#LÚCIFER PERNÓSTICO# - ROMANCE - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Lemos: SÁTIRA FILOSÓFICA



Terá sido a intenção do carroceiro, colocando um varal com uma cenoura dependurada à frente da carroça, a uma distância em que o asno não a conseguisse alcançar, um modo de suscitar no asno o desejo de comer a cenoura? Se esta fora a sua intenção, a de suscitar o desejo, estaria o carroceiro castigando alguma atitude do asno que ele não concordara, merecendo este castigo? Talvez esta atitude do carroceiro não tenha nada a ver com o seu asno, existe uma outra intenção, digamos, atrás dos panos, que ele apenas intuíra e o tempo iria enfim mostrá-la com todas as pompas e empáfias.


São questionamentos que faço apenas para dar início a esta escritura. Antes de a começar, estive por alguns momentos, sentado na cadeira de sofá, cofiando o bigode, procurando algo a escrever, pois que faz uma semana e quase meia que nada escrevo. O título nascera nestes minutos poucos, devo confessar, em que estive procurando o algo que escrever, pensando ser bem sugestivo, causar uma curiosidade em saber que intenção fora a do carroceiro, despertar em alguém o sentimento de uma ironia com esta atitude do carroceiro.


Sem dúvida, há quando um asno empaca, não havendo surra capaz de fazer com que o animal ao menos retire uma das patas do lugar. Morre de tanto apanhar, mas não se move. Daí, creio eu, que tenha nascido um dito popular acerca de pessoas que por nada deste mundo mude de opinião, quando decide por algo. São os “burros empacados”. São os “cabeças-duras”.


Talvez o asno Lúcifer Pernóstico deste carroceiro seja daqueles que vivem sempre a empacar, atrasando o seu trabalho, as entregas em horas certas, tendo-o prejudicado algumas vezes, perdendo fregueses, e este é o seu modo de trabalho. Teve então a grande idéia de colocar um varal à frente de sua carroça, com uma cenoura, a fim de suscitar no animal o desejo de comer o alimento, sendo-lhe impossível fazê-lo, pois que fora colocado a uma distância tal que não era nem possível aproximar o focinho. Assim, não empacaria mais nunca. O carroceiro não mais seria prejudicado, não perderia mais os seus fretes.


Sem dúvida, uma grande idéia a deste carroceiro. Todos os esforços do asno seriam de alcançar a cenoura, degustá-la com todos os prazeres e alegrias do mundo. Com os seus esforços, faria a carroça andar, não importando se estava numa subida ou numa ladeira. Atrás de si, moveria tudo, menos alcançar a cenoura.Todos os esforços do asno para comer a cenoura fazem avançar o veículo inteiro, incluindo a cenoura, que se mantém à mesma distância do asno. Imagino o momento em que o asno esteja com uma fome daquelas, a carroça desembestada pelas ruas, o carroceiro se segurando para não ser jogado fora.


Fora sim uma idéia muito engenhosa esta a do carroceiro. Um modo inteligente que encontrara de seu asno não mais empacar. Algo tinha de ser feito, tivera esta idéia.


Imagino se este carroceiro não tenha tido esta idéia devido às atitudes de seu asno de estar empacando sempre em momentos impróprios. Aliás, o seu asno era muito trabalhador, muito pouco tinha de chicoteá-lo para andar mais depressa, para subir as ladeiras. Jamais ele tinha perdido os seus fretes, entregou-lhes sempre no tempo e hora devidos.


Imagino se este carroceiro, ao invés de suscitar o desejo do asno de comer a cenoura, tenha tido esta idéia para suscitar nos homens algo que eles mesmos se negavam de pés juntos a aceitar, a admitir, enfim, a assumir. Ele, o carroceiro, com toda a sua simplicidade, humildade, tinha já descoberto, de início, parecendo-lhe algo sobremodo absurdo, julgando até que houvesse perdido os freios nalguma rua ou ladeira da cidade, julgando ter perdido o juízo, mas o tempo mostrara-lhe que não. O tempo mostrara-lhe que estava mais que certo. Aliás, sentiu-se o mais orgulhoso dos homens, um carroceiro simples e humilde descobrira uma das maiores verdades do mundo, quando existem homens importantes, doutores, cientistas, estes que se julgam os deuses da humanidade, nem de longe pensaram a respeito.


Sendo assim, tinha de suscitar nos homens o questionamento desta verdade, fazer-lhes espremer os miolos. Óbvio que os homens, tendo também percebido a verdade, alguns a tenha aceite, não sem angústia e desespero, não iriam dizer que ele, o carroceiro, tinha sido o mentor intelectual desta verdade, tinha ele sido o responsável por lhes mostrá-la. Se alguém tivesse de ser indicado como quem a descobriu, encontrariam um cientista famoso, um filósofo do momento, alguém de importância. Humilhante um carroceiro ser o descobridor de uma verdade. Existem homens próprios para as descobertas. Não estava ele preocupado em figurar nos anais da história como quem fizera os homens assumir a realidade da vida humana.


Os homens corremos atrás de um possível que nosso próprio trajeto faz aparecer, que não passa de nosso trajeto e, por isso mesmo, define-se como fora de alcance. Corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais pode se alcançar.


Quem sabe o carroceiro com a sua atitude de colocar um varal, com uma cenoura dependurada, à frente de sua carroça, não tenha tido a idéia de fazer com que o seu asno não mais empacasse, tornasse-se um asno eficiente, e sim mostrar aos homens que todas as suas empáfias e orgulhos, mostrando com sorrisos e alegrias os bens materiais mais sofisticados, os saldos bancários bem rechonchudos, não tinham o menor sentido, pois que os homens somos o ser que jamais pode se alcançar.


Se fora esta a sua verdadeira intenção, não se sabe, pois não dissera, quem sabe até para evitar situações mais constrangedoras. Sem dúvida, causar-lhe-ia muitos contratempos. Não que ninguém fosse aceitar ter sido ele quem mostrara esta verdade, poderia ter sido qualquer um, mas esta verdade, com certeza, iria insatisfazer a todos, iria deixar os homens revoltados, alguns suicídios e loucuras. Seria ele crucificado por causa disso. Enfim, os homens não estão preparados para verdade alguma.


O fato é que a carroça com o varal, uma cenoura dependurada, à frente dela, continua pelas ruas da cidade.


(#RIODEJANEIRO#, 27 DE AGOSTO DE 2018)


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