#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO V


Seja lá qual fora a intenção do carroceiro em colocar varal à frente da carroça, com cenoura dependurada, o fato é que o asno continua a puxar a carroça, subindo ou descendo ruas, ladeiras, levando e trazendo fretes, alguns mais pesados, outros menos. Talvez o carroceiro não tinha tido qualquer intenção, era apenas enfeite na carroça, o que chamava atenção de todos, fazendo isto com que o objeto de trabalho fosse diferente de todos os outros, fazendo isto com que conseguisse mais trabalhos, ganhasse um pouco mais, pudesse usufruir conforto em sua casinha.


Em verdade, Lúcifer Pernóstico continua a caminhada, trabalho, e, com efeito, não sabe nem pensa que nalguma curva de ruas, becos, alamedas e avenidas, a morte estará esperando por ele; trabalhou, trabalhou, e a vida teve o final, de qualquer modo teria, não nascera para ser o único asno eterno em toda a história do mundo e da humanidade. Se o asno sabe de sua morte inevitável, teria de ser asno para o saber, teria de sair pelas ruas da cidade puxando carroça. Bem verdade que há homens que saem pelas ruas, puxando carrocinha, catando lixo, produtos descartáveis que servem para reciclagem, e com isto conseguem ganhar um dinheirinho que possa valer um quilo de feijão ou arroz ou retalhos de carne. Estes homens sabem de suas mortes inevitáveis, aliás, até humanas, pois que viver com tantas dificuldades e faltas não é nada fácil de suportar, de agüentar, vendo outros homens que jogam restos de caviar no caixote de lixo.


Não sabendo como dar continuidade, estando com sede, dirigiu-se Credólio Cruzilis ao banheiro, abrindo a torneira, aparando água no copo, olhando no espelho, dando uma gargalhada, dizendo de si para si próprio: “Hoje é dia do asno!...”. Esta atitude fez-lhe continuar a escrever, despertando algo mais profundo no espírito. Até a título de um cinismo, de uma ironia.


Imaginou neste instante o asno na sua hora derradeira, o dia mais difícil para o carroceiro, dando algumas boas e extremas relinchadas. A sua atitude derradeira diante da cenoura à frente. Quem sabe até com gestos nos beiços pedisse que lhe aproximasse a cenoura do nariz para saber-lhe o cheiro, morrer com o cheiro da cenoura que lhe acompanhou anos a fio? O que importa se a inspiração fora em Goethe quem pediu, o seu último pedido, no leito de morte, que abrissem a janela para que a luz entrasse no quarto? Jamais conseguira alcançá-la, mas é bem verdade que continuara trabalhando, trabalhando, enfim nascera para trabalhar, dar de sobrevivência ao seu dono, a sua missão estava cumprida. Quem sabe no último suspiro não aceitasse que a cenoura, enfim, o incentivou ainda mais a levar e trazer fretes?


Por vezes, nalgum momento de repouso, fica a pensar em todas as lutas, esforços para a sobrevivência, para a realização de sonhos e desejos mais profundos, tantas dores, tantos sofrimentos, sentindo-se alegre e feliz por isto ou aquilo, e ao final e em conseqüência natural da vida, vem a morte. Pensa, pensa, pensa sobre isto de lutar tanto e ao cabo encontrar a morte. Para que fora então a vida?


Desde sempre soubera que é um ser que jamais pode realizar a vida em todos os sentidos. Há momentos em que olha para Hécuba. Não conseguiria viver sem a presença dela, ama-a tanto. Em suas orações, antes de dormir, não se esquece de pedir a Deus para morrer antes dela. Comentara com ela sobre o desejo, mas dissera categoricamente: “Se não tem outra coisa para dizer, fique em silêncio”. Aquando sai de casa para o trabalho, vem a casa almoçar, dormir, levantar, sempre lhe diz afetuosa e carinhosamente “Maria Santíssima lhe abençoe”.


Feliz é o asno que não sabe desta verdade, verdade esta impossível de ser contestada. Morre sem ter sabido antes que iria morrer. Credólio jamais aceitara a morte – não diria ter medo dela, mas gostar muito de viver.


Trabalha. A sua função é o trabalho. Trabalha, mas sabe que vai morrer um dia. Diante disso, pensa consigo que também é feliz por saber de sua morte, por algum dia ir morrer, enfim “fui”. Se em vida só pôde dizer que foi isto ou aquilo só o fez em relação ao passado. No presente, nada. A morte, ao contrário, mostrou-lhe que é, e é o que tiver feito de si. Não haverá mais presente, tendo de refazer a todo instante a caminhada. A caminhada fora feita.


Aliás, em questionando sobre o término de outro artigo, tendo-se sentido orgulhoso e feliz com ele, jamais iria outra vez alcançar uma façanha tão sugestiva, mostrando o sentido de todos os homens no mundo, crê que este orgulho e esta felicidade em dizer que segue desembestado pelo mundo, olhando para frente, de cabeça erguida, fora apenas fuga da dor que se revelou em si, dor de saber que continua andando, carregando suas cruzes, puxando problemas e conflitos, arrastando os traumas, nada podendo fazer para mudar este quadro indecente e arbitrário.


O orgulho tinha apenas o sentido de envelar as dores atrozes que se lhe ameaçavam mostrar. O que mais lhe chamou a atenção fora o término da frase, “de cabeça erguida”.


Só mesmo diante de dores atrozes, com a presença destas verdades que apresenta, poderia dizer que segue de cabeça erguida. Por mais forte que seja ele, e não tem dúvidas de sua extrema força espiritual, que, aliás, ajudara-lhe em muitos momentos difíceis, não crê não seja possível num momento qualquer abaixar a cabeça. Não acredita que haja homens que só andem de cabeça erguida a todo tempo, por toda a vida. Se não a abaixam em presença de outros homens, sozinhos em suas casas, andam com ela quase fincada no chão, remoendo as muitas dores que amassam em seus íntimos, que reprimem a todo custo.
Se no instante derradeiro do asno, o que acontecera fora exatamente o seu bom e extremo relincho, enfim a sua missão estava cumprida, diz o mesmo com relação a si, não no instante derradeiro de sua vida, mas diante de sua própria cabeça, abaixa-a frente aos homens, frente a humanidade, não sem antes dar uma boa gargalhada, enfim tem a empáfia de a abaixar, o que outros não fazem. A sua missão está cumprida: abaixar a cabeça no momento das grandes dificuldades, mas com certeza levanta-a um segundo depois.


Na sua família isto é mais do que comum: todos caem, mas logo levantam, e continuam a andar, desembestados pelo mundo, de cabeça erguida.
(#RIODEJANEIRO#, 30 DE AGOSTO DE 2018)


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