#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto; ROMANCE



CAPÍTULO XII


Em primeira instância, agradeço ao senhor-autoridade o privilégio de receber a correspondência a mim enviada, o que me torna um equus asinus muito orgulhoso de sua própria raça, um prazer e alegria, quase que me deito ao chão, enquanto espero o próximo frete. Creio saber o porquê de ser muito difundido no mundo: por ser utilizado desde tempos imemoriais como animal de tração e carga. Sou puxador de carroça pelas ruas da cidade, a fim de sustentar a mim e ao meu dono; receber correspondência de homem tão importante, um dos maiores de nossa comunidade, é motivo de orgulho sem eiras, deixando as beiras para quem quiser outorgar-me mais que orgulho.


Jamais poderia ser injusto e ingrato com o meu dono. Nunca me fora deixado de dar de comer. Felizmente, ele não tem os pequenos vícios dos homens, não gasta o dinheiro que ganhamos com suor nas ninharias. Vivemos de nosso trabalho dignamente. Vivemos para comprar os nossos alimentos, são eles que nos dão forças para o trabalho contínuo rua acima, rua abaixo.


Em segunda instância, respondendo às suas palavras, nas entrelinhas e linhas chamando-me de presunçoso, o melhor seria se me preocupasse apenas com o puxar de minha carroça, deixando os assuntos sérios para os homens que têm a engenhosidade e arte de tratar deles, contribuindo para uma comunidade sadia de idéias e instintos.


Digo-lhe, senhor-autoridade, que não fora eu a escrever o que recebera, e sim alguém quem tornara legíveis os meus pensamentos, verdadeiro expert na língua dos asnos; sabe o senhor que não recebi nenhum outro dom gratuito senão o de relinchar, puxar carroça, comer no coxo a minha ração de cada dia. Não tenho dons para escrever. Ah, imagine que eu tivesse unicamente o dom de falar, nem isso posso. O senso comum se engana redondamente quando pensa, diz, sente que os equus asinus são de todo desprovidos de inteligência.


Aliás, senhor-autoridade, dizendo ser eu presumido, presunçoso, gostaria de lhe lembrar que ainda não me aprofundei na linguagem erudita de sua língua-mãe, não compreendo o que estes termos possam significar, qual o sentido deles em verdade.


Chama-me presunçoso, presumido, por me julgar um grande pensador, um filósofo de última ordem. O que achincalha os homens, mostrando-lhes que sou eu quem tem o dom de pensar, de observar as mazelas quotidianas de nossa sociedade. Deveria eu considerar que sou apenas um “asno que puxa a carroça” descidas e ladeiras, a fim de entregar os fretes, e, como já disse, sustentar a vida de meu dono e minha. “Que arrogância é esta de querer vir me ensinar a minha língua-mãe? Você é um asno. Não se esqueça!”.


Creio ser o senhor-autoridade homem de privilegiada cultura, intelectualidade, decide os caminhos de sua querida gente, então quem acha que lhe desejo ensinar é porque alguma autoridade exerço. Mas não. Não tenho poderes magistrais, se desejar, do magistério.


Devo-lhe dizer que, passando numa de nossas mais movimentadas ruas da cidade, encontrei-me com um companheiro. Empaquei-me. Comecei a relinchar e levantar as patas dianteiras, correndo o risco de o meu patrão cair para trás. O companheiro continuou a olhar-me até que, por uma intuição, ou algo neste gênero, não sabendo definir muito bem, começou a olhar para os movimentos de meus beiços, traduzindo o que estava a manifestar. Sentou-se à calçada, tomou de um caderno de cartas que havia comprado naquele momento, passando a escrever o que lhe ditava eu com os beiços. Pode imaginar quantas pessoas pararam e ficaram a olhar, os donos de casas comerciais ficaram à porta, conversando, dizendo de mim que estava a ditar a missiva ao senhor. Alguns repórteres de jornal, dois, quiseram conversar com meu dono, mas ele ficou em silêncio. Não disse uma palavra. Não permitiu que ninguém tirasse fotos. Um lero-lero na rua do inferno. Aquela cena, senhor autoridade, jamais será esquecida de nossa comunidade, lembrar-se-ão todos, os que assistiram a ela, os que ficaram sabendo dela.


Terminando, lera tudo o que, com muita paciência e muita inteligência, desculpando-me o senhor-autoridade se as palavras rimam, como lhe é próprio, aliás, de todos os homens. Os homens, os asnos que rimam são inúteis à sociedade. Concordei com tudo o que conseguira traduzir, sentindo muito por não poder assinar, mas com um último relincho e levantar das pernas dianteiras compreendera o companheiro que devia colocar o nome que todos me dão: “Lúcifer Pernóstico”.


Não sou presunçoso algum, como escrevera e insinuara, julgando-me um asno intelectual, o representante último de responsabilidades e compromissos com todos os homens. Não o sou, senhor-autoridade. Na minha correspondência, está muito bem escrito que só tenho os dons de relinchar e puxar carroça morro acima, morro abaixo.


