#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO XVI - PARTE II


Não se pode dizer que tenha instruído o portador. Primeiro, contando a História do Cavalo de Tróia, lembrando-lhe de que teria de ser homem muito sensível, simpático, amoroso, demonstrando agradecimentos imensos por muitos favores e gentilezas. Lesse a dedicatória como quem está muitíssimo alegre e saltitante. Não teria condições de fazer isso. Se me fosse possível, ainda acrescentaria nos seus conhecimentos a história de Calígula que nomeou Incitatus, o seu Cavalo Branco, Senador do Império Romano.


Não me esqueço de pensar após ter lido a correspondência inteira o que tenha falado de mim; de asno para cima não diria, pois isto não acrescentaria nada, nada diminuiria, sou realmente um asno, e para cima de mim o que há? Outras palavras agressivas próprias para expressar o ódio e raiva. Ainda mais que ela acreditou no portador. Pensara até que fora ele quem escrevera. Não é possível. Ainda mais de quem. De Lúcifer Pernóstico. O embaraço todo seria no momento de entregar a correspondência, não estava em envelope. Era uma correspondência aberta, na verdade. O que diria? “Lúcifer Pernóstico mandou-lhe uma correspondência”. Se não a bronca, hora de serviço é coisa séria, deixasse as brincadeiras para depois, a gozação. No mínimo, estaria ficando louca.


Não tive ainda a oportunidade de passar na rua. Se a senhora que atendeu o portador estiver na janela de guilhotina de sua casa, não lhe restará outra alternativa senão: ou fechar a janela ou assistir a minha passagem. Não poderá dizer nada. Em sã consciência, assistirá a minha passagem. Para se mostrar, ela é um ser humano, uma mulher; sou um asno, ainda mais presumido, metido a pensador, filósofo. O peito estufado, os olhos esbugalhados, a respiração ofegante. Ela é... Pensa que assim me atinge: a bem da verdade, um asno não é, existe. A presumida não seria ela: quem é?


Se disser, alguém ouvir, o comentário no outro dia mesmo estará rolando pela cidade inteira. Todos irão rir a bandeiras soltas. Incrível, recebeu uma correspondência de Lúcifer Pernóstico. De Lúcio Pernóstico até que seria aceitável, mas cair na história do Cavalo de Tróia, justamente com um asno, isso é inaceitável.


Se me for dada esta oportunidade... Além do mais, não é necessário que esteja à porta do seu serviço, à janela de guilhotina, a qualquer momento poderá passar por mim. Humilhante... Mesmo que ninguém venha a saber, são tristes certas coisas que o homem tem que passar enquanto jogado neste mundo, sem amparos, sem muletas. Para sempre irá recordar do portador entregando a correspondência, a sua leitura, no final da página a assinatura. Não há outro Lúcifer Pernóstico na cidade. Refiro-me ao asno. Ninguém ser humano colocaria este nome no filho. Creio que nem louco faria uma coisa desta. Aliás, padre algum iria batizar uma criança com o nome de Lúcifer. Nem mesmo padre Rodolfo Argel – por inteiro, insano. Fora diretor de um dos estabelecimentos de ensino em Cachoeira dos Lobos segundo disseram alguns viajantes esperando o ônibus dar a partida, estivera a passar devagar, carregando ossos para levar à fabrica de farinha de osso, ouvira esta informação.


Subo ou desço a rua, puxando a carroça. Olho-a de soslaio. Só isto. Não vai começar a achincalhar o meu dono. Iria chamá-lo de asno? Até que poderia sim, mas como achincalhar sem dizer o que aconteceu. Dissesse só os palavrões. A vizinhança toda chegaria à porta. Só um comentário: “está doida varrida”. Seria a primeira loucura causada por mim, atrás desta viriam outras tantas. Lúcifer Pernóstico começou a enlouquecer as pessoas seria o comentário de leste a oeste, norte a sul.


O título que dera à correspondência: “Sempre olhando para a página”. Modéstia às cobras, fora genial. Significa que os sentimentos só poderão ser vividos, nunca falados, expressados. Um momento inesquecível.


Ah, finalmente consegui parar de relinchar. O relincho durou o tempo necessário para organizar as coisas que me surgiam à mente. Pensando bem, creio que fora cruel com a senhora o portador haver sido tão diplomata e amigo. Se não houvesse sido, quem iria sentir tudo isso era o senhor-autoridade. Mas isto é da natureza humana, tudo tem de ser vivido entre os homens, tudo tem que ser compartilhado. Apaixonei-me tanto de idéias e pensamento, da condição humana, que em público nunca tiro os olhos homens, suas mazelas e pitis, por mais os gozasse depois em segredo. Assim conheci e
tive por certo julgamento e razão que a condição humana e suas características ridículas e viperinas é a principal parte da
formosura das ironias e sarcarmos, cinismo, por duas razões: ou porque é a primeira coisa que ocorre aos olhos e mostra-nos; ou porque o que a aparência adorna nos outros membros e alegra-os, isto faz na cabeça o resplendor
natural das gargalhadas. Em se tratando de cônjuges, tudo deve ser dito. Estava escrito nas estrelas que ela receberia a correspondência, quem sabe por haver muito andava ela escondendo algumas coisas de seu esposo? Nada se pode omitir. Não é assim que se mostra o quanto consideramos o outro?


Não fora eu quem o instruí. Digamos que tenha intuído algo. Não se trata de portador insigne, aliás apenas bem instruído na língua dos asnos. Se fosse analfabeto de pai, mãe e fenos, como poderia ter sido tão pomposo ao se apresentar à senhora?


Abaixo a cabeça. Aos poucos, os transeuntes que interromperam os seus afazeres para me olhar relinchando sem parar, ninguém entendendo o porquê de relinchar tanto, saem comentando: “Lúcifer Pernóstico só falta falar. Pensar já não temos dúvida”. Não há cobra por perto. Se houvesse, a carroça seria movida. Não estou sendo surrado por meu dono.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


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