentes brancos, os relinchos, como é que irá saber o que estou pensando. Não lhe fora dado o conhecimento da língua dos asnos. Seria insanidade, embora tenha dúvidas, acaba admitindo. Estaria exposto ao ridículo.


Não sei se ele ainda continua me olhando, ficou para trás, mas penso se não seria muito interessante enviar-lhe uma correspondência, lembrando-lhe de haver estado em eventos artísticos e culturais, lançamento de livro de filosofia, cujo autor é um de seus grandes inimigos, mas fora necessária a sua presença. Lembrando-lhe que, no lançamento de seu livro Espiando Atenas Atéia, Credólio Cruzilis pedira a palavra para lhe dirigir algumas palavras, disse a plenos pulmões: “Prometo-lhe que, se gostar da obra, faço um breve comentário escrito”, e jamais uma linha fora escrita sobre esta obra. Adquirira. Lera. As diplomacias e formalismos estão sempre presentes nestas ocasiões, assim tiraram foto juntos. Nalguns grupos, outra conversa não se apresentava senão a “farsa do ano”, dois inimigos se cumprimentam. Questionado a respeito: “Você tirar foto com o pernóstico!...”. “Pediram-me que o fizesse, não pude dizer não. Mas só isso. Não temos relações”.


Em verdade, Credólio Cruzilis não estava esperando que ele forçasse a situação. Comprara o livro. Tinha direito ao autógrafo, se não quisesse, não teria qualquer problema. Pediu. Enquanto autografava, ressaltando que “o escritor é responsável pela história de sua comunidade”, enfiando-lhe a ponta do punhal bem fundo, ele que em seus editoriais só se interessava por sensacionalismos, não percebeu que havia dado sinal a um fotógrafo; recebendo a obra, estando Credólio Cruzilis de frente, a foto foi tirada. Fez ele uma pose, segurando a obra. Credólio Cruzilis com os braços cruzados ao longo do corpo.


Que idéia de jegue comparecer num evento cultural, sabendo que, se bem recebido, era por formalidade e diplomacia, a sua presença não era bem-vinda, era persona non grata, e ainda se oferecer para uma foto juntos. Para mim, isto significa falta de caráter, amor-próprio.


Saberia, então, o que penso dele, se é que a minha opinião lhe interessa; se interessar, não haja dúvida que se torna suspeito, enfim agora está nas tintas para as opiniões de um asno. Não vê que as sociedades sempre necessitam de crenças e idolatrias sem quê nem porquê. Agora é Lúcifer Pernóstico.


Não creio mesmo que, se decidisse a enviar-lhe correspondência, teria condições de interpretar nas entrelinhas o que estou querendo dizer, estando sempre a olhar para a página, especulando e tirando conclusões disto e daquilo, não sabendo o que dizer.


“Mas tem chovido, hein!”. Só se ouve isto. As donas de casa preocupadas com a umidade, as roupas molhadas. Continuo subindo a rua São Francisco.


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


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