#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO I - II PARTE...


Olhou-o de baixo em cima. Calça de tergal, camisa cor de rosa, manga comprida, duas imagens de Nossa Senhora de Fátima, no peito, não entre os pelos, não tinha pelos. Fisionomia de homem diferente, compenetrado, sério, muito observador, olhos azuis, havia um sinal no seu lábio inferior devido a uma cirurgia inda criança para corrigir o problema, nascera com lábio “leporino”. Não conheço o termo, tendo procurado no dicionário, tomando em consideração a origem latina.


Não. Não estava desejando rir às suas custas, perguntar por perguntar, sem qualquer interesse em saber, como diz o senso comum: “Quando se quer rir à grande, brinca-se aos asnos”.


- O de sua esquerda é asno, mais franzino e de pelos com umas listas pretas, orelhas grandes e pontiagudas. Coice desse é fatal, amigo. O da direita é o burro, orelhas pequenas, mais forte e robusto. Ou estou errado, creio estar confundindo os dois. Não é fácil saber.


- A sua informação fora bastante esclarecedora. Agradeço-lhe imenso.


O asno ou o burro continuava relinchando e mais alto ainda. Quem sabe fosse o asno da carroça? Não podia ser. Havia passado por ela não fazia vinte minutos. Era outro asno ou burro. Caminhou em direção à cerca que os separava, a fim de olhar os pelos dos dois animais, haveria diferença? Ao chegar a poucos centímetros de distância da cerca e o animal, este parou de relinchar, o outro continuava pastando tranquilamente a uma distância de poucos metros. Há-de se indagar se o seu instinto acusou a presença de Credólio Cruzilis. Creio até que se devesse indagar antes se o asno relinchava para que se aproximasse. Não havia percebido, estando de costas para a rodovia, alguém parou e ficou a olhar o que estava acontecendo: aquele homem frente ao asno, uma cerca separando-os, o burro continuando a pastar. Algo de extraordinário acontecia ali. Tirara um bloco miúdo de seu bolso da camisa, fizera uma pequena anotação: homem diante de um asno e um burro.


Perguntara-se se o animal estava relinchando por desejar ou querer, sabe lá como discernir isso, quanto mais nessas horas, a sua presença, que se aproximasse o mais possível dele, mas respeitasse a cerca. Dera sorriso murcho, olhando a orelha, grande e pontiaguda, é a de asno, o coice é fatal, de acordo com a informação que recebera com o transeunte de bicicleta.


Perguntara-se a razão de a partir do momento que ficara a pouca distância, respeitando a cerca de arame, não mais relinchara, se limitara a manter a cabeça baixa. Estaria querendo dizer-lhe alguma coisa? Asno ou burro, aí não há diferença, nada dizem, não usam palavras. Fato é que não relincha mais, está inerte. Chamara-lhe com o relincho para estar inerte, nem o rabo que deveria se mexer não o faz, não há qualquer satisfação ou alegria por parte dele, houvesse o rabo se mexeria. Experimentou passar a mão direita na sua cabeça, o que o animal permitiu espontaneamente, sem, contudo, abanar o rabo. De qualquer cachorro que se aproxime, não há aquele que não abane o rabo. Até mesmo as feras que guardam a casa, passando no portão, não latem. Não olha se o rabo abana, isso não.


Na sua adolescência, é que percebera isto de os cachorros não latirem para ele, não o atacarem. Um garoto de uns dez ou onze anos passava de um lado da rua das Biquinhas, e um cachorro latiu, cachorro grande. O portão estava sendo aberto. O garoto correu, o cão o alcançou e mordeu-lhe a perna. Fora ele a socorrer o garoto, levar-lhe para casa. Ensinara-o: “quando um cachorro latir para você, fique parado, quieto, olhe-o de frente sem medo”.


“E qual fica de cabeça baixa? O asno ou o burro?”. O burro está de cabeça baixa porque está pastando. O asno está de frente para ele, parece que o está olhando. Só podia estar ficando destrambelhado de todo, não podia ser. Maldito o instante em que...
Não parasse de escrever sobre a “carroça-dos-sem-nome”, assim chamada por o carroceiro e o animal não serem conhecidos por nomes - “carroça-da-cenoura”, “carroça-dos-sem-nome”, ora um, ora outro - seria apontado por todos, quando passasse nas ruas: “Aquele é o asno das letras”, o que passaria desde então a se perguntar o motivo de ser relacionado com o asno, não tendo ligação alguma a não ser em momentos de tranqüilidade, deitado na rede, nos finais de semana, lendo um romance, pensando como contar a história da carroça.


Quanto ao desdém que estas palavras pudessem despertar no espírito e alma, muito pouco lhe importaria, não estaria dizendo qualquer coisa: primeiro, não existe asno das letras, isto é, aquele que se entrega inteiro às letras como reflexo de sua vida; em última, o demonstrativo “aquele” só identificaria preconceito e discriminação, e o melhor dizer seria “aquilo é o asno das letras”.


Com efeito, se não reconhece quaisquer valores em alguém, se não gosta da pessoa, identifica-a como “aquilo”, ou seja, uma coisa. E não é necessário perguntar o que quer dizer, o seu tom de voz já indica nada reconhecer ele na pessoa. É coerente com o seu lema: pouco se lhe dá se o chamarem, referirem-se a si como aquilo. Só o homem pode não ter dúvida de sua existência. Em termos dos animais, nem têm, nem deixam de ter. Em verdade, jamais vira alguém se referir ao outro “Aquilo”. “Você está me dizendo sobre aquilo? Ora, se me dá...”.


Alguém, não se lembra do nome, contara-lhe sobre a sogra que estava ouvindo atrás da porta uma discussão acirrada entre mulher e marido, quando o marido chamou a sogra de “aquilo”. “Aquilo é a responsável por estas constantes brigas entre nós; o interesse, se é que coisa tem interesse, é a nossa separação”. A velha sentiu o baque destas palavras, caindo dura e fedendo. O barulho interrompeu a discussão. Abriram a porta. A mulher estava morta. Enfarto, concluíra o médico. Fulminante. Mas o tratamento fora sem dúvida a razão deste enfarto. Isto é o que dá ficar ouvindo atrás das portas.


Por que lhe chamar de asno das letras? Só porque algo lhe chamara a atenção de diferente na carroça, no asno, algo de novo num lugar de só coisas velhas, mais velhas que os tempos imemoriais.


A bem da verdade, di-lo com alegria, sentir-se-ia o mais orgulhoso da espécie: é incomum ser reconhecido um humano como “asno das letras” – ouve-se dizer “aquele é um perfeito asno” para dizer que não tem inteligência alguma, as opiniões não são mudadas nem a troco de chibatada. Se empacou com a opinião dada, nem essa ousa contestar, as conseqüências não seriam benéficas.
Manoel Ferreira Neto
(FEVEREIRO 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 27 DE AGOSTO DE 2018)


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