#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto; ROMANCE



CAPÍTULO XI - PARTE I


Trabalho extra. Sábado à tarde, após “sábado no mercado velho”, a carroça-dos-sem-nome subia a rua Burgalhau, levando mala, algumas pessoas, chorando, rezando, enfim Deus sabe o que faz, e por isso levara-lhes o pequeno ser, onze meses de idade. Estava tudo modificado no mercado velho, cadeiras enfileiradas, mesa de “eventos sociais”, microfone, aparelhagem de som, muitas pessoas, algumas assistindo da praça , onde artesãos vendem os seus produtos.


Lúcifer Pernóstico ouviu: “... é o nosso Orgulho, nossa verdade, nossa esperança...”, que o orador, em verdade, mestre de cerimônia, aquele que abre as solenidades com um discurso de ocasião e histórico, com o dedo indicador da mão direita em riste, movimentando-o, enquanto dizia estas palavras. Havia euforia e êxtase em suas palavras, até é possível que haja sentido um calafrio perpassar-lhe a medula espinhal. Pareceu-lhe que o orador tenha segurado um pouco as suas emoções e sentimentos, não permitindo lágrimas descerem-lhe no rosto. Não por medo, vergonha de se deixar emocionar, deixar-lhe descer lágrimas no rosto. Por precaução: aquelas palavras tinham outro significado, revelavam outras coisas diferentes das que sentira ao pronunciar tais palavras. Não podia explicar, mas algo referente à Cachoeira dos Lobos: era como se ali estivesse decidindo ser o orgulho de lá, estava disposto a construir sua vida, deixar algo que a enobrecesse. Se não segurasse as suas emoções, como iria explicar, denunciar-se-ia, estaria tudo perdido.


Parou por instante para ouvir a continuação das palavras do orador, tempo suficiente para não instigar o seu dono a surrar-lhe, fazendo-lhe continuar viagem, tinha que entregar a mala à porta do Cemitério Municipal, onde algumas outras pessoas esperavam a sua chegada, derramarem suas lágrimas, comentarem quando a criança nascera, havendo até um café com algumas poucas bolachas para os padrinhos, criança linda, tinha os olhos tão espertos; às cinco e meia tinha de lá estar, atrasaria o enterro, os coveiros precisavam descansar.


Observou que o orador, após as palavras eufóricas, diminuíra a voz e lera pausadamente. O seu desejo, quem sabe, era que o público a partir de ali começaria a perceber qual seria o fechamento. Desejava que todos sentisse o que é isso de ser culpado da história. Mas não. A partir daquelas palavras o resto não lhe dizia qualquer respeito, não era a sua realidade. Não houve quem não sentisse a sua dor e sofrimento, pensando não na história de Atenas Atéia, mas na própria vida, as culpas e remorsos.


Teria querido ouvir até ao final. Não precisava mais. Compreendeu o porquê de quase todos desejarem esgoelar o orador. A ponta do punhal mergulhou fundo, abrindo as cicatrizes. O seu dono era homem mui digno com as questões de tempo, aliás, se fosse Inglês não seria tão pontual, apenas para negligenciar a raça contrariando isto, custasse-lhe, ao asno, subir ou descer desembestado as ruas da cidade, estas mesmas que foram cenário de tantos acontecimentos históricos, a fim de realizar as encomendas.


Ouvira o “mestre-cerimônia” dizer: “Aconteça o que acontecer, temos de articular as preocupações de nossa querida e amada cidade como um todo e não nos afastar dela”. Quase que por toque de magia compreendera que algo de arbitrário e gratuito, um acinte às inteligências e às personalidades, ouvintes, população inteira estava acontecendo. Os presentes assistiam a um evento que tinha por objetivo estar defendendo a honra e a dignidade da terra natal, o orador apenas aproveitou da situação para nos ferir profundamente, negligenciar-nos, denegrir a imagem.


Sentira o carroceiro levantar o chicote, continuando a seguir a trilha rumo à rua da Saudade, a que termina no Cemitério Municipal, entregando a mala a alguns outros que a esperavam, chorando, contando coisas da família, a alegria com o nascimento de um ser que desejavam há tantos anos, não saberiam dizer quantos, mas muitos. O horário marcado era as cinco e meia, tempo suficiente para as promessas de rezas e orações, pedindo a Deus que acolhesse aquele pequeno ser entre os anjos. O horário de fechamento das portas do cemitério era às seis horas. Com meia hora de trabalho era possível jogar toda a terra por cima do pequeno caixão.


Uma carroça para carregar o caixão de um recém-nascido de onze meses isto só pode ser piada. O drama: pessoas atrás seguindo o funeral rezando, orando. Um discurso contundente, pujante. Não. É o costume da cidade, crianças falecidas antes de um ano são levadas no caixão pela carroça. Não há como questionar um costume. No imaginário das pessoas a criança é o anjo? Para que extrapolar as coisas deste modo. Sem sentido. Por que ele, Lúcifer Pernóstico, está pensando nisto, antes de seguir a Avenida da Saudade, já está muito distante.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


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