#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO XIII - PARTE I


Estranho isto de relinchar que não temos em nossa cidade problemas de alagamento, se chove continuamente por dias, na linguagem de nosso povo, “Mas tem chovido, hein!”. Às vezes, em tom jocoso, quando se trata de jogar indiretas para alguém que está incomodando, deveria ter um “desconfiômetro”, se é assim que se escreve a palavra; para qualquer eventualidade, coloco-a entre aspas. Às vezes, por a chuva continuar num lugar a mil e trezentos metros acima do nível do mar pela manhã as serras estão cobertas de neblina, os sentimentos se tornam nostálgicos, melancólicos, saudosos, uma saudade imensa daquilo que não foi, daquilo que não vivera.


Isto num nível de consideração, pois que noutro há quem diga muitos adágios de relacionamento com o fenômeno natural, a chuva. “Tudo que cai, aqui desce”, isto se referindo às ladeiras ao longo de toda a cidade. Realmente, é uma dádiva, pois que estamos a mil e trezentos metros de altura do nível do mar, região montanhosa, assim as chuvas sendo mais intensas. Não temos problema algum de alagamento. Muito embora a água que caia desça para o Rio Grande, lá à beira existem muitas casas construídas, colocando em risco a vida dos pobres, miseráveis.


Subo a rua São Francisco. Tenho que entregar um frete de telhas na rua das Biquinhas, a residência de um historiador, um dos mais importantes de nossa atualidade, tem goteira por todos os lados. Com dificuldades, conseguiu contratar um pedreiro para colocar as telhas. Em dias de chuva, isto é difícil; contudo, na minha condição de equus asinus, não me cabe questionar se é possível ou impossível “colocar telhas em dia de chuva”.Creio que será ele mesmo a empreender a jornada, ainda que escorregue e se despenque, a altura é mínima, se algo acontecer é a quebra de algum membro, nada mais. É homem forte, robusto.


Assim, pensar num dia de chuva intensa, com a carroça cheia de telhas, um peso enorme para levar ladeira acima, é uma atitude digna de um asno, não haja dúvida, é por esta razão que sigo a minha trilha, necessito garantir a sobrevivência. Para o meu dono não cai dinheiro do céu, isto sendo ele homem, sendo eu asno, aí é que não cai mesmo, qual a utilidade do dinheiro para mim?


Lembrou-me aquando na Rua da Glória trabalhei algumas vezes entregando carteiras de estudantes, ouvira alguém contar, não me importa se piadinha, se lenda, se fato real. Um grande filósofo da humanidade, vendo o carroceiro surrar o seu cavalo, sentiu as dores do cavalo, pulando em seu pescoço, desejava salvar o cavalo da surra. Neste instante, ensandeceu-se por completo. Dez anos de sandice, com alguns intervalos de lucidez, a língua ferina se mostrando ainda mais, obras capitais desse filósofo nasceram neste ínterim da sandice e da lucidez.


O meu dono está em cima da carroça, com uma capa longa, de botas, guarda-chuva. Seria muitíssimo estranho se ele colocasse uma lona por sobre mim, para me proteger da chuva, não adoeça. Absurdo, se ele ficasse encarrapitado no meu pescoço com o guarda-chuva aberto para não molhar a minha cabeça. Isto é o que se chama inverossímil. Mas, em compensação, se ele está tirando a entrega da carroça, tendo de trabalhar, coloca a lona sobre mim. É um homem muito bom comigo. Ninguém pode imaginar o quanto. Talvez por não desejar ouvir de alguém: “Que vergonha!... Ser sustentado por um asno e ainda por cima não ter a mínima consideração por ele”.


Creio que utilizando disto de os comentários de carroceiros não serem dados atenção aos homens da sociedade, dos empreendimentos, das idéias, não ter qualquer validade é que o meu dono comentara com alguém sobre a correspondência-resposta que enviei ao senhor-autoridade. “Cumpadre, seu Lúcifer Pernóstico é um burro diferente dos outros”. Admirou-se. Palitou os dentes, creio que pensando o que diria para completar as suas palavras. “Corajoso”, sorriu.


Por que “corajoso” é que não pude compreender. Seria, se um homem, de importância ou não, escrevesse naquele tom e medida, mas nas minhas condições, só restam duas alternativas: dar atenção ou virar as costas. Se der atenção, será criticado: donde já se viu dar atenção a um asno? O mais sábio é virar as costas, isto de dar atenção a asnos é comprometedor.


Aconteceu-me de passar na Praça do Mercado Municipal, estando a acontecer um evento social, lançamento de livro histórico, e as poucas palavras que ouvi do mestre-cerimônia é que podem ser consideradas como ato ousado e corajoso. Enfim, um estrangeiro que chegara a nossa cidade, enraizara-se, casara, não tendo ainda ano e meio de residência e domicílio fazer críticas tão audazes e sérias, chamar a muitos de “osso de pescoço”. Aí, sim, é ato corajoso.
Necessita de sua sobrevivência. Se não procurar agradar aos senhores-autoridades, não endossar as suas atitudes, acompanhadas de mazelas e pitis de toda ordem, corre o risco de não arrumar modo de ganhar dinheiro, defender a sua vida dignamente. Há homens sem qualquer experiência profissional exercendo cargos de alto nível por sempre agradar, elogiar, defender as autoridades. Certa vez, subindo a rua Direita, na esquina da igreja frente à Prefeitura, se não me engano carregando sacos de cimento, ouvi a secretária de cultura perguntar a alguém o que é “cultura”, ela não sabia. Nora do prefeito, teve os seus privilégios. Há militares reformados exercendo cargo de professor na faculdade, tendo apenas o segundo grau concluído. Se alguém aparecer com a boca cheia de formigas num terreno baldio da cidade, ninguém dá a mínima atenção, sabe que tudo fora devido a alguma denúncia de arbitrariedades – o melhor lugar seria no Mutirão, lá ninguém mais dá atenção para essas coisas, estão acostumados com os corpos no meio do pasto. Dizendo o que ouvira, e na minha humilde condição de asno assim entendera, palavras muito diretas, críticas ferinas.


Se, por um momento, pensei em arrebentar o que me prendia à carroça, indo postar-me ao seu lado, de costas, para qualquer conviva ser recebido com as minhas patas, é que senti haver no mestre-cerimônia sinceridade e responsabilidade com as suas idéias. Na minha parca condição, entendo que os homens sinceros e responsáveis, aqueles que lutam pelo bem-comum, a identidade histórica, deveriam ser considerados patrimônio da comunidade. Na realidade, não é assim. São os primeiros marginalizados, e tudo pode ser feito para lhes destruir, vencer. Isto é que é ironia – deveria dizer do destino ou da vida mesma: há homens quem podem morrer, mas as suas idéias prolongam-se pela eternidade.


Sendo ele o mestre-cerimônia do lançamento do livro, um homem de idéias, pensador, escritor, está sempre divorciado do real, do efetivo; compreende-se que ele às vezes possa se cansar desesperadamente desta eterna “irrealidade”, e falsidade de sua existência mais íntima – e faça então a tentativa de irromper no que lhe é mais proibido, no real, a tentativa de ser real.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


Comentários