Se isto lhe veio à mente, é que o senhor tomou em consideração estar sendo escrito por um homem, advindo-lhe todos os seus ódios e raivas de mim, devido à linguagem, ao modo e estilo como traduzira ele o que lhe estava ditando através de relinchos e mostrações de meus dentes brancos, claro já faltando alguns devido às primaveras que vão bem longe. As palavras dele é que lhe fizeram assim analisar e concluir.


Não se julgue ofendido, ressentido, se lhe digo que é até mais fácil para o senhor-autoridade atribuir a responsabilidade ao meu dono, que é humano, do que a mim, equus asinus. Esta transferência é por demais comum, ninguém mais dá atenção a estas picuinhas: transferências são necessárias, conservam os princípios dignos.


Não tivera intenção alguma de lhe ofender, menosprezar, pedi-lhe unicamente que fosse o mais sério possível em mandar publicar certos prospectos que ofendem a dignidade e honra de alguns homens quem lutam por condições melhores e estilos de vida agradáveis para toda a nossa comunidade, respeitando a História que está sendo construída com o suor de suas testas, às vezes também com a contração das orelhas que no inverno os homens disputam de quem é a sua propriedade.


Recebo, ora, a sua correspondência, uma resposta a si enviei – desculpe-me esta construção, tendo-lhe já dito que sou muitíssimo ingênuo, um asno mesmo em se tratando da língua erudita registrada nos manuais escolares. Creio que devesse dizer “uma resposta lhe enviada”, ao invés deste absurdo que estou dizendo, o que comprova com todas as letras que realmente a minha função é subir e descer ruas, desembestado, entregando as encomendas que são feitas ao meu dono.


A ironia do senhor quanto à espécie de varal com uma cenoura dependurada, a distância me impede de abocanhá-la, dizendo que por aí se compreende bem quem sou, “é inútil, jamais conseguirá esta façanha”. De novo, estas interpretações estão sendo feitas por um homem. Em verdade, fora um modo de meu dono se tornar conhecido, uma estratégia de mercado.


Não retiro de modo algum o que está escrito por meu companheiro. Está escrito, e o que está escrito não pode mais ser desconhecido, se o for hoje, amanhã inevitavelmente será lançado com todas as pompas e honras, até sei quando, quando já não mais restar nada de mim, jogado nalgum terreno baldio longe da comunidade para não incomodar os homens com o cheiro fétido de meu corpo, alimento os urubus, a minha inutilidade serviu de alimento às aves do céu.


Senhor-autoridade, a bem do que é verdadeiro e espiritual, há muito, quem sabe desde a eternidade, sei que no terreno das almas nada há de baldio, se pode compreender a profundidade desta imagem. Ninguém poderá negar o que está escrito. Adianto-lhe desde já que não nego qualquer palavra, qualquer idéia, ao contrário, endosso alegre e relinchante, se assim pode me compreender mais facilmente.


Tenho conhecimentos de um homem quem escrevia no jornal suas críticas deslavadas a todas as condutas, posturas e atitudes da comunidade ateniense atéia; um dos editores-chefe, desejando que ele não tivesse muito espaço para escrever, sugeriu-lhe que diminuísse o tamanho da matéria, o leitor iria gostar ainda mais por ser pequena. Poderia ensinar-lhe a escrever suas matérias em jornal. Respondeu-lhe: “Aqui em Atenas Atéia não há quem me possa ensinar a escrever; ao contrário, sou eu quem lhes posso ensinar a garatujar alguma palavra. Questione alguns, pedindo-lhes seriedade no juízo: eles mesmos lhe responderão que se alguém tentar plagiar-me o destino certo e evidente será o perfeito ridículo; se ouvirem o pedido que lhes fizera, com certeza não irão negar, mesmo que isso denigra a imagem dos orgulhos ostentados”. Mesmo que ele não esteja mais publicando uma só letra nos tablóides, o que já publicara está aí por todo o sempre. Alguém sempre guarda muito bem escondido, com o tempo passa a ser um documento valioso para pesquisadores, estando eles dispostos a pagar uma pequena fortuna pelo escrito.


Desculpe-me, senhor-autoridade, se empato o seu tempo lendo o que o companheiro conseguiu traduzir sobre o pedido que lhe faço de cuidar com carinho e benevolência de nossa história, não deixando que seja adulterada por algumas facções e mesmo indivíduos em particular. Não se esqueça, senhor-autoridade, de que uma das coisas ditas por aquela autoridade assassinada fora simplesmente sobre alguns poucos que estão enchendo o bolso de dinheiro. Se digo que não sou um asno pensante, um grande pensador, é que qualquer ser humano poderia estar enviando esta correspondência, qualquer asno de todo imbecil diria com todas as letras, sem faltar uma sequer no devido lugar. Não é necessário ser inteligente, culto, intelectual para saber que as coisas aqui em nossa comunidade andam muito mal, estão verdadeiramente “pretas”. “Mas o que eu quero é lhe dizer/Que a coisa aqui está preta”, servindo de um dos versos de Chico Buarque de Hollanda.


