#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto; ROMANCE



CAPÍTULO XIII - PARTE II


Compreendi que ele se cansou de sua liberdade fácil e sensaborona, entregando-se à responsabilidade, assim tirou o osso de pescoço da carne, manta, destilou o seu veneno. Não mais se importava com a opinião de alguns, de todos, era a sua responsabilidade, aquela era a sua função, não se afastaria dela de modo algum. São homens que merecem ser considerados patrimônio.


Se não rompi com o que me estava prendendo à carroça, é que não me sentia cansado da eterna realidade. Quem sabe algum dia me tenha cansado de ser considerado um asno cuja função é puxar carroça, entregando fretes, leite à porta das casas, isto e aquilo mais, passara a ouvir tudo o que os homens falam, armazenando até que me instruí. Em verdade, sinto-me satisfeito e realizado com esta função, qual é a indignidade dela? Não consigo pensar uma qualquer. Ser puxador de carroça é mais digno e honroso que cargos importantes na sociedade – desde tempos imemoriais sou animal de tração e carga, tenho a minha capacidade, os meus dons e talentos, enquanto que os homens nada disso têm, são uns perfeitos “bananas”. Ademais, sou grato ao meu dono que cuida de mim; claro, está interessado no dinheiro. Tem uma quantia pouca guardada dentro do colchão, costurado, dentro da palha. Numa eventualidade, pode se servir dela.


Acredito que comprará um pedacinho de terra para me enterrar, fazer um cercado de pedras, um mausoléu, e mandar imprimir o seguinte epitáfio: “Só sei que fui um asno pensante”. Caso morra antes de mim, posso indicar onde se encontra o dinheiro, pagar o seu caixão, mandar escrever um epitáfio no seu mausoléu: “fui um homem muito bom e generoso com Lúcifer, o meu asno”.


Não tinha, não tenho qualquer intenção de me tornar real, sou real. Quem teria dúvidas de minha existência? Só mesmo outro asno se lhe tivesse sido dada a dimensão da inteligência e da razão.


Às vezes, fico sem compreender algumas questões dos humanos: ali mesmo, uma senhora, se bem que por baixo de sua sombrinha, com uma criança recém-nascida. A criança pode pegar um resfriado, está muito frio. Isto é inadmissível.
Impossível isto de entender as coisas com apenas poucas palavras ouvidas, por mais inteligente e perspicaz que seja, até mesmo um gênio. Tive oportunidade de ouvir poucas palavras do mestre-cerimônia no lançamento do livro, enquanto uma pequena multidão de pessoas seguia atrás de minha carroça, chorando, comentando o falecimento da criança de onze meses.


Percebi que se houvesse umas trezentas pessoas no evento, duzentos e oitenta desejavam euforicamente esgoelar o mestre-cerimônia. Fora o que entendi. No outro dia, enquanto esperava o funcionário encher a carroça de pedras, ouvira alguém comentar a respeito. Dizia que nas palavras dele havia duplo sentido, quando dissera sobre osso de pescoço.


O osso de pescoço é aquele considerado dificílimo de convivência, intratável em todos os níveis. Aqueles homens que têm a habilidade e inteligência de irritar qualquer um, seja através de atitudes, seja através de palavras. Um insigne senhor registrou em cartório a autoria de um evento musical muito importante em nossa história. Historiadores responsáveis se dis-puseram a in-vestigar e demonstraram que a autoria não era do insigne senhor. Estivera o mestre-cerimônia se referindo a ele, tendo-lhe e havendo-lhe como tal: um osso de pescoço; claro está que se estende a todos os que direta ou indiretamente estavam envolvidos.


Alguns meses após, estando o mestre-cerimônia no Mercado Municipal, sábado pela manhã, passara por este insigne senhor quem registrara o evento como de sua autoria, ouvindo-lhe dizer a alguém com quem estava conversando:


- Olhe bem o traste que se mete a escritor...


Parou de imediato, virando-se, gritando a plenos pulmões:
- Vá pentear macaco, seu imbecil... Ladrão de direitos autorais... Acabei com você diante de todos. Osso de pescoço.


- Venha aqui, vamos conversar direito...


- Ora, se me dá...


Continuou perambulando pelo mercado, parando numa das barracas, tomando uma pinga com limão. A esposa chegara, dizendo-lhe que iria embora. Iria com ela. Não tinha o que fazer ali. Indo embora, na rua Constantino Mota, o insigne senhor dirigiu-se à esposa com duas palavras apenas, levando uma tapa na cara, os óculos caíram...


- Ladrão. Cretino.


A esposa colocou-se no meio deles. A briga iria acontecer. A rua estava cheia de curiosos. Iria acabar apanhando por não enxergar um palmo frente ao nariz. Nada aconteceu.


No domingo, o mestre-cerimônia dirigiu-se à feira de artesanato no bairro Santa Cruz. Hécuba Cruzilis havia ido à missa. Esperava por ela numa boutique, conversando com o proprietário. Após meia-hora observou aquele sujeito a quem dera uma tapa na cara estava na esquina com seu irmão.


Comentara com o amigo. Dissera-lhe este que permanecesse dentro da boutique, não saísse. Com certeza, estavam esperando por ele sair. Isto é mais do que comum: diante de qualquer problema, chama o seu irmão, que é advogado.


Demoraram arredar os pés do lugar. Não saberia dizer, por haver ouvido, na segunda-feira, o que sucedera para se ausentarem por uns minutos. O mestre-cerimônia já havia telefonado para um amigo, fosse lhe apanhar juntamente com a esposa, estavam à tocaia dele. Aproveitou a oportunidade, saindo às pressas, junto com a esposa, descendo o Beco dos Cadáveres, sendo levado para casa. Tivera medo de escorregar nalgum degrau da escada por estar praticamente correndo. Nada sucedera. Por alguns dias, aconselharam o mestre-cerimônia a não se ausentar do centro, os irmãos são traiçoeiros e covardes. Cuidasse.


Poderia levar uma surra de ambos. Isso não aconteceu.
Por outro lado, o mesmo mestre-cerimônia trabalhara em açougue na infância juntamente com o seu progenitor, e seu trabalho preferido era tirar o osso de pescoço da carne. Fazia-o muito bem. Deixava o mínimo de fiapo no osso.


Por último, a referência ao osso de pescoço, a habilidade com a faca, mostrava com lucidez a questão da metodologia na investigação histórica, que tem por objetivo a veracidade, a continuidade dos fatos e acontecimentos.


Não recebi mais qualquer correspondência do senhor-autoridade. Isto será guardado a sete chaves, para o que não estou nas tintas. Mas se ele houvesse ainda se dis-posto a enviar-me alguma, com sinceridade, não mais deixaria de dizer o que senti vontade na primeira. Senti vontade de lhe perguntar: “Acaso, senhor-autoridade sou eu responsável por as pessoas por onde ando se referirem a mim, dizendo que só me falta falar? Têm dúvidas se já não penso? E do senhor-autoridade têm dúvidas imortais de por que não nascera um perfeito asno?”.


Ousadia? Coragem? A ousadia fora do mestre-cerimônia. Colocou em risco a sua sobrevivência, não encontrar meios de sustentar a si e à família. Às suas palavras, dão crédito ou criticam. Às minhas, nada disso.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


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