#LÚCIFER PERNÓSTICO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO XV - PARTE I


Numa comparação um tanto infeliz, por não estar encontrando outro modo de me referir à questão, imagine que um cachorro, destes muito bravos, sendo preciso trazer-lhe a correntes grossas para não atacar as pessoas, saísse pelo portão, logo que alguém a quem odeia de paixão entrasse pelo portão. Não digo de focinheira, por que é despautério: como um cão dos "bravos" mesmo pode atacar alguém, se está impossibilitado de morder. A sua arma fatal são os dentes. Ou mesmo se enfiasse dentro de sua “casinha”. Seria ridículo. Poder-se-ia dizer que na atualidade os animais estão tendo atitudes e comportamentos de homens, e estes os mesmos de animais, de perfeitos asnos.


Imagine asno, puxando carroça, vendo de longe alguém a quem odeia, mudando de rua para não se encontrar com a pessoa. Ridículo. A comparação está sendo ridícula por ser impossível que mude de rua por não desejar encontrar com alguém a quem de longe vejo. Primeiro, o dono não iria permitir a mudança, tinha de passar por aquela rua, mudar significa tornar mais longe o lugar a ele destinado a chegar, passaria por outras desnecessárias.


Ainda “burrico” recém-nascido, um dos carroceiros esteve doente precisando de comprar remédio. Procurou meu dono, colega dele no “ponto de carroças”, pedindo-lhe certa quantia em dinheiro emprestado para comprar remédios. Homem bom, emprestou-lhe com toda a satisfação, era sua obrigação ajudar as pessoas, quanto mais em se tratando de problema de saúde. Sem saúde, todos somos ninguém.


Três meses depois, precisando da quantia, meu dono fora cobrar. Estava necessitando do dinheiro. Houve discussão entre eles. Na hora que esteve doente, procurou-lhe, mas se esqueceu de lhe pagar, era homem pobre, trabalhador, quanta vez não levantou em plena madrugada para fazer fretes, ganhar a sobrevivência. Respondeu-lhe o colega que não pagaria. Sugeriu-lhe que pagasse apenas o de que poderia dispor. Nada é nada.


Devido a esta discussão entre eles, meu dono jurou de pés juntos que jamais passaria em sua rua. Anos após, continua não passando, acreditando eu que nunca o fará. Enfim, jurar é coisa séria no mundo dos humanos, quanto mais quando é dito: “Juro por Deus”. Jurar por Deus é pecado, acho que sacrilégio, se não me engano. Se não estou sendo exagerado, será o último pedido de sua vida: “Não deixe aquele “caguicho” entrar no meu velório”. Por que o faria? Ir ao velório de um inimigo. Talvez se sentirá culpado após saber do falecimento. Aquele sentimento de fracassado, fracassou na vida, próprio daqueles quem pensam a sua verdade é a insígnia de sua existência. A insignia é o esquife esculturado, não há quem não a tenha suspensa no pescoço. Ninguém a olha de frente. Sentirá a morte e a exultação de momento tão esplendoroso exala a volúpia de sê-la desde a eternidade à eternidade.


Há nestas atitudes a presença de orgulho, vergonha, “brio na cara” como dizem alguns. Faz parte da natureza humana ter brio na cara. Se não tiver, não pode nunca ser considerado homem, pode sê-lo, mas um qualquer. Antigamente eram pessoas humildes, simples, analfabetas que possuíam esta natureza. Em termos de palavra dada, eram de todo irreversíveis. Como se diz: era mais fácil passar asno no fundo da agulha que fazer com que mudassem de opinião, relevassem, perdoassem, se fosse o caso. Os nobres, burgueses, intelectuais, personalidades não davam a mínima para estas questões; os interesses não lhes permitiam tais atitudes. Se penso na atualidade, nem pobres nem nobres mantêm a palavra. Chamam os inimigos e concorrentes para os grandes banquetes, comemorando isto e aquilo.
Em se tratando de mim, não possuo esta natureza, ela é dos humanos. Estou-me nas tintas se vejo alguém a quem odeio. Posso seguir o meu destino, entregar a encomenda no seu lugar e prazo, sentindo que a pessoa a quem odeio se encontra na rua; se no “ponto de carroças”, parado, esperando algum cliente contratar os serviços de meu dono, a pessoa estar perto de mim. O que naturalmente faço é não olhar em direção a quem vejo. Se perto, não olhar em sua cara. Qualquer ser humano ressente quando alguém não lhe olha na cara, é a manifestação radical de ódio, rejeição, nojo, náusea, etc., etc.


Sei que há muitas pessoas, em algumas ruas da cidade, que fecham as janelas e portas, quando estou a passar puxando a carroça. Ouvi dizer que se sentem deprimidas, angustiadas, têm sérias crises existenciais. Alguns sustentam que é devido à espécie de varal e a cenoura dependurada a uma distância que não posso alcançá-la. Isto para eles é o símbolo real da inutilidade de tudo, da vida, dos prazeres, dos negócios.


Outros devido ao meu nome que o meu dono escolhera, lembra o “tinhoso”. A vida é feita para não ser realizada.
Por causa disto, vou deixar de passar nestas ruas seguindo o meu destino, indo entregar as encomendas dos clientes. Não. Aliás, a interpretação é dos humanos; são eles que a todo momento necessitam de interpretar as coisas que acontecem, assim se sentem mais seguros na vida. Questionaram tanto o porque do varal e a cenoura que se esqueceram de todo o resto, não se fala noutra coisa senão Lúcifer Pernóstico.


Por que "pernóstico"? Isto significa "metido a..." Sou metido a sábio? É isso? Então, a pessoa tem de admitir que penso, que conheço a existência e as suas picuinhas. O "sabichão", "metido a saber a verdade", aquele que "se acha", etc., etc., etc. A questão é delicada.


Alguém disse que “todo ente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza, morre por encontro imprevisto” – quem sabe estivesse pensando nos equus asinus quando isto expressou? Com a interpretação de tudo que lhes acontece os homens pretendem que não: todos nascem com missões, responsabilidades, prolongam-se para satisfazer as necessidades e sonhos, morrem por ser algo inevitável.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)


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