Não estou interessado em tecer estas ou aquelas considerações peculiares de autoridades, mas, mesmo que, de um lado, o senhor-autoridade tenha escrito os nomes das cidades que compõem o circuito, de eventos do circuito do diamante, de outro, as cidades que compõem este circuito, não há um evento que esteja ligado diretamente ao diamante, isto fora o que desejei mesmo expressar. A questão é a diferença entre nós – o senhor-autoridade, homem, indivíduo, cidadão, eu, equus asinus. Interpretou a correspondência em nível de homem quem escrevera.


Pergunto-lhe: “Há alguma coisa com relação ao diamante nessas regiões que a comunidade não possa ter consciência?” Deixo-lhe a indagação: creio que deverá estar sempre olhando para aquelas páginas, tentando entender o que dizem, a fim de responder-me à altura, e jamais lhe será possível fazê-lo.


Contudo, senhor-autoridade, reafirmo os meus objetivos e responsabilidades com a nossa história. Não são só os homens quem, em verdade, sem a história, sem a memória, se tornam imbecis, idiotas, o nada; os equus asinos não poderão nem mesmo exercer a função que lhes cabe, utilizado desde tempos imemoriais como animal de tração e carga. Não há homens para os utilizar. Creio isto lhe ser de conhecimento.


Quem sabe terminando, pois que o dono já começa a ficar nervoso, tem hora marcada para entregar um frete de areia que carrego na carroça, ameaçando-me com os olhares para não demorar com isto de estar ditando a um homem a correspondência-resposta. Permitiu, pois que não viu outro modo de contornar a situação. Poderia espancar-me até deixar-me quieto no chão que continuaria relinchando, mostrando os dentes brancos.


Desejo-lhe, senhor-autoridade, muitos empreendimentos e realizações sempre voltados para o bem-comum de todos os cidadãos, às Artes e Culturas. Lembrando-lhe que são os outros que nos fazem, e não me importa o que fazem de mim, sou eu quem me faço a partir do que fizeram de mim, e, portanto, se o senhor-autoridade é homem quem está interessado pelo conhecimento real de nossa história, condição sine qua non para o desenvolvimento e o progresso, não resta a ninguém alternativa outra senão a de reconhecer a sua importância.


A fim de que tenha a ciência de que estou muito bem informado das coisas que acontecem nessa comunidade, posso lhe dizer sobre um acontecimento num bar entre o senhor e o autor das matérias críticas. Estava ele e a esposa comendo uma pizza, quando o senhor chegara e, de imediato, fora cumprimentar a sua mulher. Ela respondeu-lhe ao cumprimento, apertando-lhe a mão, dando um sorriso. Quando fora fazer o mesmo com ele, não lhe estendera a mão, abaixara a cabeça. Não houve quem no referido restaurante que não olhasse a cena. Envergonhado, sentou-se de costa para ele, e poucas palavras trocou com a sua esposa, enquanto tomaram uma cerveja e o senhor ainda tomara uns três whiskys com gelo e limão. Imaginara, pensara, não me é dado isto definir ou conceituar, por estarem em lugar público, um restaurante pequeno, numa cidade do interior se conhece todos, ele iria ser formal e diplomata. Ainda não se conscientizara de que ele não é deste feitio, o que pensa, sente, não tem medo do que pensa, do que sente. Se não fora cumprimentado por ele, a razão dizia respeito a quê? Disto não estou informado, mas ouvira dizer que andara comentando absurdos sobre a sua pessoa.
Não creio que se dirigirá a mim outra vez. Não é verdade que dissera à pessoa que fora à noite à minha casa, num carro de vidros escuros, que mantivesse toda a discrição, seria muito ridicularizado se a população soubesse que recebeu uma correspondência de um asno, dando a resposta? Meu senhor é também analfabeto de pai, mãe e entretantos.


Gostaria de saber o que mesmo aconteceu em Roma. Se não me engano é “cavalo branco”. Lembrou-me haver ouvido “cavalo branco de César”, quanto ao nome do homem é que não estou certo. Não me reconheço e julgo um gênio da memória, guardar tudo que ouvi por todos os anos que carrego fretes ruas abaixo, ruas acima, em porta de escolas, faculdades, lugares de ensinamentos de muitas idéias importantes ao longo dos milênios de fomes seculares...


Sendo História, a população saber que enviou correspondência-resposta ao asno Lúcifer Pernóstico será muito comprometedor.
Bem, senhor-autoridade, sem mais relinchos, felicidades hoje e sempre.
Lúcifer Pernóstico.


Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


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